Oito de mão esquerda

niva
Doce
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6 min readDec 15, 2015

Minha mãe tem um rosto de formas que não se encaixam. Um rosto que parece ter sido construído de partes aleatórias, sem preocupação com harmonia. Ou talvez projetado por alguém que nunca vira feições humanas. Ou desenhado a partir de meia dúzia de instruções rabiscadas num guardanapo. Dois olhos, um nariz, duas orelhas; os elementos estão todos ali, mas fora de equilíbrio, lutando uns com os outros pela dominância. O efeito é desorientador. Ela está à minha frente e eu não consigo vê-la, não consigo processar a imagem. Meu olhar a atravessa e para em algum ponto vários metros atrás da nuca.

Só isso de mala? Vem, coloca no carro, você devia ter avisado mais cedo, eu ainda tive que pedir a Sula pra vir me buscar, meu Monza tá todo acabado e nem dá partida direito, você sabe, mas assim que estiver tudo em ordem eu compro um outro zerinho, — os lábios dela se movem com vida própria, a boca abrindo-se mais e mais até cobrir quase todo o rosto, empurrando as outras feições pros cantos. — …e seu irmão queria te ver mas tá dormindo, é bem cedo ainda, aos sábados ele acorda lá pelas onze, são seis da manhã ainda, você podia ter vindo num ônibus mais tarde, —

São sete. Eu cheguei às seis, e agora são sete.

— Ah sim, foi como eu disse, e está muito cedo, ontem fechamos a loja de madrugada, eu não tive tempo nem de limpar a casa, e você sabe que eu teria limpado o seu quarto, o seu e limpado, quarto, sete da manhã, e manhã, manhã, limpado o quarto, mas fechamos a madrugada, loja, como eu disse,

Concordo com um aceno de cabeça, minha atenção oscilando. O carro estacionado ao sol cheira a veludo queimado. Pilhas de pastas e envelopes me acompanham no banco de trás, as pontas de papel afiado espetando a coxa.

Eu repouso a testa no vidro, deixando a vibração massagear minhas têmporas enquanto assisto pela janela a cidadezinha correr. Cenários familiares passam em sucessão rápida. O posto de gasolina que vendia churros a um real, os coqueiros nos pontos de ônibus, a avenida carinhosamente apelidada de Escorre-Sangue. O colégio católico em que eu cresci, imponente, cobrindo sozinho todo um quarteirão, com sua entrada caiada de branco e cercada de palmeiras imperiais. Capaz que eu tenha me acidentado e esteja só revisitando minha terra em sonho, cada beco e esquina idêntico à imagem selada na memória.

Ontem sonhei com a viagem de São Paulo pra cá. Eu descansava os pés contra o pára-brisas do segundo andar do ônibus, solas apoiadas no vidro gelado, assistindo às linhas fosforescentes se curvarem na serra, à esquerda e à direita e à esquerda. Tudo em torno mergulhado na escuridão absoluta, não a escuridão reconfortante e insinuada das noites urbanas, mas absoluta, na qual só existem o pedaço de rodovia alcançado pelos faróis — e eu.

O ônibus voava serra abaixo, rápido demais, e o empuxo da velocidade me movia na poltrona como uma árvore ao vento. Só a mim. Todos os outros passageiros dormiam e proviam juntos um coro de respiração relaxada. A velocidade gelava mais o vidro, colando nos meus pés descalços e me arrepiando até a espinha, e a vertigem da aceleração ameaçava encontrar algum lugar muito alto no meu corpo, talvez a garganta, e de lá derrubar meu estômago. Não havia atrito entre as rodas e a estrada. Elas deslizavam, fora de controle. Então o ônibus acertou a barricada e caiu a toda no mar.

Afundamos lentamente, por muito tempo. Não havia fundo. Os outros ainda dormiam quando a água invadiu a lataria, jogando os faróis em curto e me privando até do conforto fantasmagórico dos cones de luz. A morte vindoura me pesava no peito, mas não tanto quanto a ideia de que eu afundaria pra sempre.

O colégio sumia no horizonte, suas folhas acenando na brisa. Era um prédio largo, ampliado na minha memória infantil a proporções titânicas, um complexo infinito de salas e armários e capelas e secretarias que nunca seria devidamente explorado. Pela manhã nos enfileiravam frente à bandeira e cantávamos o hino nacional, mão direita no peito, mão esquerda no bolso, pálpebras semicerradas de quem se acredita capaz de cochilar de pé. O rabo de cavalo da garota à minha frente estava sempre preso tão firme que parecia esticar sua pele ao máximo, ao ponto que qualquer expressão exagerada rasgaria o rosto ao meio, expondo os nervos — e ela continuaria louvando a pátria amada, já que o castigo por interromper o hino deixava uma cara rasgada no chinelo.

Na altura do quinto ano eu já havia me convencido de que seria freira, pra alegria das minhas tutoras e incredulidade de meus pais. Não era um caso de vocação precoce. Logo eu, que sempre tive o equivalente espiritual do “Não Sabe/Não Responde” das pesquisas do Datafolha? Não. Era uma questão de tranquilidade. As freiras circulavam pelos jardins do colégio, umas lendo à sombra das amendoeiras, outras vigiando as crianças menores com um ar de displicência. Ocasionalmente guiavam alguma oração em feriados de santo. Eram livres de toda preocupação terrena que inquieta o adulto — o aluguel no fim do mês, a estabilidade no emprego, o relógio biológico tiquetaqueando. Deixe o relógio pra lá. Vivem uma vida perfeitamente uniforme, de dias iguais, orbitando os alunos e nunca deixando os limites da escola, contidas pelos muros como assombrações. O que de certa forma eram, assombrações; não estavam realmente vivas. Não se apaixonavam e realizavam ambições e viam filmes de kung fu de madrugada, como nós.

A ideia dessa morte em vida me era extremamente atraente. Abandonar os altos e baixos e incertezas da experiência humana e me contentar em observá-la do acostamento, segura, compensando uma ausência de espiritualidade com grande entusiasmo pelo enclausuramento precoce. Aí sim.

Meu futuro já estava em movimento, eu aos onze anos encaminhada a ser a primeira freira agnóstica do interior do Rio, quando uma das professoras sofreu um acidente e foi arremessada do carro, atravessando o para-brisa e aterrissando com as pernas numa posição que um jovem espectador descreveu como “um oito escrito com a mão esquerda”.

— Crianças, como vocês sabem, a senhora Eliara estará hospitalizada por algumas semanas, e por isso trouxemos um substituto do colégio de Santa Rosa para cobrir suas próximas aulas. Se vocês puderem, por favor, dar boas-vindas ao professor Diógenes, eu sei que isto faria nossa querida Eliara muito feliz.

Eu devo ter feito Eliara dispensar a morfina. Diógenes era um homem nos seus trinta e tantos anos, sempre vestido respeitosamente em camisa social branca, suas mangas arregaçadas logo acima dos antebraços, e sapatos lustrosos, cujas marcas de desgaste eu decoraria ao longo do semestre, fitando-as pra conter o rubor. O bigode cobria o lábio superior da mesma forma que as sobrancelhas grossas dominavam os olhos, dando uma espécie de neutralidade constante à sua expressão, que seria intimidadora, não fosse traída pelo entusiasmo jovial da voz.

Era um aficionado por cartografia. Estendia mapas enormes da Europa pós-Guerra, gesticulando explosões e combates. Sangue, gangrena, espionagem. Suas aulas deixavam as crianças tão debruçadas nas carteiras que uma brisa súbita derrubaria toda a classe de cara no chão. Diógenes não retornaria a Santa Rosa ao fim do ano sem arrancar protestos de muitos de seus alunos, e até lágrimas de alguns. Eu eventualmente recuperaria o pleno funcionamento do coração, mas deixei de lado meu antigo caminho eclesiástico, irreparavelmente transformada em mulher.

Cheguei a revê-lo vários anos depois, já adulta, num daqueles encontros do acaso. Ele estava mais velho, com óculos de aro redondo equilibrados no nariz afilado, e cultivara uma barba em torno do bigode solitário. Era o mesmo homem de antes, da camisa branca e sapatos lustrosos. Talvez um pouco avariado com o tempo, sem dúvida não tão magro e empertigado. Mas a mudança operada no meu imaginário era tão profunda que eu tive um momento de colapso, joelhos enfraquecidos, e me apoiei numa cadeira pra evitar fazer cena. Em momentos de crise todos os clichês se realizam, você percebe ao amadurecer, e o dos joelhos é batata. Cedem e te deixam não só desesperado como jogado no chão, pra somar insulto à injúria. Fiquei ali sentada nos bancos de metal, de olhos arregalados, vendo passar alguém que protagonizou milhares das minhas primeiras fantasias de menina, e que agora me parecia tão mundano que não chamaria minha atenção numa ilha deserta.

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