Caibros

niva
Doce
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4 min readDec 10, 2015

Meus pais passaram a maior parte das suas duas décadas de casamento se separando. Quinze anos de agressividade muda na mesa de domingo; de bate-boca madrugada adentro sobre quem levaria o quê, quando e pra onde; de malas prontas no canto do armário. O divórcio era um paradoxo, iminente e inalcançável, um desfecho contínuo durante o qual nada era definitivo, da mesma forma que não se erguem casas sobre areia movediça — e, no entanto, uma casa se ergueu.

Uma chuva colérica de primavera cai sobre essa casa, chocando-se com estardalhaço contra as telhas de cerâmica. Suas gotas grossas alvejam as árvores do quintal — o abacateiro, a bananeira e as que não têm nome — com tanta insistência que não se ouve o impacto sobre cada folha, mas sim o ruído branco e constante de uma tevê esquecida. Não há sol. O ventilador ronca entre nós dois, quebrando o mormaço do fim da tarde.

— Ela quer a casa, pai. Não tem jeito.

Ele acena com a cabeça, distraído, encarando o nada.

— E é o que é justo, você sabe. Já que ela vai ficar com o garoto.

Os pisca-piscas dão ao cômodo ares de instalação de arte com suas luzes azuis-arroxeadas-neon, o que nos convém, já que uma iluminação natalina tradicional faria troça da severidade do momento. Sombras dançam no rosto do meu pai e escondem sua expressão. O desenlace veio, enfim, mas sem o gás de antes. O que era berros e dedos apontados hoje é contemplação solitária, copo de cerveja quente no braço do sofá. Ele está imóvel e eu me movo por nós dois, gesticulando, a forma dos meus dedos ampliada e distorcida na parede.

— É só uma casa, pai. Eu não entendo. Nem é nada de mais, tu abre o jornal e vê três à venda muito melhores. Nem piscina tem. Eu não entendo. Todo esse tempo você podia ter ido embora, mas continua ancorado a isso aqui.

Ele fita as luzes em silêncio, sem dar sinal de que me ouve, e eu me sinto repetindo as preces que me foram negadas quando menina, em que eu me ajoelhava, juntava as mãozinhas uma à outra e pedia a Deus uma separação, um desquite, um fim que me permitisse um início. Preces que eu renovava após voltar do bar de paredes manchadas de óleo onde meus pais discutiam remendos emocionais por horas a fio, enquanto eu almoçava uma bandeja de frango a passarinho e assistia aos bêbados vibrarem no caça-níqueis. Eu era pequena demais pro garçom me vender fichas da máquina em boa consciência, mas eu me sentia bem adulta quando meu pai me elogiava por aguardar a tarde toda. Quanto mais eu os aguardasse, quanto mais paciente eu fosse, mais elogios. Era só esperar mais um pouquinho, só até que eles se resolvessem, e eu não precisaria mais ser madura. Então eu obedeci e esperei o divórcio, comportada, elogiada, por anos e anos, até que a maturidade se assentou nos meus ossos como o frio e eu me dei conta de que esperei demais — e que a minha infância me escapou.

— É só ir embora, é tão fácil ir embora! Você tem medo de fazer vida nova, eu sei, mas o que é que se construiu nessa casa? Alguma coisa boa? Por que você não deixa ela pra trás?

A frustração acumulada de uma década e meia deixa minha voz estridente. Meu pai dobra o pescoço pra trás, fixando o olhar aos céus como quem busca resposta divina pras minhas demandas, mas o objeto da sua atenção é mundano e ele o aponta com um gesto cansado.

— Eu escolhi esse caibro.

E volta o indicador pras janelas, tão empoeiradas que não se enxerga a noite caindo lá fora.

— E elas. E esse azulejo. Cada azulejo tem um quebradinho, uma mancha. Eu comprei todos numa promoção de peças imperfeitas. Passei horas na loja de construção revirando uma pilha de pisos atrás dos defeitos menos gritantes, defeitos que com o arranjo certo não daria pra ver. Você nunca notou, eu sei que não notou. Mas todos têm defeito. — Seus olhos varrem o piso, se assegurando da força da ilusão. — As janelas também, você pode ver que elas não têm o acabamento por dentro, só por fora, e o trilho é meio torto, por isso que elas rangem quando venta. Eu trouxe essas de Campos, sete janelas naquela Kombi antiga. A madeireira não precisou nem entregar. Deu um descontão. Os tijolos, as fechaduras, tudo eu escolhi um por um, cada caibro. Eu conheço cada caibro dessa casa. Quando não tinha dinheiro pra ajudante de pedreiro eu mesmo ajudei e bati cimento, passei massa, fudi minhas mãos na talhadeira. Eu construí essa casa com as minhas próprias mãos.

Ele se apoia nos joelhos e levanta, agitado, olhos brilhando em azul e roxo.

— E agora eu tenho que morar num lugar que eu não construí, que eu não conheço, eu não escolhi as telhas, eu não assentei jornal no chão pra não respingar tinta no azulejo novo. Uma casa alugada que não tem nada de mim, não conta nada da minha história. Eu sento aqui e é o fruto do meu trabalho, é a minha identidade, e que identidade eu vejo num lugar novo? O que é meu nessas casas que você vê no jornal? Eu tenho mais de cinquenta anos e agora preciso começar do zero, num lugar que não é meu, e jogar isso fora? Jogar minha vida fora?

O ritmo das luzes muda, seu piscar rápido se acomodando num movimento arrastado. Ele se deixa cair de volta no sofá, exaurido de forças, os traços graves do rosto acentuados pelo neon. A chuva tamborila no teto, mais delicada, agora, e o ventilador gira entre nós. Os dois imóveis, e a casa viva em torno.

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