GABZ

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4 min readMar 2, 2021

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GABZ em “Guerras do Brasil.doc”, de direção de Luiz Bolognesi

Me recordo da sensação de estar em pesquisa sobre os meus antepassados. Uma pomposa árvore genealógica familiar construí digitalmente, repleta de documentos e fotografias anexadas, onde se ramificava mais e mais para um dos lados. E quase tombou.

Precisei retornar aos meus ancestrais maternos.

Meu bisavô de nome Orozimbo foi apagado quase que intencionalmente, e o seu passado também. O sistema de busca de documentos da plataforma não funciona bem para todas as raízes, deveria estar especificado de que era somente para raízes bem brancas. Será que é um problema sistêmico? Agora eu gostaria da promessa escrita nessa plataforma: “descobrir a mim mesma pela história dos que me antecederam”.

A escritora brasileira Conceição Evaristo poetiza ao final de Vozes-mulheres: “a voz de minha filha/recolhe em si/a fala e o ato/O ontem — o hoje — o agora/Na voz de minha filha/se fará ouvir a ressonância/o eco da vida-liberdade”, e foram essas palavras que me voltaram ao escutar a poesia cantada (versão adaptada) da artista GABZ (vencedora do Slam Grito 2017) ao final do episódio “As guerras de Palmares” de “Guerras do Brasil.doc”. GABZ não só assume o papel de protagonista social de sua própria história de mulher negra, mas de toda uma geração de “filhas de conceição”.

E esse estilo de poesia, adota uma abordagem coerente com a temática, e também, o propósito de ser realista. E o mais importante, transforma-se em uma poderosa denúncia sobre a invisibilidade da população negra, em especial das mulheres negras. Mas muito Lélia Gonzalez estrondeava sobre a luta pela compreensão da condição da mulher negra como uma perversa combinação de racismo e sexismo. Muito estrondeava sobre a necessidade de novas epistemologias contrárias às bases teóricas de origem branco-europeia. GABZ continua a jornada de uma “primavera para as rosas negras”, e por isso transcrevo as suas palavras…

“Se pelo menos eu soubesse
Meu verdadeiro sobrenome
Meu país, minha terra
Ah, se eu soubesse, já era
Se minha carne fosse vista diferente
Se seu olhar fosse mais inocente
Se eu não tivesse que ser forte
Nem dependesse da sorte
Se antes do diabo que me pintam por ser o que sou
Ou da deusa que cultivam pelo mesmo motivo
Eu fosse pessoa, PESSOA antes de mulata
Se eu não tivesse que falar na lata
E se eu não tivesse que gritar
Ainda ia ter graça me ver sangrar?
E se eu quisesse me vingar?
Ou cês acha que nós não lembrava
Do estupro da escrava?
Que cês ainda comemoram a ação
Porque o resultado: a linda miscigenação
Ou cês acha que nós esquece
A tragédia dos mec mec
Que termina lá no Cytotec?
Sim, aborto
A pergunta agora é se o feto era vivo ou morto
E ela?
Crucificada aos 16
Sem a ajuda de nenhum de vocês
Sozinha
Pedindo aos céus ajuda de mainha
Mas aqui só tinha inferno
E o julgamento é eterno
Se não vai pra prisão, pode ir pro valão
Taxada de puta na televisão
Pra nós, ninguém reserva oração
Tudo preto, sem bandeira branca na trama
Cê já sentiu negra drama?
Ou tu só respeita se for da família?
Pede bênção pra mãe e não assume a filha
É que cês não gosta de mulher, cês gosta é de buceta
De preferência branca, mas com bunda de preta
Até serve comer mulata, mas se for a que te acata
E os mano sempre diz que são todo errado
E aí quer pagar de aliado
Mas cês tem que entender nosso lado
Nós não atura papo de mandado
Porque o papo não faz curva, aqui o papo é reto
Cê vai se arrepender de me fazer de objeto
Eu não tô aqui pra fazer seu membro ficar ereto
Não se esqueça, aqui é muita treta
Se teu pau é Ku Klux Klan, minha buceta é Pantera Negra
É que eu não aguento mais, será que um dia tem paz?
Ou será sempre mais um jaz?
No cais, sinto o horror do Valongo
Quilombo dor, é o combo do meu horror
Mas você não me parou
Uns morto na matéria, mas vivo na memória
Eu canto aqui é pra lembrar essas história
Em meio ao caos nós vai encontrar a glória
Em meio a tanta luta nós vai chegar na vitória
É que eu tenho minha raiz, minha base pra ser feliz
Eu invado, eu não me encaixo
E você ainda se acha muito macho?
Mas nunca viu rastro de cobra, nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come
O que eu passei na vida, cês não sabe como é
Pra viver na minha pele, neguin, tem que ser muito, mas muito mulher!”

GABZ, VENCEDORA SLAM GRITO FILMES 2017. VERSÃO COMPLETA EM: https://www.youtube.com/watch?v=kZhPvruoeFw

*Escrito por Cíntia Ferreira, graduanda em Arte Visuais pela UERJ, pós-graduada em Fotografia e Imagem pela IUPERJ -UCAM e membro da Sociedade Fluminense de Fotografia. Também criadora do blog https://medium.com/@amulherdepreto

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