29 horas entre o Anne e a Líbia — CRONOLOGIA DO NAVIO DE BANDEIRA PORTUGUESA QUE ENTREGOU 98 MIGRANTES ÀS CONDIÇÕES DESUMANAS NA LÍBIA

Pedro Amaro Santos
documentar a urgência
4 min readOct 4, 2020

0 — LOCALIZAÇÃO, 10h, dia 26

A organização não-governamental Alarm Phone recebeu chamadas das pessoas em perigo a bordo de uma pequena embarcação que havia deixado a Líbia pela rota do mediterrâneo central.

Na tentativa de agilizar o resgate, informou o Centro de Coordenação de Resgate Marítimo de Malta (MRCC) sobre a situação de emergência.

Nessa manhã, o Anne, um navio da empresa alemã Jens & Waller, com bandeira portuguesa, estava a fazer a rota entre Malta e a Líbia. No sentido de proceder ao resgate, o MRCC informou o navio Anne da situação de emergência.

Assim que a Alarm Phone percebeu que o Anne estava registado em Portugal, contactou Lisboa, avisando também o ARCC Lisboa da situação da necessidade de salvamento das pessoas.

Resgate de pessoas migrantes pelo Sea-Watch.

1 — RESGATE, 13h

Pouco depois das 13h, o Anne resgatou as cerca de 98 pessoas em perigo que seguiam da embarcação que havia partido da Líbia.

2 — ORDEM

O Anne foi contactado pelo Centro de Coordenação de Resgate Marítimo de Malta (MRCC, na sigla em inglês), recebendo ordens para se dirigir para a Líbia onde desembarcaria as pessoas resgatadas a bordo.

A ordem contraria a lei internacional que determina que cabe ao Estado costeiro mais próximo que possa ser classificado como porto seguro — Malta, neste caso — receber as pessoas resgatadas.

Malta havia insistido, em relação a outras embarcações, que não iria permitir o desembarque de mais migrantes nos seus portos enquanto não chegar a acordo com a UE para a sua realocação pelos outros estados membros.

3 — CONTACTO

O Anne alegou ter tentado contactar as autoridades portuguesas e francesas, numa situação de emergência com pessoas feridas a bordo. Não terá recebido indicações em tempo útil sobre alternativas que não incluíssem o transporte das pessoas para a Líbia.

4 — CAMPANHA, 15h, dia 27

Em contra-relógio com a urgência da situação, a Humans Before Borders lançou a campanha “não é tarde demais para voltar atrás”, tentando impedir que as pessoas a bordo do Anne desembarcassem na Líbia ou fossem transferidas para as embarcações da guarda costeira do país.

A campanha direcionava uma carta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros pedindo que este:

— Exigisse ao mestre do navio que não desembarcasse estas pessoas em nenhum porto Líbio;

— Iniciasse os contactos diplomáticos necessários para encontrar um porto seguro para esta embarcação;

— Reforçasse os contactos diplomáticos para que, após o desembarque no porto seguro mais próximo, o acolhimento fosse feito em solo europeu, nomeadamente em Portugal.

5 — DEVOLUÇÃO, 19h, dia 27

Cumprindo a ordem dada pelo MRCC, o navio devolveu as pessoas à Guarda Costeira Líbia, violando a lei internacional relativa ao resgate de refugiados no mar. A Organização Mundial das Migrações na Líbia confirmou ao Expresso que as cerca de 100 pessoas resgatadas desembarcaram na Líbia.

Fazer desembarcar pessoas num porto considerado não seguro, como é o caso da Líbia, é contra a legislação internacional. O Estado cuja bandeira identifique o navio, neste caso Portugal, tem também responsabilidades.

Imagem do percurso do Anne para devolver as pessoas resgatas à Líbia.

6 — LÍBIA

Apesar dos pedidos de ação, os migrantes continuam a ser devolvidos à detenção arbitrária. Muitos, nos últimos meses, foram dados como desaparecidos e outros foram detidos em condições desumanas, ficando claro que a própria Líbia já se anunciou como porto inseguro por causa da guerra civil que está destruir todo o tipo de infraestruturas que sustentam a vida num país.

Imagem de uma reportagem da 4news sobre as condições de tratamento dos migrantes na Líbia.

O último relatório da Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Refugiados sobre a situação na Líbia é muito claro ao elencar vários ataques aos Direitos Humanos: “detenção arbitrária, sequestros, desaparecimentos forçados, tortura e outras formas de maus-tratos, violações e outras formas de violência sexual contra mulheres e homens, assassinatos ilegais, incluindo execuções sumárias, deslocamento forçado, bem como ataques direcionados e indiscriminados contra civis e alvos civis, incluindo instalações médicas e escolas”.

Nota da IOM sobre o desembarque de migrantes na Líbia aqui:

https://www.iom.int/.../libya-considers-its-ports-unsafe...

7 — LEI INTERNACIONAL

Segundo o organismo internacional, a Líbia não é um país seguro para acolher pessoas resgatadas por embarcações, recomendando a todos os países que “suspendam todos os retornos forçados de cidadão ou residente na Líbia, incluindo aquele que tiveram o seu pedido de asilo rejeitado”.

8 — PORTUGAL

A Humans Before Borders tem a decorrer uma campanha exigindo a libertação imediata dos barcos de busca e salvamento Alan Kurdi e Aita Mari das ONGs sea-eye e Salvamento Marítimo Humanitário, que se encontram retidos em Palermo por “razões técnicas e de segurança”. A organização sublinha que os estados não podem impedir a sociedade civil de salvar vidas no mediterrâneo.

Podem apoiar aqui:http://www.change.org/.../german-government-free-the...

A ex-eurodeputada Ana Gomes enviou esta sexta-feira para a Procuradoria-Geral da República (PGR) uma participação-crime contra o armador e o comandante do navio Anne.

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Pedro Amaro Santos
documentar a urgência

Acredito no poder do diálogo intercultural como meio de promoção da consciencialização, da compreensão, da reconciliação e da tolerância.