Fiel

Fabricio Altran
Dois Efes
Published in
3 min readJul 9, 2020
Imagem de Free-Photos por Pixabay

Avancei com tudo. Desde muito cedo fui treinado para ter o condicionamento físico perfeito, como uma máquina. Corridas, saltos e circuitos sem fim para elevar minha capacidade física ao extremo.

Gosto disso. Sinto-me feliz em movimento, e o Paulo sempre me incentivou. No começo foi difícil, confesso. Eu era teimoso e resistente, fazia birra e nem sempre cumpria o treino.

Com o tempo, e conforme passei a conhecê-lo melhor, criei um vínculo de confiança e entrei no jogo. Ele se animou e começou a participar junto comigo, sem deixar o sorriso de lado quando fiquei bem mais rápido e forte do que ele.

Logo viramos parceiros, e ele começou a me inscrever em campeonatos. Eu competia contra pastores, labradores, shih tzus… Não importava a raça. Eu, um mero vira-latas, era melhor do que todos. Fui treinado para ser assim.

Só que, aos poucos, vencer parecia algo muito fácil. Depois de ganhar todos os títulos do país, aquilo estava se tornando rotina. Era hora de exceder em algo novo, arrumar algo novo para ser perfeito.

Paulo percebeu meus pensamentos e, quando dei conta, estava cercado de humanos gritando meu nome e do outro, um dobberman. Demorei alguns segundos para entender o que acontecia, que quase me custaram uma orelha. Meu adversário não estava para brincadeiras e vinha para matar.

Meus músculos vibraram com a descarga de adrenalina e o reflexo adquirido de tanto treino entrou em ação. Numa finta desviei a investida e contra-ataquei, certeiro, naquele pescoço negro. Bastou uma mordida e pude sentir a pulsação desacelerar em minha língua, até sumir.

Paulo também estava eufórico. Quando dei por mim, me envolvia em seus braços e comi a semana toda o petisco que, até então, era dedicado apenas às vitórias nos campeonato. Nossa relação estava renovada, fortalecida. O laço agora era inquebrável, e meu novo esporte, viciante.

Logo nos mudamos para um quintal que era agora uma academia completa dedicada a mim. Os treinos, que antes aconteciam uma hora por dia, agora durava manhã, tarde e noite. Paulo parece ter abandonado tudo para se dedicar a mim, exclusivamente. Eu estava obcecado com a vitória e a atenção.

Outro dia ele tentou fazer uma surpresa e trouxe uma fêmea pra casa. Eu já tinha ouvido algumas vezes algo sobre passar o legado pros filhos e imagino que ele pudesse ter essa intenção com o “presente”. Mas não é assim que a banda toca por aqui. A adrenalina da arena começou a eriçar meus pelos, e eu estava pronto para abater a concorrência. Paulo só tinha um, e era eu.

A poça vermelha no chão deveria ter dado o recado. Mas não. Paulo estava me repreendendo. Ele ficou furioso comigo! Como ousa? Eu dei a ele esse lar! Eu sei que é por minha causa que melhoramos de vida.

Avancei com tudo. Agora eram duas carcaças frias enfeitando o quintal. Meus troféus. Eu não seria substituído por ninguém.

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