O Futebol é o Povo

Heron Filho
Dois Toques
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3 min readMar 12, 2018

Sou um genuíno torcedor de arquibancada e acredito que falar sobre a elitização nos estádios é peça chave na compreensão do futebol como uma manifestação cultural. Não chamo estádio de futebol de arena, termo que me desagrada desde a conservadora Aliança Renovadora Nacional e em nada se assemelha com a cultura futebolística do Brasil. A expressão arena se encaixa perfeitamente com o que acontece nos ginásios da NBA, onde esporte e entretenimento se confundem de tal forma que às vezes se torna difícil saber qual é o foco. No futebol é diferente.

O torcedor de futebol não vai ao estádio com o intuito de aparecer na câmera do beijo ou de realizar uma dança constrangedora a fim de ganhar brindes, ele se sente parte do jogo e acredita que pode ajudar o seu time a sair vencedor. Há entre os amantes do futebol um consenso que os “hinchas” argentinos são os torcedores que protagonizam a mais bela festa nos estádios, mas a admiração pela atmosfera portenha não pode nos provocar a falsa sensação de que o torcedor brasileiro sempre foi impassível como atualmente. Como não lembrar da invasão corinthiana ao Maracanã, da Fonte Nova e seus 112 mil pagantes na semi-final do campeonato de 1988 ou de inúmeros outros episódios em que o torcedor brasileiro fez coisas que até argentino bateria palmas.

Em 2004 o salário mínimo do brasileiro era capaz de comprar 26 ingressos de arquibancada na Fonte Nova, enquanto hoje a remuneração compraria 18 entradas no setor mais popular da agora Itaipava Arena. Este parâmetro pode não ser o mais preciso em termos de economia, mas consegue demonstrar que está muito mais caro acompanhar o seu clube do coração. Além do fato extremamente agressivo de ter afastado o torcedor pobre do seu time, a elitização reverberou de forma inconteste no ambiente social dos estádios. Nosso futebol apresenta inúmeras desvantagens quando comparado ao campeonato inglês, seja na qualidade dos campos, liga, média de público e diversos fatores que se elencados ocupariam uma eternidade de tempo. Entretanto, os ingleses se queixam bastante da aura fleumática que reveste os campos britânicos , visto que desde Tragédia de Hillsborough em 1989 os anglicanos passaram a praticar preços elevados nos tickets a fim de combater o hooliganismo. Dessa forma, estamos caminhando a passos largos para aniquilar a única vantagem que o futebol brasileiro ainda possui quando confrontado com o inglês.

Por outro lado, as críticas ao modelo inglês podem ser refutadas pelos seus defensores com o argumento de que se trata de uma situação onde se aplica a Lei da Oferta e da Procura, visto que o percentual de ocupação dos estádios britânicos apresenta números elevados. Na temporada 2016/2017, os estádios da Premiere League tiveram mais de 90% dos assentos ocupados, enquanto a elite do nosso futebol não consegue superar a segunda divisão inglesa em médio de público. O conceito de preço ótimo passa bem longe dos campos brasileiros, sendo difícil encontrar fundamentos convincentes de que a elitização é saudável para o nosso futebol. A única hipótese que consigo vislumbrar no que tange a deliberada exclusão do torcedor de baixa renda das cultuadas arenas, é o fato de que para os coveiros do futebol essas pessoas não têm o “perfil” das modernas, multiúso e excludentes arenas.

Fazer com que o torcedor popular volte aos campos é resgatar a história do nosso futebol, é respeitar nossas tradições e devolver a festa aos estádios. Como afirmou o técnico italiano Arrigo Sachi na Copa de 1994, o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes das nossas vidas. O futebol deixou de ser aristocrático desde os tempos em que os negros começaram a driblar os marcadores para fugir da perseguição dos árbitros. Mesmo sabendo que é quase impossível vencer a batalha contra a elitização, pois nada podemos esperar dos cartolas e magnatas que comandam o nosso futebol, lembro o grande Darcy Ribeiro que dizia ter orgulho das derrotas. Devolvam a mais apaixonante invenção do homem a quem de fato lhe é dono, pois o futebol não é do povo, o futebol é o povo.

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