Para onde a bússola aponta

A autora Maria Camargo visita seu baú de memórias e compartilha os aprendizados durante a recriação de ‘Dois Irmãos’ para a TV

Rede Globo
Dois Irmãos
7 min readJan 18, 2017

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Foto: Maria Camargo / Acervo Pessoal

UM PRÓLOGO

- O que te trouxe aqui?, perguntou o psicanalista com sotaque portenho.

- Um livro.

Ele sorriu com o canto dos olhos. Ou, pelo menos, percebi assim.

Eu nunca tinha colocado os pés em Manaus, não tenho origem árabe, gêmeos na família nem uma mãe como Zana. Mas as emoções arrebatadoras que estavam nas páginas de Dois Irmãos — aquilo sim, eu reconhecia.

Se a existência se apresentou para mim desde muito cedo como um palco de conflitos incessantes, a literatura foi um refúgio. Decadência, loucura, rivalidades, mortes, vidas frustradas e amores infelizes não machucavam quando nas páginas dos livros. Só ali, na solidão da leitura, havia espaço para elaborar, tentar entender o que diabos estávamos nós fazendo no mundo.

E o que estava eu fazendo no mundo em 2002, naquela primeira sessão de análise? Com vários filhos pequenos e um casamento em crise, eu já era roteirista mas me sentia bloqueada, sem perspectivas, incapaz de escrever algo relevante. Ser mãe era a coisa mais importante do mundo, mas eu queria ser outras coisas também, precisava começar outra história. Acontece que só me dei conta disso quando as palavras de um manauara cruzaram o meu caminho.

Na véspera de entrar na livraria e começar a ler Dois Irmãos ainda de pé, escorada na estante de literatura brasileira, eu tinha me deparado com um depoimento de Milton Hatoum aonde ele dizia que “quem viveu intensamente até os vinte anos, é só esperar mais uns quinze para começar a escrever”. Eu tinha vivido os tais primeiros vinte anos muito intensos e estava com trinta e um. Fiz as contas: dava tempo, eu ainda podia escrever. Ou, ao menos, ler o que aquele escritor intrigante, que fazia aniversário no mesmo dia que eu, tinha escrito.

UM FLASHBACK

Detalhe de um das edições de ‘Dois Irmãos’ do acervo de Maria Camargo.

Graças ao meu avô materno — um leitor obsessivo que dizia que as melhores pessoas do mundo andavam sempre com um livro debaixo do sovaco -, li Madame Bovary aos doze anos e provoquei uma crise de ciúmes em um namorado quando levei os dois volumes gigantes de Guerra e Paz para uma viagem de férias, aos dezessete. Ele tinha razão: o namoro acabou logo, era bem menos interessante que os romances russos. Anna Karenina e Crime e Castigo me marcaram para sempre e o mesmo aconteceu mais tarde com Crônica da Casa Assassinada, do Lúcio Cardoso. Logo entraram na minha lista de paixões os filmes do Bergman, o Cria Cuervos do Saura e a Longa Jornada Noite Adentro, do O’Neill. Histórias tristes, muitas vezes trágicas, onde nada é fácil, para ninguém.

Dois Irmãos também me pegou de jeito, mas alguma coisa a mais aconteceu.

PRIMEIRO ATO

No início, me comovi com a voz de Nael e com a melancolia de Halim, mas tive raiva de Zana nunca me senti como ela, não tive um filho preferido, a maternidade é para mim um infinito e delicioso aprendizado. Mas logo comecei a me perguntar, a sofrer com ela: e se eu não tivesse conseguido? E se tivesse dado tudo errado? Pior: e se ainda der errado? Graças aos tais primeiros vinte anos, eu entendia bem de conflitos familiares — e os temia. Mas é como o Milton disse: “Quando a vida começa a dar errado, aí é que começa a literatura”.

Então, voltemos à literatura, este refúgio. No livro havia ainda um outro personagem, o maior, mais implacável e mais comovente: o Tempo. Milton Hatoum me nocauteou.

Muitas outras leituras vieram, muitos amigos foram presenteados com exemplares de Dois Irmãos, mas não foi suficiente. Onipresente na minha mesa de cabeceira, o livro era o que era, estava terminado, mas eu enxergava dentro dele uma semente que poderia fazer germinar outras palavras, outras imagens, outro mundo. O rio Negro, imenso e desconhecido, se estendia à minha frente, me convidando a navegar.

Foto: Maria Camargo / Acervo Pessoal

Na época, com pouca experiência em dramaturgia, eu trabalhava na Globo avaliando histórias para serem adaptadas para a televisão. Natural que escrevesse dez páginas tentando convencer alguém a apostar na história. Parafraseando Oswald de Andrade, tinha convicção de que o Brasil inteiro deveria devorar o biscoito fino que o Milton havia fabricado:

“A bela e complexa estrutura do romance, em que épocas, memórias e pedaços de história se entrelaçam, revelando aos poucos o destino da família, da cidade e do país, não deve ser um empecilho para sua adaptação, e sim um atrativo a mais”, escrevi em 2003.

Com exceção da Edna Palatnik, minha chefe, ninguém me deu a menor atenção. Mas eu já vivia com a família no sobrado em Manaus e entendi: tinha que adaptar Dois Irmãos. Como ninguém ia me chamar para escrever o roteiro, eu mesma tinha que fazê-lo. Navegar rumo ao Norte, ainda que com o risco de um naufrágio iminente.

Foto: Maria Camargo / TV Globo

Com o tal sorriso no canto do olho, Arturo, o analista, me perguntava em silêncio: qual é o tamanho do seu desejo? E eu agarrei o livro tal como Zana — alguns anos depois, na televisão — agarraria a mão do filho preferido para que ele não fosse embora.

SEGUNDO ATO

Como Nael, “naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas”. E o Milton, pasmem, prestou atenção. Leu essas primeiras linhas, gostou, confiou, me vendeu os direitos do livro. Mas ainda eram só palavras. Palavras apaixonadas, é verdade, mas palavras. E, como disse Clarice (Lispector), “o que importa não são as palavras, é o sussurro por trás das palavras”.

Foto: Maria Camargo / TV Globo

Transportar um livro para outra linguagem é muito mais do que simplesmente ilustrar ou retirar às pressas do original o que em princípio funciona, como um batedor de carteiras. Não existem receitas, fórmulas ou mapas confiáveis para atravessar um rio como esse.

O projeto caminhou devagar e acabou voltando para a Globo, já numa parceria com Luiz Fernando Carvalho. Quase aconteceu e deixou de acontecer algumas vezes — ele, o Tempo, foi se tornando personagem importante também nessa história.

“Tenho cert6eza, tudo a seu tempo, nosso sonho se realizará”. Detalhe de um dos primeiros e-mails trocados por Maria Camargo e Luiz Fernando Carvalho.

Em meio a muitos outros trabalhos, minha bússola nunca deixou de apontar para o Norte. Fichas com cenas se espalharam pelas paredes da casa, os personagens se tornaram cada vez mais íntimos. Assim como o psicanalista ouvia os sussurros por trás das minhas palavras, aos poucos passei a ouvir os sussurros de Zana, Halim, Yaqub, Omar, Domingas, Rânia e Nael ao pé do ouvido. E só então pude, finalmente, reinventá-los.

Fichas com cenas se espalharam pelas paredes da casa, os personagens se tornaram cada vez mais íntimos”

TERCEIRO ATO

Faltava meia hora para a estreia quando houve o estouro e a labareda. Depois, o apagão. Black out.

Um extintor apagou o fogo no transformador, uma gambiarra salvou a noite. Na tela da televisão, as palavras do Milton se transformaram nas minhas, as minhas se transformaram nas imagens de Luiz Fernando, tudo se tornou uma coisa só. E então eu soube: apesar de todos os desvios de rota, a bússola me levou para o lugar certo, no Tempo certo.

O primeiro encontro de Luiz Fernando Carvalho, Milton Hatoum e Maria Camargo.

Em todas as incontáveis leituras que fiz do livro até hoje, nunca deixei de me emocionar profundamente ao ler uma frase: “Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras” — e lá vou eu chorar de novo.

Ao longo de quase quinze anos, Dois Irmãos me fez abrir portas trancadas, revirar a terra, encontrar ossos há muito sepultados; me deu coragem para encarar meus fantasmas, meus loucos, meus mortos; aceitar e compreender afetos que não controlamos.

Foto: Maria Camargo / Acervo Pessoal

Se eu sofri? Só um pouquinho. Na vida, a gente sabe, há sofrimento bem maior do que escrever, ou esperar. Arturo Blanco, meu argentino querido, morreu há pouco mais de um ano. E agora tenho que me despedir também dessa história.

Inútil tentar me agarrar à margem, ao barco, ao mastro — o rio corre e o Tempo não deixa nada no lugar, como Halim ensinou a Nael, e Nael me ensinou.

Foto: Maria Camargo / Acervo Pessoal
Foto: Vicente de Mello

Da obra de Milton Hatoum, Dois Irmãos é uma minissérie de 10 episódios, escrita por Maria Camargo, com direção artística de Luiz Fernando Carvalho. Confira alguns capítulos que estão disponíveis para assinantes do Globoplay.

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