Domingadas # 2 — A ‘Pantomime’ de Santos x Palmeiras

Joshua Law
Domingadas
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5 min readMar 29, 2018

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Na Inglaterra, durante a época de natal, tem uma tradição nos teatros do país. Uma espécie de peça, chama-se ‘pantomime’, toma conta de todos os palcos, do Norte ao Sul. São peças populares, nos dois sentidos da palavra, feitas principalmente para crianças e jovens, ou adultos que ainda se acham crianças. Atendem, então, a todos nós.

As ‘pantos’, como são chamadas, incluem canções, palhaçadas e piadas sugestivas (para a diversão das crianças grandes). E o mais importante, chamam a audiência para participar, gritando e cantando junto aos atores.

Têm várias histórias diferentes, normalmente baseadas em contos de fada ou histórias tradicionais infantis. É comum ver versões adaptadas de Peter Pan, Aladdin ou A Pequena Sereia, entre muitas outras. Independentemente da história escolhida, todas ‘pantos’ têm algumas coisas em comum.

A personagem principal, o herói, é normalmente um rapaz interpretado por uma jovem atriz. A peça quase sempre inclui a mãe desse rapaz, uma personagem humorística, interpretada por um homem famoso e mais velho (cuja carreira está muitas vezes em declínio, portanto está precisando do dinheiro). Tem a fada-madrinha (uma mulher famosa, também com a necessidade de encher a conta bancária) e um burro (dois atores vestido de burro, na verdade). Também, claro, há o vilão e seus capangas.

Como disse antes, a plateia faz parte do espetáculo. Responde às perguntas dos atores, canta junto, torce para o herói, e, quando o vilão entra, vaia e apupa. É uma experiência divertida. Se você, por acaso, estiver na Inglaterra em dezembro ou janeiro, recomendo.

O que isso tem a ver com Santos perdendo de 1 a 0 para Palmeiras no jogo de ida das semifinais do Campeonato Paulista? Bem, deixe eu explicar. Essa tradição de ‘pantomime’ não existe, até onde eu sei, nas terras brasileiras. Porque não precisa. Tem o futebol.

Eu falei que a coisa mais importante nas ‘pantomimes’ é a participação da audiência. É o que as separa de outras peças mais sérias e as torna mais alegre. Também é no futebol. Nós, torcedores, gostamos de pensar que temos uma influência no espetáculo que pagamos para assistir. E temos, na minha opinião. Mas não importa se realmente temos ou não, o que importa é a sensação de ter, a sensação de fazer parte do drama.

Simon Critchley, no seu livro ‘What we think about when we think about football’, diz que “Futebol é o teatro de identidade — família, tribo, cidade, nação… Futebol é o teatro da diferenciação que se revela com os jogadores e torcedores encenando o seu drama, vigiados pela força do destino.” O destino não é somente o destino dos jogadores. É nosso. O drama não é assistido, é vivido. Ainda mais no Brasil, talvez, do que em outros países.

A audiência — no caso de futebol, a torcida — canta junto aos atores, responde às ações, torce para o(s) herói(s), e vaia e xinga os vilões e seus capangas. Quando o vilão surge no palco durante uma ‘panto’, a plateia grita, “He’s behind you!” (“Ele está atrás de você!”). Durante uma partida de futebol, grita, “Ladrão!” ou “Ê, juiz, vai tomar [um picolé].”

Nesse jogo entre Santos e Palmeiras, no Pacaembu, o grande vilão foi o Lucas Lima, ex-jogador do alvinegro praiano, em seu primeiro encontro com a torcida do Santos depois da transferência para o rival alviverde. Cada vez que tocou na bola — e foram muitas durante o primeiro tempo por causa do domínio do Palmeiras — a torcida vaiava e xingava. Aliás, espero que a mãe do Sr. Lima não estivesse presente, pois foi chamada de várias coisas aqui irrepetíveis.

A contratação do Lucas não teria sido possível sem a intervenção da fada-madrinha do Palmeiras, Leila Pereira. A dona da Crefisa — apesar do novo regulamento restringindo os gastos da empresa com o clube de Barra Funda — tem dado uma nova cara ao Palmeiras, espalhando seu pó mágico e ajudando a montar um dos elencos mais fortes da América. Ela certamente não precisa encher a conta bancária, como os atores das ‘pantos’. Ao contrário, gostaria de esvaziá-la mais do que permitido.

O capanga também foi devidamente insultado e vituperado quando apareceu. Estou falando, obviamente, do Felipe Melo, o jogador empregado para proteger o cérebro do time, parar bater em qualquer um que chegue perto. Aos vinte do primeiro tempo Melo entrou muito forte no Diogo Vitor, mais um menino da vila que está surgindo sob o olhar do Jair Ventura, provocando ainda mais xingamentos da plateia.

Diferentemente de uma história de criança, porém, o herói desta peça não fez parte desde o começo. Necessitava a participação da audiência para o rapaz entrar no palco. Depois de um primeiro tempo sem grande destaque para o time de casa, os torcedores do Peixe começaram a gritar o seu nome. “Rodrygo! Rodrygo!” Jair ouviu e atendeu aos pedidos.

Rodrygo, o mais novo raio a cair na Vila Belmiro, entrou para tomar seu lugar ao lado do Renato, o famoso veterano cumprindo o papel de mãe para essa nova geração de meninos. O Renato de hoje não é mais o jogador de 5 ou 10 anos atrás, mas é indispensável na equipe. Usa a sua experiência para manter equilíbrio emocional quando o momento não é favorável.

Infelizmente, para os quase vinte mil santistas que assistiam das arquibancadas do Pacaembu, o último ato de um jogo de futebol não é predeterminado, como é no teatro. O herói entrou, mas não conseguiu salvar o dia. Um belo chute logo depois da sua entrada, a melhor chance do Rodrygo no jogo, parou no goleiro palmeirense, Jailson.

Palhaçadas também tiveram. E foi o próprio Jailson que as forneceu. Com o placar parado no 0 a 1, que serviu às necessidades alviverdes, ele começou a se jogar no chão, pedindo atenção para lesões inexistentes. Não que é culpa dele, nem somente ele que faz. Todos arqueiros sul-americanos adotaram o mesmo hábito para desperdiçar tempo e quebrar o ritmo do adversário, certamente às ordens dos treinadores. Essa palhaçada, porém, não é engraçada, como são as palhaçadas nas ‘pantos’. Só estraga o espetáculo.

E, quando o fim já estava chegando, entrou a personagem para completar o cenário. O burro! Desta vez interpretada por Jair Ventura. ‘Burro’ não é a minha palavra, mas a palavra usada por muitos santistas em volta de mim no Tobogã, setor mais popular do velho estádio. Reclamaram do estilo de jogo fechado, estilo do Jair mas não do Santos, e dos dois empates de 0 a 0 com Botafogo-SP nas quartas de final, nenhum gol nos 180 minutos contra um time do interior.

O Jair precisa de tempo para trabalhar? Talvez. Mas ele também tem que se adaptar aos desejos estilísticos da torcida santista. Não é um clube qualquer. Se não, a plateia vai participar do espetáculo ainda mais, pedindo a cabeça do treinador. Infelizmente, esse é o tipo de participação que os diretores brasileiros mais ouvem.

Ida da Semifinal da Série A-1 do Campeonato Paulista de 2018 (24 de março)
Santos 0 x 1 Palmeiras
Pacaembu — Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho — São Paulo (SP)

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Joshua Law
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Freelance multimedia journalist living and working in São Paulo, Brazil. Ft. BBC World Service, The Blizzard, The Set Pieces and GiveMeSport, among others.