A quem pertence uma rua?

Na Rua dos Andradas, em Porto Alegre, ambulantes se misturam ao comércio tradicional provocando um debate sobre o uso dos espaços públicos

Donos da Rua
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4 min readJul 4, 2018

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Dispositivos eletrônicos, roupas, brinquedos preenchem as calçadas da Rua dos Andradas em Porto Alegre. (Imagem: Artur Colombo)

Por Anderson Guerreiro e Artur Colombo

- Nós não podemos ficar aqui. É um local público. Eles podem vir e recolher nossas mercadorias.

- Por ser público tu não achas que poderia ficar?

- Não é bem assim.

O diálogo acima ocorreu na Rua dos Andradas, no Centro de Porto Alegre, numa manhã de sábado do mês de junho. Uma mulher, que aparentava ter entre 40 e 45 anos, vendia roupas usadas expostas no chão ou dentro de duas malas. Nosso propósito, ao falar com ela, era tratar de um forte e crescente cenário de brechós que ocupa não só salas comerciais, mas também a rua. A recusa em falar conosco veio de um simples motivo: ela não poderia estar ali.

Nos últimos dois anos, a presença de ambulantes cresceu de maneira exponencial na Rua dos Andradas, segundo a prefeitura. Quem costuma transitar pela região nota, visualmente, este aumento principalmente no percurso da Caldas Júnior até a Marechal Floriano, no trecho em que carros não são permitidos. Afinal, quem são esses ambulantes? Por que sua presença na área central de Porto Alegre aumentou tanto?

Segundo o diretor de Promoção Econômica da Prefeitura de Porto Alegre, Luís Antônio Steglich, o município faz as devidas fiscalizações não apenas nesta região, mas em toda a Capital. A crescente presença dos ambulantes nas ruas é, segundo Steglich, fruto da crise econômica mais recente. “Temos, aí, um agravo da crise econômica e, também, a possibilidade de arrecadação maior do que num emprego formal, em alguns casos, e mesmo uma flexibilidade da jornada de trabalho”, frisou.

Presidente do Sindicato dos Lojistas do Comércio de Porto Alegre, o Sindilojas, Paulo Kruse credita parte do aumento dos ambulantes nas ruas da Capital à imigração dos senegaleses. Há cerca de dois anos eles começaram a chegar em maior número a Porto Alegre e o comércio das ruas foi inflado. O dirigente aponta, como reflexo deste movimento, uma queda das vendas do comércio regular. “Diminuíram em 30% os empregos, ou seja, diminuiu também a arrecadação de impostos”, destacou Kruse.

Steglich e Kruse representam, respectivamente, o poder público e os lojistas do comércio regular de Porto Alegre. A ambos a Rua dos Andradas significa um ponto lucrativo para a Capital e que, deste modo, deve ser preservado. Como ficam, então, os ambulantes? O que as ocupações dos espaços públicos significam para estas pessoas?

A crise econômica é um dos fatores que aumenta o comércio irregular de ambulantes na capital. (Imagens: Artur Colombo)

Ao conversar com a ambulante citada no início desta matéria, ela afirma ter consciência do estado público que a via que ela ocupa possui. Sendo assim, quando questionada sobre a legitimidade de suas ações e das ações do Estado de coibir a prática mesmo estando em um local público, ela explica que, mesmo sendo público, não poderia estar ali. “Não é bem assim”, disse ela. Outro ambulante da Rua dos Andradas que concordou em conversar conosco conta que, desempregado há cinco meses, encontrou na venda de eletrônicos uma forma de renda. Ele reconhece a ilegalidade do seu trabalho, mas justifica dizendo que assim como todos os outros comerciantes da Andradas, a venda dos produtos na rua é o sustento da sua família hoje.

Mesmo considerados ilegais pelos órgãos públicos e pelos comerciantes locais, o depoimento destes ambulantes coloca em dúvida o estado democrático da rua. Por outro lado, sabe-se que o contrabando de eletrônicos e outros produtos pirateados encontra, nos ambulantes, uma forma de chegar ao consumidor final e, com isso, burlar o sistema. Apesar disso, a permanência destas pessoas na rua continua gerando desemprego, tendo em vista a redução do consumo no comércio regular, alega o Sindilojas.

A Diretoria de Promoção Econômica da Prefeitura de Porto Alegre recolhe materiais em suas operações na região. “Tudo o que for produto fruto de pirataria ou que cause risco à saúde do cidadão é encaminhado para a destruição, após ser apreendido. Roupas e frutas (em condições de consumo) são enviadas a entidades assistenciais”, afirmou Steglich.

Mesmo sem resposta, o embate entre a lei e a necessidade continuam fazendo parte do cotidiano porto-alegrense. De um lado, a defesa das normas vigentes quanto à proibição da presença de ambulantes naqueles espaços. De outro, um grupo crescente e considerável de pessoas que se refugia na rua e, ainda que caiam em uma prática ilegal, ali permanecem. A crise econômica atinge ambos os lados e uma equação de difícil dissolução está posta: em que medida esses ambulantes conseguirão se colocar no mercado formal e saírem das ruas?

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