O quão múltipla é a rua onde você anda?

Donos da Rua
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7 min readJun 6, 2018

Uma tarde de domingo na Redenção, em Porto Alegre, materializa a diversidade dos espaços públicos

Por Anderson Guerreiro e Artur Colombo

Apesar de ser uma palavra de apenas três letras, a rua se abre para uma infinidade de conceitos quando a abordamos não apenas como uma localização geográfica, mas também como um espaço a ser ocupado. Sendo um espaço, o conceito de rua é transformado por aqueles que o ocupam. Adilson da Silva, 79 anos, Manohara Saciputra Das, 24, Stevin Silva, 40, e Anderson Gonçalves, 33, possivelmente não se conheçam, provavelmente têm estilos de vida distintos, mas os quatro ocupavam diferentes pontos do Parque Farroupilha, a Redenção, em Porto Alegre, na tarde de 20 de maio, o primeiro domingo realmente frio do ano que mesclava momentos de sol com chuva fraca.

O Brique da Redenção, que em todos os domingos leva pelo menos 300 expositores para o parque, chega a reunir 50 mil pessoas em um único dia, segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Porto Alegre. Foi neste espaço que buscamos e encontramos o âmago do conceito de rua como um ambiente que permite interações diversas entre personagens igualmente díspares. A Redenção foi, naquele domingo, palco para que a arte fosse levada ao público, seja através da música ou do teatro em miniatura. O parque deu guarida, também, à disseminação da sabedoria dos Hare Krishnas, em um de seus extremos, acolhendo manifestações de ativismo social e cristão, em outro.

A Redenção é um dos pontos mais ocupados de Porto Alegre aos finais de semana. Imagem: (Artur Colombo)
Veja, no vídeo, o que dizem os quatro personagens sobre a ocupação da rua.

Adilson da Silva sorri com grande facilidade, seja enquanto toca um par de bongôs ou um pandeiro, seja enquanto conversava conosco. Bancário aposentado, tem na Redenção, há cinco anos, um ponto de encontro com outros amigos para fazer música. Clássicos da segunda metade do século passado integram a maior parte do repertório que mescla momentos de instrumental solo, como em Have you ever seen the rain, facilmente identificável, com outras músicas cantadas. Ele tem 60 anos de música e coleciona histórias da cena cultural portoalegrense de outrora. “Participei dos grandes conjuntos melódicos cujo nome maior, na época, foi Norberto Baldauf. Tive o prazer de tocar com Elis Regina. Não é a gente querer se gabar, mais foi um momento muito emocionante. Participei do Conjunto Flamingo, que foi um dos grandes conjuntos na época do conjunto melódico de Porto Alegre. Os maiores bailes da reitoria — quem lembra ainda do baile da reitoria -, eu participei, e grandes bailes de debutante no Clube do Comércio, Sogipa, Leopoldina, União.”

Adilson (centro) se apresenta com amigos no parque há cinco anos e orgulha-se da trajetória musical. Imagem: (Artur Colombo)

A menos de 20 metros de onde Adilson e seu grupo tocavam, um outro pequeno coletivo abordava, com livros nas mãos, quem por ali passava. A maioria ignorava. Eram Hare Krishnas e disseminar conhecimento espiritual era o objetivo deles. Manohara Saciputra Das carregava consigo as obras Em busca do verdadeiro eu e Segredos do Oriente, livros sagrados chamados “vedas”, que eram entregues a quem quisesse em troca de qualquer contribuição espontânea. Hare Krishna não é uma religião, mas um movimento e Krishna significa ‘o Todo-Atrativo’, ou seja, Deus. “Estamos nas ruas de domingo a domingo, com chuva ou com sol, distribuindo livros. A gente compreende essa responsabilidade de beneficiar as almas com essa literatura”, afirma Manohara. Ele vestia a tradicional roupa de devoção dos Hare Krishna e tinha, no nariz e na testa, a pintura que os adeptos do movimento geralmente ostentam, feita a partir de argila de rios da Índia considerados por eles sagrados.

Tentamos, por cinco vezes, conversar com populares que passeavam pelo Brique da Redenção naquele domingo. As desculpas variavam e os depoimentos que colhemos foram, ao cabo, de pessoas que estavam no parque motivadas por algo que não era somente andar e aproveitar o domingo. Stevin Silva era, como Adilson e Manohara, uma dessas. Ele circulava ao lado do espelho d’água, tradicional ponto do Parque Farroupilha, e abordava pessoas sentadas nos bancos de madeira. Na mochila, às suas costas, soubemos depois que havia kits com quatro sacos de lixo cada: um de 100 litros, um de 60 litros e dois de 20 litros. Ele faz parte do Desafio Jovem Maranata, que fica na Parada 42, na Vila Universal, em Viamão. Trata-se de um espaço, ligado à Igreja Evangélica Pentecostal do Ministério Maranata, que acolhe pessoas em situações de rua e que dela queiram sair e, principalmente, dependentes químicos. “A nossa missão é tirar os moradores de rua e recuperar os dependentes químicos, só que não temos ajuda do governo. O que mantém nosso prédio de pé são as vendas feitas por mim e meus colegas. Outro dia também chegamos com a vida destruída lá e hoje graças a Deus a gente tá de pé e vende (os kits de sacos de lixo) para que essas pessoas que chegam lá possam ficar nove meses, que é o tempo do tratamento, sem pagar um real, basta querer mudar de vida a aceitar Jesus”, conta Stevin.

No entorno do Monumento ao Expedicionário, o popular Arco da Redenção, uma série de manifestações coletivas ocorria naquela tarde de domingo, entre elas uma que propunha discutir o suicídio e outra, numa barraca de cerca de 15 metros quadrados, trazia as caixas de espetáculo teatral em miniatura do Coletivo Caixa de Pandora. Naquele domingo, o coletivo comemorava um ano. Anderson Gonçalves lidera o grupo formado por vários artistas independentes que veem no teatro lambe-lambe uma forma de ocupar a rua com essa expressão artística. “Basicamente a forma de atuação do teatro lambe-lambe é na rua. Dentro do coletivo nossa preocupação, quando fundamos há um ano, era reocupar espaços que estavam sendo abandonados, os parques, as ruas, ir para as festas e eventos de rua que às vezes estavam virando só em bebida e não tinham atividades artísticas. A gente começou a colocar essa proposta e, para nossa surpresa, foi muito bem aceita”, enfatiza Anderson. São dois ou três minutos de história dentro de uma caixa. O espectador senta num banquinho, geralmente baixo, coloca fones de ouvido e fixa a cabeça em um buraco feito na caixa. Pode se ter, em alguns casos, mais de um espectador simultâneo, dependendo de como a caixa foi montada.

Manifestações coletivas diversas se reúnem próximo do Monumento ao Expedicionário. Imagens: (Artur Colombo)

O que Adilson, Manohara, Stevin e Anderson têm em comum? Eles e sua música, espiritualidade, religião e teatro têm a rua como palco, como espaço que os acolhe, que os permite circular, se expressar, conversar. A rua, com eles, não é apenas uma, é várias, é múltipla. Eles estavam próximos geograficamente naquela tarde de domingo, mas talvez distantes em relação às motivações que os levaram a ocupar a Redenção num mesmo momento.

“Eu acho que a rua é maravilhosa. Nós nos deparamos com diversos tipos de pessoas. É mais do que uma escola de psicologia para nós entendermos quem passa, quem não passa, quem gosta, quem não gosta. Nós queremos chegar a todos”, pontua o senhor Adilson. A rua é da sua música e de seus amigos.

“Para começarmos a falar sobre estarmos na rua temos que compreender quem é o dono dela. Nós compreendemos que Krishna, deus, é o proprietário de tudo. Nenhum homem e nenhuma pessoa é proprietário de nada. A rua não é propriedade de nenhuma pessoa em particular e, a partir dessa compreensão, a gente entende que pode fazer um uso das coisas e esse uso deve ser em harmonia”, afirma Manohara. A rua é o espaço de compartilhamento da sua espiritualidade e filosofia.

“Eu creio que pode haver uma transformação dessas pessoas que não estão nem aí para o próximo, mas é meio difícil. Eu vejo como mais fácil uma mudança, uma transformação de Deus naqueles que tão morando debaixo da ponte do que nesses que estão aí”, afirma Stevin sobre uma considerável parcela de pessoas que ele aborda e que sequer o ouvem. A rua é o espaço de convencimento, de ativismo, de abrir os olhos das pessoas para problemas tão próximos que parecem tão distantes.

Quatro histórias, três letras, um espaço, diversos significados. Estas pessoas aqui apresentadas mostram uma face da rua que jamais havíamos visto desta forma. Isso porque cada um tem um olhar sobre a rua à sua forma. Apesar dos múltiplos isolamentos cotidianos, aos quais Manohara faz menção, a rua se coloca como um espaço de encontros e de constantes cruzamentos de vidas diversas. O espaço democrático da rua precisa, segundo Adilson e Anderson, ser reocupado com arte, seja ela qual for. A rua é, também, o espaço que nos possibilita vermos e notarmos os invisíveis, segundo Stevin. A rua democrática jamais será uniforme em cores, credos, gêneros, línguas, estilos. Ela será uma mescla e uma grande composição de tudo o que nela passa, como é a Redenção, num domingo frio e chuvoso de maio ou em qualquer outra data.

Confira alguns cliques feitos pelo repórter Artur Colombo:

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Das ruas emergem narrativas que merecem ser contadas por 16 estudantes de jornalismo curiosos em descobrir boas histórias. Aqui, você encontra os Donos da Rua.