ONG de Estância Velha presta auxílio a moradores em situação de rua

Donos da Rua
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8 min readJun 20, 2018

A Praça do Imigrante, em Novo Hamburgo, é um dos espaços beneficiados pelo trabalho da ONG, além de outras 80 cidades no Estado. Conheça aqui histórias de pessoas que vivem no local

Moradores em situação de rua comendo sopa distribuída pela ONG Mãos que Movem o Mundo. (Imagem: Matheus Miranda)

Por Matheus Miranda e Stephany Foscarini

Era por volta das 19h40 em uma noite gelada de domingo. O painel registrava 11º C e o movimento estava fraco nas ruas do centro de Novo Hamburgo. Quem passava pela Praça do Imigrante, mais conhecida como Praça das Pombas, observava o que estava acontecendo. No entorno do local havia moradores em situação de rua procurando um lugar para dormir naquela noite gelada. Esse é o local onde a ONG Mãos que Movem o Mundo, de Estância Velha, se reúne todos os domingos para fazer janta aos moradores em situação de rua.

(Imagens: Matheus Miranda)

No ponto principal da praça encontravam-se pessoas dispostas a ajudar. A sopa estava sendo preparada pelas voluntárias da ONG, enquanto os moradores em situação de rua aguardavam pelo alimento. Alguns são conhecidos, enquanto outros vêm até o local, humildes e tímidos. Há também os mais extrovertidos, apesar das situações adversas. O objetivo da ONG é simples: ninguém pode passar fome e sede.

Gledson Gazoli, 35 anos, é conhecido entre os moradores que vivem nas ruas de Novo Hamburgo. Presidente fundador da ONG Mãos que Movem o Mundo, ele lembra que toda essa mobilização de ajudar ao próximo começou na sua festa de aniversário de 22 anos, quando pediu para que todos os convidados trocassem os presentes por dois quilos de alimentos não perecíveis. “No final da festa, deu em torno de 400 quilos de alimentos e eu pensei ‘e agora, o que vou fazer?’. Foi então que distribui esses alimentos nos bairros carentes de Porto Alegre. A sensação de ajudar essas pessoas e ver a felicidade delas mexeu demais comigo. Eu voltei pra casa com o sentimento de que deveria dar continuidade neste trabalho”, recordou.

Voluntários da ONG no preparo da sopa para os moradores de rua. (Imagem: Matheus Miranda)

De acordo com Gledson, a grande maioria dos moradores de rua são conhecidos pelos voluntários da ONG.” Tem um deles que eu tirei das ruas há oito meses e coloquei para morar comigo. Fiz uma viagem à Búzios, no Rio de Janeiro, e quando voltei ele tinha roubado toda minha casa, isso faz uns dois meses”, contou. Atualmente, o homem está vivendo nas ruas novamente. “Nos primeiros dias após esse caso, os policiais me perguntaram se eu gostaria de encontrar ele. E eu queria que ele se ferrasse, mas não consigo ter esse sentimento. Apesar de tudo, eu sinto saudades dele e de tudo que fiz por ele, de tudo que ele fez por mim. Meu sentimento é de pena, ele teve tudo e não soube aproveitar”, lastimou.

Questionado sobre qual das realidades mais o emocionou no decorrer desses 13 anos de trabalho na ONG, Gledson rememorou um caso que lhe chamou atenção. “Durante um dos voluntariados, fui ajudar um morador de rua. Ao tirar o papelão que o cobria, me deparei com ele comendo seu próprio punho. Isso faz três anos. Ligamos para a Samu, a qual não foi por se tratar de um morador de rua. Essa foi a cena mais chocante que presenciei: ver ele comendo sua própria pele”, desabafou.

Voluntariado faz bem

Fernanda Mayora, 40 anos, atua como voluntária da ONG todos os domingos. Ela já participou de outros projetos como voluntária, mas foi através de uma amiga que conheceu a ONG de Estância Velha. Desde então, se engajou nas atividades e, no início deste ano, começou a participar diretamente das ações junto aos moradores em situação de rua.

“Eu já pensei nas várias razões que me fizeram entrar neste projeto e, umas delas, inclusive, é meio egoísta, pois penso estar ajudando quando na verdade vejo que eu é que estou me ajudando. Eu converso com eles, conheço a história de vida deles e vejo o quanto eles têm para ensinar sobre humildade e batalha de vida”, revelou.

Voluntária há quase dois anos, Fátima Ferreira, 45 anos, revelou todo o preconceito que ainda perpassa o trabalho junto a moradores em situação de rua. Segundo ela, é comum as pessoas questionarem as razões que a fazem “ajudar esses vagabundos”.

Na opinião de Fátima, não importa o motivo pelo qual as pessoas estão na rua, mas sim ajudá-las a mudar de vida. “E daí que muitos bebem ou usam drogas? Se eu estivesse nessa vida, também iria beber. Só assim para aguentar”, destacou.

Apesar do preconceito em relação ao trabalho voluntário, Fátima também enaltece as muitas parcerias construídas ao longo do tempo. Segundo ela, o trabalho da ONG é tão conhecido que os seus vizinhos frequentemente levam cobertores, alimentos e roupas até a sua casa.

Conheça o lado de quem sofre nas ruas hamburguenses

Seu Silvano, como é chamado pelos colegas, está há dois anos nas ruas. O que mais chama a atenção nele é que apesar de todas as dificuldades, não perde o sorriso no rosto e a oportunidade de fazer brincadeiras com todos. Quando questionado se queria conversar, logo deu um sorrisão e aceitou. O semblante no rosto imediatamente mudou quando começou a relatar a sua história de vida. O homem, que estava numa cadeira de rodas comendo a sopa distribuída pela ONG, nasceu com paralisia infantil. Aos 40 anos, relembra já ter sofrido muito ao longo dos anos. “Se eu sair da rua até estranho, porque me acostumei. Posso tentar arrumar um lugar, mas não vou conseguir ficar. Tenho amigos aqui”, contou.

Silvano é um dos moradores que preferem a liberdade das ruas. (Imagens: Matheus Miranda)

Ele disse que após a morte do pai, a família se espalhou e cada filho foi para um lado. A mãe, ainda viva, mora sozinha, mas Silvano prefere viver na rua para não incomodá-la. A relação com a família, mesmo pouca, continua. O morador vai de ônibus visitar a mãe e os irmãos, mas comentou que não quer ficar trancado entre quatro paredes. Na opinião dele, liberdade é ficar na rua. “Quero mais é que minha família seja feliz, mas depois de grande cada um segue o seu rumo para não atrapalhar ninguém”, salientou.

A história com a mãe é um pouco mais complexa. O morador de rua confessou que não sente raiva dela. “Já processaram ela duas vezes por eu estar fora de casa. Fui lá e tirei o processo e assumi a culpa. Minha mãe ninguém vai prejudicar. Estou aqui porque quero”, frisou.

Para o futuro, Silvano pretende permanecer nas ruas. Esta é a única liberdade que adquiriu na vida e não quer trocar por nada. Como forma de sobrevivência, ele ganha moedas das pessoas que circulam todos os dias pelo centro da cidade. “Não adianta bancar o parasita. O que eu quero dizer é que não vale nada sentar aqui e ficar esperando ajuda. Bateu a fome, tenho que ter dinheiro para tomar meu café”, disse. Silvano não tem ideia de quanto ganha por dia, mas afirmou que consegue comprar um lanche ou até um moletom.

Para ele, a higiene pessoal é mais difícil de fazer nos finais de semana. Ele usa muito os banheiros das praças. “Não toma banho quem não quer, porque tem como”, comentou.

Durante a conversa com os moradores em situação de rua, um deles se aproximou dos repórteres para pedir cobertor, pois estava com muito frio. Fábio de Souza, 42 anos, parecia estar inconsciente devido ao consumo de bebida alcoólica. Mesmo assim, mostrou sua mochila com algumas poucas roupas e o papelão que usa como cobertor. “Eu durmo por aqui há 27 anos. Às vezes durmo aqui na praça, outras vezes em outros lugares”, lamentou, ao reclamar das dificuldades para dormir devido às baixas temperaturas.

Experiências adquiridas nas ruas

Há 30 anos nas ruas hamburguenses, Rogério é um dos moradores cuidados pela ONG,. (Imagem: Matheus Miranda)

A janta terminou por volta das 21h30. Seguimos até a esquina do Bourbon Shopping, também localizado em Novo Hamburgo. Para a nossa surpresa fomos muito bem recebidos pelo Seu Rogério, que estava atento aos detalhes e cuidava cada um que passava por ali. Deu para perder as contas de quantas vezes ele falou “o bagulho é louco” no meio da entrevista. Extrovertido, topou conversar com os repórteres e ainda brincou com um deles: “vou falar contigo, porque te achei bonita”. Brincadeiras à parte, o papo ficou sério e Rogério começou a contar a sua história de vida.

Deitado em um colchão com cinco cobertas em cima, hoje ele tem 61 anos, do quais 30 anos foram enfrentando as dificuldades e as rotinas do dia a dia nas ruas. Ex-presidiário, ele alegou não se arrepender do que fez. “Cumpri minha pena, mas como minha mãe havia falecido, não tinha onde morar e vim para a rua”, relembrou.

Ele informou que há muitos anos já não via a mãe pelo fato de estar preso. “Ela morreu aos 69 anos, em São Paulo. Era instrumentadora cirúrgica e auxiliar de enfermagem. A vida dela sempre foi corrida. Morei com ela até os meus 18 anos”, lembrou. Ele chegou em Novo Hamburgo depois de percorrer, a pé, o trajeto desde a capital paulista.

Mesmo com todos os contratempos e experiências nestes anos, sobrevivendo nas calçadas, Rogério confirmou ter se tornado uma pessoa melhor. “Não lembro de nenhuma vez que passei fome. Sempre tem alguém para me dar comida. Quando vim de São Paulo, parava nos postos de gasolina para pedir”, recordou.

No meio da entrevista, Rogério olhou para a repórter e disse: “vou conseguir um banquinho para tu sentar”. E assim foi a conversa toda, regada a piadas e risadas. A sensação era de que não estávamos ali naquelas condições.

“Eu agradeço a Deus, tudo é obra de Deus. Se não fosse Ele, vocês não estariam aqui. Vocês têm família e filhos, mas preferem estar aqui cuidando de um mendigo. É sinal que vocês gostam de mim”, declarou, emocionado.

Impressões dos repórteres

A experiência de sair nas ruas de Novo Hamburgo para conhecer uma realidade que está aos nossos olhos cotidianamente, mas que muitas vezes não prestamos atenção, foi única. É raro encontrar pessoas dispostas a ajudar o próximo, com muita solidariedade, e sem fazer julgamento do passado de quem mora nas ruas. Em cerca de duas horas que ficamos ali na praça, os moradores de rua foram beneficiados três vezes. Primeiro pela ONG, segundo por um homem que levou alguns cobertores e roupas para doar aos moradores e terceiro por outro homem que levou alimentos para eles. O gesto de solidariedade também estava presente ali até entre os próprios moradores. Conseguimos vivenciar a cena de um homem dando o cobertor para o outro. Este momento foi de emoção e lágrimas nos olhos entre os dois. O nosso envolvimento foi tão grande que também comemos sopa junto com o pessoal.

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