Um túnel verde em uma floresta de concreto

Donos da Rua
Donos da Rua
Published in
6 min readJul 4, 2018
Movimento da Gonçalo de Carvalho durante um domingo à tarde. (Imagem: Helen Appelt)

Por Helen Appelt e Ivan Júnior

E m meio aos inúmeros prédios dos bairros movimentados da capital é possível ver, de dentro de outros prédios, as ruas asfaltadas, os carros estacionados próximos aos meios-fios, as pessoas pelas calçadas e até mesmo alguns raros momentos de calmaria. Não há um detalhe ou acontecimento que não possa ser visualizado na maioria dessas vias. Mas a Gonçalo de Carvalho proporciona uma realidade totalmente diferente aos moradores.

As quase cem árvores do gênero tipuana formam um túnel verde por cima de toda a rua, impedindo qualquer bisbilhotagem das janelas dos prédios. Esse túnel forma uma espécie de proteção aos olhares de quem gosta de admirar a movimentação, ou local de aconchego àqueles que querem evitar o sol escaldante de Porto Alegre no verão. A sombra se faz presente ao longo dos 500 metros de extensão. Em dias úmidos, o paralelepípedo molhado realça o reflexo do verdejante das árvores, dando um charme a mais na paisagem.

Segundo os moradores mais antigos, as árvores que atingem quase a altura de um prédio de sete andares em alguns casos foram plantadas na década de 30 por alemães que vieram trabalhar na cervejaria Brahma. Eles residiam na Gonçalo de Carvalho e reclamavam do calor, por isso, resolveram plantar as tipuanas. Com o tempo, a vizinhança passou a gostar das árvores, inclusive solicitando a ajuda de técnicos da prefeitura para a formação do túnel verde.

Em meio a esse cantinho de natureza na capital, a Gonçalo de Carvalho oferece história, além de sua beleza. Por isso, os repórteres do Donos da Rua foram a campo resgatar alguns fatos marcantes dessa rua, considerada a mais bonita do mundo.

Em 2005, durante a construção do Shopping Total, um projeto de edifício garagem para o teatro da Ospa — Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, gerou a revolta dos moradores. O projeto, que teria recursos do Governo Federal, previa um estacionamento de sete andares, dois sendo subsolo, com saída para a Gonçalo. Além da rua ser estreita e de paralelepípedo, parte das suas árvores seriam derrubadas para a construção da obra. Como a Gonçalo não teria estrutura para suportar uma obra desse porte, um grupo de residentes e moradores da rua organizou o movimento Amigos da Gonçalo.

Para dar força ao movimento, o publicitário Júlio César Cardia, mesmo não sendo morador, se solidarizou e teve a ideia de usar a internet como forma de protesto, pois na época o assunto não era abordado pelos veículos de comunicação da cidade. Criou uma conta de e-mail e começou a se comunicar com ambientalistas de diversos países. Esse contato externo beneficiou os moradores, que passaram a receber apoio.

Segundo César, o dinheiro para a obra sairia da Lei Rouanet, pelo fato de pertencer à Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e, com essa informação, os integrantes do movimento aproveitaram para conseguir apoio. “Um dia recebi uma carta do Ministério da Cultura querendo saber se era eu quem estava divulgando o endereço deles, pois não parava de chegar e-mail sobre o caso da Gonçalo. Respondi dizendo que não e eles disseram que só podia ser eu. Precisei ser cínico. Estavam enviando e-mails da Inglaterra, da Espanha, da Itália, de toda parte”, conta. Em 2006, dias depois da morte do líder do movimento, a liberação da verba para construção do edifício foi trancada pelo Ministério Público, pois identificaram que a área não pertencia à OSPA.

Ainda em 2006, durante a Semana do Meio Ambiente, a Gonçalo recebeu o reconhecimento como “Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de Porto Alegre”, quando o prefeito à época, José Fogaça, assinou decreto tornando a rua a primeira via da cidade a receber a distinção. No documento, ficou estabelecido que a manutenção das características locais, incluindo a preservação das árvores e a manutenção do calçamento, seria responsabilidade da administração pública.

Colocação de nova placa na Gonçalo. (Imagem: César Cardia)

Rua mais bonita do mundo

Até 2008, a via do bairro Independência ainda era conhecida como o túnel verde de Porto Alegre. Contudo, naquele ano, a história da mobilização dos Amigos da Gonçalo de Carvalho foi veiculada em um blog Catalão, cujo tema central é a arborização, como explica César. Com a repercussão da publicação, um professor de biologia português ficou admirado com a persistência do grupo de moradores que, mesmo sendo pequeno, se opôs ao projeto do edifício-garagem, e escreveu em seu site pessoal que, por isso, se tratava da rua mais bonita do mundo. Desde então, se você acessar o google e colocar o termo, irá aparecer imagens e materiais da Gonçalo de Carvalho. Mesmo que o título faça menção a uma questão de ordem sentimental, a expressão passou a ser interpretada também pela sua questão estética.

Foto aérea da Gonçalo de Carvalho. (Imagem: Reprodução/Google)

Gonçalo hoje

Na tarde de domingo, 24 de junho, soprava um vento frio e fraco na rua Gonçalo de Carvalho, combinando com a temperatura característica da estação. Enquanto caminhávamos pela calçada procurando moradores, notamos que uma mulher passeava com seu cachorro do outro lado da via. Fomos ao encontro dela, que mesmo com seu animal de estimação inquieto, aceitou conversar conosco. Era Luiza Maria Gomes, moradora há 37 anos, que estava voltando para o seu apartamento. Em sua lembrança ainda está presente a tranquilidade da rua, quando os carros ainda não se faziam tão presentes. “Com o tempo, a rua se tornou bem movimentada pela proximidade de cursinhos, do hospital Moinhos de Vento e dos colégios. Mudou bastante o perfil da rua”, relata.

Luiza conta que uma das mudanças é que a rua passou a ser mão única para quem desce da Ramiro Barcelos para a Santo Antônio. As árvores que formavam uma densa massa verde que impedia ver o céu foram reduzidas devido aos últimos temporais que assolaram Porto Alegre. Além disso, a falta de poda trouxe problemas para os moradores em dias de vento, quando os galhos encostam na fiação elétrica, deixando os prédios sem energia.

Segundo os moradores, a rua passou a ficar mais movimentada depois da construção do Shopping Total. As ruas que eram desertas de veículos hoje têm as laterais ocupadas por carros, tornando-as mais estreitas. “Antes não era assim. Agora, durante a semana, sete horas da manhã não tem mais onde estacionar”, conta Dora Lisboa, moradora da rua há 50 anos.

As mudanças no cenário urbano preocupam os moradores. Da mesma forma que aumenta a movimentação pela Gonçalo, a insegurança cresce. Nos postes é possível identificar cartazes amarelos com a mensagem “área de assalto”, alertando sobre a insegurança e os frequentes roubos de carros. “A nossa rua tem bastante problema de assalto, pois é uma rua bem visada e tem muito movimento de pessoas também. Mas faz parte do progresso”, diz Luiza.

Moradores colam cartazes para alertar sobre assaltos. (Imagem: Helen Appelt)

Mesmo com a falta de reparos nas árvores e a falta de segurança, a Gonçalo é uma das ruas preferidas para um passeio a pé. Presenciamos várias famílias, casais ou grupos de amigos caminhando por ela. Avistamos um casal que descia vindo da Ramiro Barcelos. Natália Weidlich e Guilherme Alvarez são moradores da rua Santo Antônio e são fãs do clima da Gonçalo. “Estávamos voltando de um passeio e nossa carona nos deixou aqui perto. Das ruas que podíamos usar, escolhemos a Gonçalo por ser mais agradável. Se torna um passeio”, justifica Natália.

--

--

Donos da Rua
Donos da Rua

Das ruas emergem narrativas que merecem ser contadas por 16 estudantes de jornalismo curiosos em descobrir boas histórias. Aqui, você encontra os Donos da Rua.