Descobrindo a Palestina: um diário [3ª Parte]

Alex Correa
Dormi no Aeroporto
Published in
8 min readFeb 4, 2016
O centro de Jenin

Terceira parte

Encontrei Saber em uma cafeteria no centro de Jenin, um pouco depois do meio-dia. Fui recebido com um abraço empolgado, daquele que se dá em um amigo que não se vê há anos, e um sorriso que não se encontra em qualquer esquina.

Saber é um grande amigo de Thawra e carrega o mesmo espírito revolucionário da amiga. Com camisetas justas e shorts curtos, trajes nada comuns em Jenin, ele diz se sentir um estrangeiro nas ruas da própria cidade, mas caminha com a convicção de quem não se importa com a opinião alheia. A influência — tanto na atitude quanto no jeito de se vestir — veio principalmente da Europa, de onde acaba de voltar. Ele é um dos poucos palestinos com autorização para visitar o continente. Depois de estudar artes cênicas por quatro anos no Freedom Theatre, ele encontrou trabalhos temporários em curtas metragens na Holanda, onde viveu por cinco meses, e abocanhou um visto de residência por dois anos. A pele oliva bronzeada e os cabelos curtos, mas escuros, o transformam em um outsider nas ruas de Amsterdam, enquanto seu estilo de vida o deixa deslocado na cidade em que nasceu. Secretamente, Saber teme nunca conseguir se encaixar.

O Freedom Theatre fica no coração do campo de refugiados de Jenin e foi inaugurado em 2006 sobre as ruínas do Stone Theatre, um projeto similar que foi bombardeado e destruído durante a Segunda Intifada, em 2002. Hoje, o teatro é uma das maiores iniciativas culturais da Palestina, com o propósito de inserir cultura na comunidade local e promover resistência artística e pacífica. Com um orçamento apertado, eles fazem de produções originais e adaptam roteiros como A Revolução dos Bichos ou Alice no País das Maravilhas para o contexto palestino.

Em 2008, o grupo de teatro do Freedom Theatre esteve em São Paulo, na Bienal, para promover o filme Arna’s Children. Foi a primeira vez que Habeeb Al Raee, um dos atores da companhia, visitou o país e uma das primeiras que saiu da Palestina. Quando conto que sou brasileiro, os olhos dele brilham: o objetivo de Habeeb é mudar para o Rio de Janeiro no fim de 2016 e, se tudo der certo, reencontrar uma brasileira que conheceu há três meses em Jenin. Ele fala sobre feijoada e caipirinha com a paixão de um brasileiro exilado. Os olhos dele enchem de lágrimas, e os meus também.

Na noite anterior, o Freedom Theatre promoveu uma reunião para apresentar o teatro para a comunidade do campo de refugiados. Esse não foi o primeiro evento e também não será o último: desde que abriu, eles encontram dificuldades em apresentar seus projetos e objetivos para os locais. Todos sabem que o Freedom Theatre está ali, claro, mas existe resistência para aderir ao programa e, principalmente, para reconhecê-lo como uma instituição séria e digna. De uma forma geral, a população vê arte e cultura com desdém; para os adolescentes, principalmente, é difícil encontrar apoio nos pais para frequentar a escola de atores do teatro. Em um dos vídeo-depoimentos do projeto, um menino diz que seu irmão queria ser ator, “mas decidiu que teria muito mais honra se virasse um mártir de guerra”.

Saber me pergunta se tenho onde passar a noite e eu digo que não, ainda, e ele me oferece seu quarto imediatamente. A casa onde mora com o irmão e os dois sobrinhos, no centro antigo de Jenin, ainda está em processo de construção. De erguer as paredes até colar os azulejos, a ideia é fazer tudo com as próprias mãos. Entre os poucos quadros que decoram a casa, o maior, com um metro de altura, mostra um retrato do seu pai, assassinado em 2002 quando voltava para casa com os pães do café da manhã. Na época, a cidade estava sob rígido comando israelense e médicos e ambulâncias eram proibidos de socorrer cidadãos palestinos. As instruções de primeiros-socorros por telefone não foram suficientes para salvá-lo.

O quarto em que Saber dorme tem uma decoração rústica, dividida entre madeira e concreto, e uma bandeira do Brasil permanentemente pregada no teto. Saber nunca foi ao país, mas conhece bem o cinema brasileiro, sonha em visitar o Rio de Janeiro e pretende estudar português e espanhol em breve: ele me explica que, para atores palestinos, é difícil encontrar personagens que não sejam terroristas ou refugiados. “Eu não quero fazer uma carreira assim. Se eu falar outras línguas, consigo me passar por latino e fazer outros tipos de filmes”, disse.

Nos reencontramos à noite na casa de Mustafa, um amigo de infância de Saber. Ele vive em uma casa grande, no alto de uma das montanhas de Jenin, e o silêncio do seu quintal me faz esquecer por um momento de tudo o que acontece lá embaixo. Não há muitas maneiras de se divertir em Jenin: sendo predominantemente muçulmana e nada cosmopolita, encontrar bebidas alcóolicas nas lojas da cidade é impossível. Em dias de reuniões com os amigos, as alternativas são dirigir por quatro ou cinco quilômetros até a vila cristã mais próxima, onde se vende cerveja e vinho, ou recorrer ao drug dealer local para um dedo de haxixe, a droga mais popular da Palestina.

Por horas, Mustafa e Saber me contam sobre suas vidas e sobre os conflitos na Palestina. Mustafa é especialmente engraçado, com um senso de contador de histórias precioso. Sem permissão para sair da Palestina, ele atribuiu a si a missão de conhecer todos os cantos do próprio país e tem seguido o objetivo à risca. Em uma de suas últimas jornadas, decidiu percorrer 140 quilômetros de Norte a Sul do país montado em um jumento, que desistiu de caminhada 20 quilômetros depois. No ano passado, ele finalmente conseguiu atravessar a fronteira de Israel, mesmo sem autorização — e, dessa vez, sem jumento — para, aos 31 anos, ver o mar pela primeira vez.

Ainda hoje, a vigilância do exército em Jenin é constante. No início da década passada, a cidade era uma das que mais treinava homens-bomba na Palestina e, como consequência, o tratamento israelense por aqui não demonstra piedade. Na mesma rua em que Mustafa vive, a duzentos ou trezentos metros de seu portão, se vê um terreno baldio que anos atrás era a casa de um homem-bomba.

As noites na Palestina costumam ser calmas, pouco memoráveis, e quase sempre pode-se ouvir cigarras à distância. Já era madrugada quando voltávamos para casa, as ruas iluminadas mais pela lua cheia do que por faróis de carro, e no caminho encontramos pedras e vidros estilhaçados que não estavam lá mais cedo. Mais à frente, um grupo de carros e motos parece nos esperar e é inevitável ficar apreensivo. Quando finalmente alcançamos a concentração, eles saem em disparada pelas ruas do centro da cidade sem se importar com a nossa presença. Enquanto para mim era difícil identificar o que exatamente estava acontecendo, Mustafa e Saber entenderam a situação em um piscar de olhos: um tanque de guerra israelense havia passado por ali e, como de praxe, alguns moradores se reuniram para segui-lo e apedreja-lo. Meus hosts falam do momento com nostalgia — e não com preocupação, como eu imaginaria -, lembrando de quando eles mesmos, na adolescência, lidavavam com os tanques mais como uma atração de circo do que como um inimigo letal. Mesmo que apedrejar um soldado israelense seja motivo para execução, atacar um tanque é quase ignorado pelas autoridades. As crianças subiam nas rodas e pegavam carona na lataria imponente do veículo, mas só até os soldados decidirem que a brincadeira estava indo longe demais e atirarem para cima, dispersando a multidão. O contra-ataque da população, mais como forma de protesto do que medida de prevenção, ainda faz parte do protocolo palestino.

Em algum momento, as risadas no carro cessam, as lembranças param de vir. É difícil saber quando uma memória gostosa de infância se transforma em uma recordação traumática: quando se vive em um país em guerra, elas parecem convergir a todo o tempo. “Alguém vai morrer hoje”, Saber me diz com um tom quase bem humorado para camuflar o sentido real da frase, talvez mais para ele do que para mim. Mustafa nos deixa a alguns minutos de casa, já que asruas da cidade velha são estreitas demais para veículos, e faz questão de descer do carro para nos dar um abraço forte. São carinhosos, os palestinos. Foram dois minutos entre o adeus e a porta de casa, talvez menos, e ouvimos três tiros sendo disparados ao longe, mas não tão longe, no momento em que Saber encaixa a chave na fechadura. Digo alguma coisa desajeita que não me lembro muito bem, talvez uma piada mal feita para esconder meu desconforto, mas não sou bom em disfarçar: “pode ficar tranquilo, estamos em casa agora”.

Os tiros não são mais comentados durante a noite. Eles soavam calculados, disparados por quem encontrou o seu alvo. Não como uma chacina, mas um assassinato por encomenda. Durante o chá de desjejum, que já nos esperava na mesa quando acordamos, me vejo investigando. A resposta vem curta e séria, com um tom que Saber não costuma usar.

“A gente não fala sobre isso. Já aconteceu tantas vezes, com tantas pessoas, que a gente prefere esquecer.”

Fim da terceira e última parte.

Para ler o texto completo: Primeira parte | Segunda parte | Terceira parte

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