Descobrindo a Palestina: um diário [1ª Parte]
Primeira parte
O micro-ônibus que faz a rota de Jerusalém à Ramallah deve ter boas histórias para contar. Em seu ponto de partida as ruas são bem-conservadas, como em um país de primeiro mundo, e os prédios são padronizados com pedras brancas que, durante o pôr-do-sol, deixam a cidade israelense com uma coloração amarelo-dourada, quase como ouro. Na chegada, já em Ramallah, os buracos das ruas empoeiradas, os prédios heterogêneos e as calçadas estreitas que forçam os pedestres a disputar o espaço com os carros avisam que Israel ficou para trás. Aqui é a Palestina, e é assustador descobrir que tudo pode mudar depois de 40 minutos de estrada.
Mohammad me esperava na rodoviária de Ramallah às 5 da tarde, como combinado. O conheci pela internet, no Couchsurfing, poucas horas antes de encontrá-lo pessoalmente. A proposta do site é conectar moradores de uma cidade a viajantes que, seja pela troca de experiências ou pelo baixo orçamento, preferem se hospedar na casa de locais. Quando descobri que o Couchsurfing também era ativo na Palestina, não tive dúvidas: esse seria o melhor jeito de desbravar o país.
Mohammad se revela como um homem expansivo, com trejeitos quase latinos. Os olhos negros, fundos, dão um ar de seriedade e rigidez que não correspondem à sua linguagem corporal — e nem aos seus 1.65 de altura. Ele prefere falar sobre si mesmo a me fazer perguntas, o que me conforta: ainda não sei até onde posso me abrir. Mohammad segue o alcorão à risca, mas mantém uma sede de conhecer o mundo. Como a maioria dos palestinos, ele não tem permissão para sair do país e diz que, já que não pode ir a outros lugares, traz outros lugares até ele. Em um café acima da Al-Manara Square, a praça mais movimentada da cidade, meu anfitrião me conta sobre as pessoas que já hospedou com brilho nos olhos, enumerando as nacionalidades dos visitantes com a mesma empolgação de quem fala sobre uma viagem à Paris.
Depois do primeiro chá, Mohammad me diz que não vai poder me hospedar. A mulher dele não concordou com a minha estadia: com a presença de um homem desconhecido, ela precisaria usar o hijab dentro da própria casa, o que não é uma ótima ideia no verão do Oriente Médio. A onda de calor mais recente levou os termômetros aos 40 graus, as vezes mais, e a falta de chuvas não ajuda. Em contrapartida, ele me oferece a casa do seu cunhado, Maan, um pouco distante da cidade. Eu topo.
Maan nos encontra no mesmo café e me leva até a casa dele, afastada do centro da cidade. O sol já está se pondo quando passamos por uma estrada em um bom estado, de onde se pode perceber a geografia montanhosa de Ramallah. Me lembro de Teresópolis, a cidade serrana em que cresci, mais pelas curvas e subidas do que por todo o resto. O lugar em que Maan mora sozinho é bastante modesto, no porão de um prédio, e não tem mais de 20 metros quadrados. O banheiro em estilo turco, daqueles em que se precisa fazer agachamento, e o chuveiro de onde quase não sai água são separados do cômodo principal pela única parede interna da casa. A única janela é coberta com uma cortina bege improvisada. Sobre uma cadeira, um ventilador antigo e sem grade de proteção se encarrega de fazer o escasso ar fresco do ambiente circular. Três pessoas vão dormir no espaço: eu, Maan e Samuel, um nova-iorquino que, como eu, acaba de chegar na cidade.
Maan não fala inglês e a comunicação entre nós, a princípio, é quase nula. Ele é taxista e parece bastante estressado na maior parte do tempo , já que o trânsito aqui não é dos mais fáceis, então o melhor caminho parece ser manter o meu silêncio pelo resto do percurso. Mas é só sair do movimento da cidade — das buzinas que não param, das ultrapassagens arriscadas — que ele se transforma em outra pessoa. O som do carro vai ao último volume com uma música da Taylor Swift e, de uma vez só, ele vomita todas as palavras que conhece em inglês: welcome, nice, shit e fuck.
Diferente do cunhado, Maan não liga para religião e tem um estilo de vida ocidentalizado, na medida do possível. No carro, os CDs piratas compilam os hits do momento no Estados Unidos; no canto do quarto, doze pares de tênis de marca são conservados com bastante dedicação. Ele também tem uma namorada e não é mais virgem, o que não é exatamente comum entre palestinos, e me conta tudo isso em uma conversa entre gestos e traduções sem nexo pelo tradutor do Google. Fisicamente, ele parece estar na casa dos 30 anos, mas parece ver a vida com a empolgação de um adolescente puberal.
Samuel, o nova-iorquino, ocupa a única cama da casa enquanto nós dois dormimos no chão, eu em um colchonete com o último travesseiro da casa, Ma’aam sobre um edredom dobrado. No meio da madrugada ele vira para o lado, me abraça e descansa o seu rosto no meu ombro por alguns minutos.
Hoje, Ramallah funciona como a capital virtual (ou temporária, como preferem chamar) do Estado Palestino e, além de hospedar os edifícios do governo, a cidade é um pouco mais secular que o resto do território: com alguns bares nas ruas e um fluxo intenso de pessoas, Ramallah é chamada de “Tel Aviv da Palestina”, uma comparação completamente descolada da realidade. A capital abriga 200 mil palestinos, cerca de 5% da população total do país, mas a desordem das ruas me faz pensar que alguém pode ter errado a conta. Hoje, existem quatro cidades palestinas mais populosas que a capital: Jenin (260 mil), Nablus (460 mil), Hebron (560 mil) e Gaza, que abriga quase um milhão de pessoas do outro lado da Palestina.
A população da Palestina é formada por uma maioria esmagadora de muçulmanos: 90%. Na prática, isso significa que mesmo a cidade mais moderna do país ainda esbarra em muitos dogmas religiosos. Em uma caminhada pelas ruas da cidade durante a noite, Mohammad me diz que as mulheres que usam roupas mais justas “não devem ser levadas a sério”, mesmo se usarem o hijab: “o certo é usar o hijab completo, com roupas largas, para que os homens não vejam o formato do corpo”. Quando pergunto sobre as regras de vestimenta do alcorão para homens, ele me diz que “a gente também tem regras, como não usar shorts acima do joelho”.
Ele também não consome bebidas alcoólicas, como manda o Islã, mas diz não ter problemas com os estrangeiros que bebem. Apesar disso, quando compro uma garrafa pequena de whisky e outra de vinho branco para um jantar de oito pessoas, ele me pergunta se eu não estou exagerando; quando sirvo a minha segunda taça de vinho, questiona com ironia se chegaram mais convidados e, na manhã seguinte, desperto com uma mensagem na qual ele diz estar preocupado com a quantidade de álcool que viu na casa na noite anterior.
O jantar, porém, não acontecia na casa dele. O anfitrião era Ehab, um amigo de Maan que mora no andar de cima. Mohammad já foi amigo de Ehab, também, até descobrir que ele estava bebendo — hoje, por conta disso, Mohammad diz que ele é um grande traidor. O clima do jantar foi tenso, com discussões quentes em árabe, até Mohammad ir embora. Antes de sair, ele me adicionou no Facebook e eu me lembro de todas as fotos e textos no meu perfil que expoem minha homossexualidade. Com medo, envio minhas senhas para uma amiga brasileira, que exclui ou oculta todos esses posts.
Fim da primeira parte.
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