Fiquei perdido e sem-teto em Praga

Alex Correa
Dormi no Aeroporto
Published in
5 min readMay 1, 2015

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E até que foi bem legal.

A República Tcheca foi o meu primeiro destino fora do universo latino-germânico. O tcheco, descobri lá, é uma língua eslava bem truqueira, daquelas que reramente te deixam deduzir o significado de uma palavra e que frases inteiras parecem ter sido escritas por alguém com problemas cognitivos seríssimos.

Vamos aos exemplos:

Não, eu nunca ouvi falar sobre a deep web
Ne, já jsem nikdy neslyšel o hlubokého webu

O que você botou no meu drink?
Co jste dal do pití?

Por favor, não leve o meu fígado embora, senhor
Prosím, neberte mé játra však, pane

Meu ponto de partida foi Berlim. O trajeto de trem até a estação central de Praga faz qualquer um ficar bem alvoroçado com a cidade: o cenário vai mudando, pouco a pouco, até que você se dá conta de que 1) em algum momento você tomou um ácido e todas as placas embaralharam ou 2) você chegou na República Tcheca.

Quando dá tudo certo, é fácil se empolgar com uma língua tão diferente — as possibilidades são infinitas e fica muito mais fácil conhecer gente nova no bar com o sempre eficiente "como é que faz um brinde na sua língua?". Mas, se as coisas começam a desandar, o interesse pelo exótico vira um abismo de desespero e, em um passe de mágica, você não consegue mais encontrar uma alma viva que fale inglês.

Sim, a estação da minha casa era na frente de um crematório.

Foi o que aconteceu quando, depois de levar um tempo razoável pra desvendar o transporte público da cidade (memorizar os nomes das estações ao lado quando a bateria do seu celular está para acabar não é das melhores coisas), cheguei no meu Airbnb e descobri que os hosts tinham simplesmente esquecido da minha chegada, viajado para o interior e estavam incomunicáveis. Depois de duas horas esperando, entrando e saindo do prédio graças aos vizinhos atenciosos (mas péssimos em linguagem de sinais), encontrei um café com wi-fi para ir atrás do meu plano B.

Fui expulso do café às 22h da noite, quanto já estava bem escuro e os funcionários queriam ir pra casa. Acabei me hospedando em um bairro afastado, na casa de um rapaz que diariamente me mandava mensagens no Whatsapp para saber se eu "já estava com alguma garota tcheca". Finalmente, depois de um dia cansativo, eu tinha o que um viajante precisa: um lugar para dormir e um desconhecido que me fazia perguntas inapropriadas. O que mais eu poderia querer?

De banho tomado e pronto pra começar a explorar a cidade, comecei a encontrar outros turistas confusos com a língua. Puxei todo o meu altruísmo do fundo do peito e fiz um voto pra mim mesmo de que, sempre que visse alguém perdido ou procurando informação, iria oferecer ajuda. O projeto começou bem: conheci um perdidão no bondinho e encaminhei ele pro endereço certo do hostel, do outro lado da cidade. Em um restaurante, ajudei um casal a decifrar o cardápio com o Google Translate. Em pouco tempo, me tornei o Superman de Praga: com a exceção da barriga tanquinho, da super-força e da relevância, éramos praticamente a mesma pessoa.

Mantendo meu status de bom samaritano, fui ser o herói de uma dupla de japonesas paradas na calçada com malas gigantes e caras de desamparo. Elas tentavam entender o mapa da cidade — a versão de papel, mesmo — , mas quando alguém não consegue nem reparar que o mapa está de cabeça pra baixo você sabe que ela provavelmente não vai sair dali viva. Me aproximei e elas guardaram seus celulares no bolso e fizeram de conta que eu não estava ali. Mas, quando finalmente ofereci ajuda, fui metralhado por uma série aguda de no no no no no no no no no no's. Elas foram se afastando de mim, deixando as malas onde estavam, como se eu tivesse um revólver. Gesticularam com a mão para eu ir embora, falando alguma coisa em japonês. Tentei explicar - "Estou querendo ajudar desconhecidos na rua porque quando cheguei em Praga…" — e falhei miseravelmente. Elas só iam cada vez mais longe, cada vez mais rápido, enquanto eu tentava fazer a minha própria versão do "não é nada disso do que você está pensando" (obrigado por essa frase pronta, cultura pop, mas não foi dessa vez que ela me foi útil).

Passei pelo mesmo lugar quarenta minutos depois e encontrei elas ainda ali, sentadas na sarjeta — mas, pelo menos, com o mapa na posição certa. Segui em frente. De Superman, me transformei em Godzilla. Deixei elas pra trás, a noite, em uma viela no centro de Praga.

E tudo bem, no fim, porque "de nada vale tentar ajudar aqueles que não ajudam a si mesmos". O Confúcio sabia de tudo mesmo.

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