No meio do caminho tinha uma calçada

Alex Correa
Dormi no Aeroporto
Published in
8 min readMay 11, 2015

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Toronto, Vancouver e o morador de rua que me resgatou de um acidente de bicicleta no Canadá.

Fui ao Canadá meio de surpresa, em uma viagem decidida as pressas e com pouco tempo pra planejamento. Devo isso ao maravilhoso advento dos programas de milhagens, principalmente, mas também à Copa do Mundo que estava acontecendo no Brasil e me rendeu uma bela duma folga no trabalho (vocês lembram de todas aquelas caipirinhas que a gente tomava no meio da tarde de uma quarta-feira?).

Nunca tive muito tesão em conhecer o Canadá, eu acho — talvez Québec, por ser uma região super ativa culturalmente (Arcade Fire), e Calgary, por ser aquela música do Bon Iver. Mas, ironicamente, acabei não indo pra nenhuma das duas: risquei Québec dos planos por ficar do outro lado do país e Calgary saiu da lista porque, bem, uma música do Bon Iver não é motivo bom o suficiente para se comprar uma passagem de avião.

Acabei resumindo minha visita a Vancouver e Toronto e senti bastante o antagonismo delas. As duas cidades tem um senso de oposição (e um pouco de rivalidade, também) que é interessante de se descobrir: o verde contra o cinza, a praia contra os prédios, a maconha contra a cocaína, os esportes contra o sistema de metrô expressivamente melhor. Em uma família, Vancouver seria o primo hippie e Toronto o tio punk. É mais ou menos o que rola na rixa São Francisco x Nova York ou Barcelona x Madrid, cidades que, apesar de estarem no mesmo país, representam estilos de vida bem diferentes — em outras palavras, o nosso eterno Biscoito x Bolacha (Rio de Janeiro x São Paulo).

O centro de Toronto X o centro de Vancouver
Mas, pra ser justo, Toronto também tem bastante verde.

O ar fresco de Vancouver e as ciclovias bastante amigáveis me fizeram, pela primeira vez, sair pra um passeio de bicicleta em território estrangeiro.

Como costuma acontecer com muita gente, houve um momento entre a infância e a vida adulta em que eu simplesmente parei de andar de bicicleta. Acho que é um movimento natural: na adolescência, fui deixando de fazer atividades saudáveis para dar espaço às aulas de recuperação de álgebra e ao consumo precoce de álcool. Como resultado, três coisas podem acontecer quando você decide voltar a andar de bicicleta na vida adulta:

  1. Você pode descobrir que é um ciclista nato e sair pedalando por aí com a maior auto-confiança do mundo;
  2. Dar algumas titubeadas com a falta de equilíbrio no início, mas se estabilizar depois de poucos minutos;
  3. Conseguir se manter no banco por três segundos, virar o guidão bruscamente em um reflexo desesperado, bater no poste e cair em um arbusto enquanto três desconhecidos assistem tudo isso acontecer em câmera lenta.

Mas eu levantei do arbusto, botei meu tênis de volta e tentei de novo. Da segunda vez, tudo deu certo. E pedalei até parar de sentir minhas pernas — dei a volta no maior parque da cidade, o Stanley Park, por uma trilha de nove quilômetros que divide o continente e o Oceano Pacífico e, depois, contornei todo o centro de Vancouver. Quando devolvi a bicicleta pra locadora, tive que sentar por vinte minutos até minhas pernas voltarem a funcionar. Parece que aquelas quatro vezes em que fui pra academia não me ajudaram em nada.

Minha estadia em Toronto foi mais curta. Foram quatro ou cinco dias na cidade, passando a maior parte do tempo correndo de um show a outro — era o NXNE, o equivalente canadense do SXSW. Mesmo assim, empolgado com a volta às ciclovias, consegui fazer três passeios de bicicleta: os dois primeiros acompanhado de uma amiga, a Babi, que foi uma ótima treinadora ("ali pra frente tem uma subidona, PEDALA PEDALA PEDALA!") e educada o suficiente pra disfarçar o riso quando eu fazia alguma barbaridade.

Foi em Toronto que confirmei algo que já tinha notado em Vancouver: conhecer um lugar sobre duas rodas muda tudo. No caminho entre a casa e o centro da cidade passávamos pelo High Park, com trilhas e cisnes, ou por Little Portugal, o bairro luso-brasileiro de Toronto com placas em português e casinhas fofas. No meu último dia na cidade, saí de manhã pra fazer um novo caminho: queria atravessar Toronto pela costa do Lake Ontario. O trajeto era longe, com quase 20 quilômetros de ida e volta, mas parecia bastante plano e fácil de acertar, já que tudo o que eu precisava era seguir o a ciclovia do lago. Em algum momento, porém, eu genialmente me perdi: saí do caminho silencioso e arborizado e fui parar em uma via expressa cercada de concreto, sem calçadas ou acostamento.

A única solução lógica que encontrei foi pedalar o mais rápido possível (onde meu físico-de-jogador-de-xadrez me traiu novamente) e seguir pela faixa da esquerda até encontrar uma saída. Depois de cinco minutos de bastante medo e alguma vontade de ir ao banheiro, a Calçada apareceu para salvar a minha vida. Eu poderia sair da via expressa e seguir pedalando por ela, sem riscos. Mas, querendo fugir o quanto antes, nem considerei todo o risco do plano: além de estar com bastante terra pra facilitar a queda, a Calçada era quase dois palmos mais alta que o asfalto, o que não é uma grande fórmula de sucesso quando se está a 30 quilômetros por hora (eu gosto de lembrar da história assim, na versão em que eu sou capaz de pedalar a 30 quilômetros por hora).

Eu não sei em que momento eu comecei a cair. Mas lembro bem da minha cabeça quicando no chão — meu olho, minha sobrancelha — enquanto meu ombro arrastava todo o peso do meu corpo pelo chão de concreto. Mas eu fui bem sortudo: caí na calçada e não no asfalto, onde a história teria um final mais fúnebre do que tragicômico. Tirei a bicicleta (que era emprestada e felizmente saiu sem danos) da avenida e fiquei sentado ali no canto, enquanto a adrenalina passava, as dores no corpo começavam a aparecer e o sangue escorria dos olhos até a boca.

Com toda a lenda dos canadenses serem excepcionalmente gentis e educados, eu esperei. Esperei algum carro parar e oferecer ajuda, alguém do prédio ao lado me ver pela janela e me trazer um copo d'água. Mas a ajuda não veio desse jeito: o salvador da donzela em apuros foi um morador de rua que acelerou o passo quando me viu no chão. Perguntou se eu estava bem, se podia fazer alguma coisa. Me deu uma garrafinha de água pra jogar no rosto, alguns lenços umedecidos — "deixa eu abrir essa embalagem nova aqui" — e band-aids. A mochila dele estava tremendamente bem preparada para socorrer péssimos ciclistas. Antes de ir embora, ele me disse pra eu tomar mais cuidado e riu um pouco de mim, perguntou de onde eu era e falou que assistia aos jogos da Copa do Mundo quando dava. Perguntei o nome dele, também, que não me vem a cabeça agora. Cogitei oferecer dinheiro, mas fiquei com medo de parecer ofensivo. Talvez eu devesse ter oferecido mesmo assim. Agradeci muito, a ponto dele ficar constrangido e ir embora.

Eu continuei meu rolê, com o pulso torcido e sangue no rosto, até chegar no restaurante em que planejava almoçar. Era um lugar meio sofisticado que eu tinha deixado para visitar no fim da viagem e me despedir com classe de Toronto. Eu acho que a vida me fez cair de bicicleta pra mandar um sinal claro de que eu não sou sofisticado, não. E fui ao restaurante ainda assim — minha camisa ligeiramente rasgada, suja de terra; meu rosto com cortes, como se eu tivesse levado um soco. Fui ao banheiro logo depois de entrar pra dar uma ajeitada na minha aparência catastrófica quando um menino entrou no banheiro, me viu, foi embora e falou para o pai que "o homem do banheiro parece perigoso". O pai entrou no banheiro para confirmar e também escolheu ir embora.

Voltei pra minha mesa, comi meu bife. Ainda vi metade do jogo do Brasil e peguei um avião no mesmo dia. Hoje eu tenho uma cicatriz que mais parece uma doença de pele do que uma marca de guerra. As aeromoças me desejaram uma boa tarde como se eu parecesse um ser humano normal. Os canadenses realmente são muito educados.

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