Os mil lados de Amsterdam

Ana Freitas
Dormi no Aeroporto
Published in
5 min readMay 5, 2015

--

A cidade dos nóias inofensivos, das velhinhas amigas de prostitutas, da orquestra no ponto de ônibus

A aura de misticismo em torno de Amsterdam tem mesmo razão de ser, mas eu acho que não dá pra sentir isso se você visita a cidade por três ou quatro dias. Eu morei na Holanda por um ano, numa cidade chamada Wassenaar, que fica a cerca de uma hora de Amsterdam, entre ônibus e trem — o que é quase o mesmo esforço que eu tenho quando saio de Santo André pra SP, mas menor, porque pegar ônibus e trem na Holanda é quase prazeroso. Nos meus últimos dois meses morando lá, fui pra Amsterdam quase todos os finais de semana. E pra mim, Amsterdam virou um daqueles lugares que se tornam melhores a cada vez que você visita.

Amsterdam é um lugar diferente. Pelas ruas, você quase não escuta holandês. Em um daqueles finais de semana, inclusive, parece que a cidade foi invadida por brasileiros (deve ter sido o feriado) e eu e a Marcela escutamos português o tempo todo. Mas também muito italiano, e espanhol, e inglês. O lance é que Amsterdam tem esse equilíbrio bizarro entre uma cidade funcional, cheia de habitantes locais, e uma população flutuante imensa, todos os dias da semana.

E tem uma combinação de elementos completamente opostos, mas que por algum motivo, funciona. A Holanda é um país velho, e lá as pessoas envelhecem com dignidade. Sério: saudáveis, com vida social, bem humoradas e educadas. Então não é anormal quando uma velhinha de andador cruza o Red Light District cumprimentando as FUNCIONÁRIAS, porque ela mora ali e conhece todo mundo, nem quando um senhor recusa o assento no tram porque prefere ficar de pé “com sua garota” — foi o que ele me disse.

Ela deu boa tarde a todas as moças da vitrine

E aí a cada esquina tem uma loja que vende drogas. Não são só os coffee shops, que vendem maconha e haxixe, mas as smart shops, onde você pode comprar ervas alucinógenas de toda sorte, cogumelos, drogas sintetizadas legais, sementes. Sem contar os caras que te oferecem drogas ilegais na rua.

Por causa disso, se você observar as pessoas em Amsterdam, vai ver muita gente com o olho caído e vermelho pelas ruas, ou pessoas mais assustadoras, andando rápido e olhando pra trás, pálidas, suando muito, pupilas dilatadas. Tudo isso é comum por lá.

Amsterdam tem todo tipo de artista de rua, daquelas estátuas vivas até quem se veste de bichinho — tipo, sério, uma fantasia de coelhinho, de cachorrinho — ou com máscara do pânico, sei lá, e cobra pra tirar foto. Tem o cara que toca violino de maneira sublime e um tio sujo com chapéu pedindo moedas enquanto bate as mãos nas cordas do violão sem fazer acorde nenhum, que nem quando o seu sobrinho de três anos toca. E tem moedas no chapéu dele.

Esse moço tocava violino bem, e o chapéu dele tava vazio ☹

Mas também comum é o trânsito complicado. OK, nada vai te assustar no quesito “trânsito de Amsterdam” se você vive em qualquer capital do Brasil, mas é que a cidade aqui tem outros PLAYERS. Os trams, cuja tradução mais próxima do português seria o “bondinho”, mas que se parecem mais com metrôs de superfície, correm por trilhos que muitas vezes cortam calçadões turísticos. Tem as bicicletas, que podem vir de vários lados, e os carros — especialmente os táxis, que guiam como malucos pra cima do turistas. Ah, e os canais, que muitas vezes não contam com barreiras na calçada.

O saldo é uma cidade cheia de gente com a percepção alterada, tentando atravessar a rua tendo que olhar pra cinco lados, sem esquecer que também não pode correr e cair dentro do canal, ou se distrair com a estátua viva, ou com uma mulher que de tão magra parecia uma caveira (ela certamente era doente), que tinha a coxa mais próxima de um fêmur que eu já vi em uma pessoa que anda e pra completar o cenário carregava um fuzil de plástico em tamanho real junto com a bolsa — essa é uma história real.

E o que você mais vai ver em Amsterdam é gente sendo salva de ser atropelada por um tram ou uma bike no último segundo segundo. Adrenalina e tal, turismo de aventura.

Certa vez lá, conheci uma cirurgiã que me descortinou o lado negro dessa combinação. O trabalho dela é consertar gente que acaba vítima dos encantos de Amsterdam de algum jeito, desde os que engolem cápsula de cocaína pra traficar droga pra fora do país, até os que se jogam da sacada, bem loucos de de cogumelo, ou quem quebra a perna porque caiu no canal chapado. Na madrugada desse sábado, ela trabalhou a noite inteira.

Com tudo isso, Amsterdam ainda é uma cidade que não dá, de jeito nenhum, sensação de insegurança. Toda a região central, bem pequena pros padrões paulistanos, é segura de maneira geral, inclusive para caminhar sozinha e a noite. Não significa que você não vai ver nóias, mas os nóias não incomodam — é que eles são só nóias, e essa é só uma das caracteríticas deles. Em um país com um estado social forte e uma política de drogas tolerante, ser nóia não é sinônimo de assaltante ou bandido.

E ainda que você vire a esquina e veja uma porção de homens afoitos em corredores do Red Light tão estreitos que fariam aquelas de favela parecerem confortáveis, você dobra na próxima e tem um maestro em cima de um ponto de ônibus regendo um coral de velhinhos na sacada de um teatro.

Nessa ocasião, me lembro bem, ele parou a rua — e alguns turistas ficaram maravilhados, começaram a tirar fotos e se esqueceram do tram, bem atrás do ponto. Eu salvei uma fotógrafa de ser atropelada, juro

É essa dicotomia que dá a Amsterdam a aura mágica — não é per se o fato de ter um casal de 65 anos fumando maconha no ponto de ônibus ou de você poder olhar prostitutas com lingerie que brilham na luz negra em uma vitrine. É justamente que haja todo o resto: as orquestras nos canais e os corais da terceira idade, as galerias de arte, as pessoas que vivem e trabalham ali, e que tudo conviva em relativa harmonia.

Originally published at www.oesquema.com.br on September 11, 2011.

--

--