A COPA EM VINTE DIAS #17

Deixa o menino ver o Ronaldinho

Uma Crônica sobre o jogo entre Brasil x Inglaterra, pelas quartas de final da Copa do Mundo de 2002

Drible da Vaca
DribledaVaca

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Por: Bertany Pascoal
Edição:
Vitor Magalhães

Naquela altura do campeonato, lógico, ninguém lembrava mais quem era Romário, e só o que os meninos queriam no futuro era ser o Ronaldinho — Na época, apelido dado ao Fenômeno — . Nesse dia o Brasil enfrentaria a Inglaterra do “Deivid Béquiran” (como dizia meu pai), que vinha cheia de confiança e com moral, porque já tinha vencido na primeira fase a poderosa Argentina, de Batistuta e Ortega. Foi o jogo mais cedo que a Seleção fez na copa, foi no olho da madrugada, mas naquele dia era lei no país: não dormir e ver o Ronaldinho jogar. Claro, todo esse auê feito pro nosso artilheiro atrapalhou o povo de ver que o Rivaldo tinha sido, até então, o melhor jogador da Copa. Foi às três da madrugada, mas parecia mesmo era um sonho, aquele povo todo na rua…

Os homens da vizinhança se reuniram no bar da esquina pra assistir, e a televisão, que parecia ter a idade do mundo, ficava em cima de um tamborete tão humilde que parecia que se a noite assobiasse ficaríamos sem ver o jogo. Minha mãe, pedagoga que imprimia um regime severo e quase militar aos filhos, foi contra a ideia de deixar os meninos estarem no bar junto a um bocado de adultos, “só pra ouvir o que não presta!”, dizia ela, famosa na rua por sua índole cristalina e pela moral exemplar.

Mas meu pai, que tinha o poder de adocicar qualquer pessoa com a voz, intercedeu, “Deixe, rapaz, o menino ver o Ronaldinho, os meninos vão tá tudo lá…” E quando minha mãe teve a piedade sagrada de não lhe responder, eu já estava na rua em plena madrugada, junto aos outros meninos, com a sensação irresistível de que já éramos adultos.

A maioria dos homens da rua estavam no bar. O meu tio, que gostava tanto de futebol quanto de física quântica, sempre que era jogo do Brasil se tornava o torcedor mais fervoroso que existe e, já morto de bêbado e com um cheiro insuportável de cachaça, me perguntou, “O Brasil vai jogar contra a Venesuécia hoje, né?” Meu pai entrou na conversa:

-Macho, tu já tá melado hoje de novo?

-Não, macho, só me melo agora quando tem jogo da copa…

-Tá tendo jogo de copa direto!

-Então pronto.

Quando o jogo tinha começado e já não dava pra ninguém esconder o nervosismo, o meu pai, que sempre foi o homem das brincadeiras, aproveitou pra contar a história que sempre repetia e o povo sempre ria, mais por cumplicidade do que por outra coisa. “Tinha um homem lá onde nós morava que disse que tava ouvindo o jogo do ‘Chucalho da Vaca’ contra a ‘Língua da Terra’. Era Tchecoslováquia e Inglaterra! “Hoje é nós contra a Língua da Terra”

Logo depois, o Lúcio foi tentar fazer algo que até hoje ninguém entende direito, e deixou o Owen sozinho, e o gol ficou escancarado pra ele. 1-0. Só o silêncio e o cheiro de cachaça reinaram no ambiente. A noite, naquela hora, ficou muito mais anoitecida.

O dono do bar veio lá de dentro com uma panela e umas garrafas de Coca-Cola, e disse, “Aqui, pivetada, pra vocês”. Era uma bacia cheia de uma farofa nebulosa e pedaços de carne que nem Deus seria capaz de saber de que bicho tinham vindo, e ainda soltou, “Esse é o mesmo comer do Ronaldinho, aproveita”.

Rivaldo em ação, Copa de 2002

No fim do primeiro tempo veio o gol da gente. O estrondo na televisão e do povo pulando aos gritos alvoroçados me assustaram, mas lavaram a minha alma, e logo foi farofa voando pra todo lado. O Brasil tinha empatado, no lance que todo mundo tem guardado nitidamente na memória, tanto a pedalada mortal do Ronaldinho Gaúcho quanto o tapa predestinado do Rivaldo. “Rivaldo véi, cambado, os ‘ôi’ fundo, mas pense num jogadeiro…”, disse alguém, quando o jogo tinha retomado. No intervalo, a rua se encheu de meninos; pra gente, era o Brasil brincando de Copa, e os meninos brincando de mundo, e essa é a memória mais doce que eu tenho do futebol.

Mal o segundo tempo esquentou, o Ronaldinho Gaúcho achou a gaveta na cobrança mais controversa das Copas. Só lembro do meu tio gritar, em um léxico comprometido pela embriaguez arrasadora, “Golasko, golasko, ieei!!” A Seleção venceu sofrido, como fez em quase todas as partidas. Foi aí que o céu começou a se manchar de luzes.

Pra mim, havia algo de diferente naquela Copa, e não falo pelo título. Os torcedores brasileiros que não a tiveram, deveriam ter tido a feliz chance de guardar um monte de memórias daquele mundial em que os jogos ocorriam antes de tudo, e que fossem lembranças doces e fáceis de retratar, e que elas ficassem pra sempre guardadas na santa paz, ao lado do coração.

A Copa está voltando e ainda há memórias por nascer.
Vai Brasil, rumo ao Hexa!!!

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Perfil destinado à divulgação do futebol sul-americano. Autor: Vitor Magalhães. E-mail: oficialdribledavaca@gmail.com