A COPA EM VINTE DIAS #01
“El Divino Manco”: de amador com um só braço à lenda inquestionável
A história do uruguaio que não desistiu do sonho de ser um futebolista e usou a deficiência a seu favor
Por: Leonardo Maia
Edição: Vitor Magalhães
Nascido em Montevidéu, capital uruguaia, em 1904, Héctor Castro começou a trabalhar na fábrica da sua família aos 10 anos, em um período no qual inexistia qualquer convenção em relação à prática de trabalho infantil. O garoto sempre esteve rodeado por utensílios nada lúdicos para a educação de uma criança. Martelos, chaves inglesas e serras elétricas tomavam o lugar de soldadinhos de chumbo, carrinhos de brinquedo e bolas de futebol. Em 1917, quando tinha treze anos, Héctor se envolveu em um acidente com uma motosserra e teve seu antebraço direito mutilado.
Mesmo após o acidente, o sonho do garoto que mais tarde ficaria conhecido como “El Divino Manco”, não parecia padecer. O menino tornou-se homem e foi campeão mundial por seu país, e se engana quem pensa que ele foi um mero coadjuvante, Héctor estava destinado à grandeza. Foi o responsável pelo primeiro e pelo último gol do Uruguai na primeira Copa do Mundo de futebol masculino, em 1930.
Mesmo que este feito simbólico fugisse um pouco ao seu desejo inicial de ser o último homem a defender as redes da fúria de equipes adversárias, — sim, o garoto sem a metade de um dos braços, queria ser goleiro – . El Manco entrou para a história das Copas do Mundo.
Seus primeiros treinadores o ensinaram a usar a deficiência como uma arma secreta. A ausência de sua mão fazia com que ele pudesse golpear os adversários com maior discrição, distante dos olhares do juiz. Golpear as costas, o peito ou, até mesmo, a cabeça dos rivais, não era algo que causava muitos problemas ao avanzado uruguaio.
Os adversários observavam atônitos, a performance de Héctor. “Como esse ‘aleijado’ consegue jogar futebol com tanta qualidade?”. Sua destreza mesclada ao jeito malandro de ser, fazia com que a sua chegada a um clube de prestígio do país não estivesse mais distante que um dos seus piques em direção ao gol.
O Athletic Club Lito, hoje atendendo ao mérito de tricampeão da Copa Libertadores da América e conhecido como Nacional, foi o primeiro clube uruguaio a apostar no garoto manco de 19 anos. A aposta revelou-se certeira, Héctor balançou as redes 145 vezes em 231 partidas. O protagonismo não se limitou ao time, “El Divino Manco” — que antes era chamado de “El Manco Castro” — também brilhou vestindo a camisa da celeste.
O Campeonato Mundial de 1930
No primeiro mundial, o Uruguai precisava passar por quatro jogos para conquistar o título. A seleção celeste fez do Estádio Centenário, em Montevidéu, seu amuleto da sorte. O que nos leva ao dia 30 de julho de 1930, quando um jogo de futebol fez a Bacia do Rio da Prata ferver: Uruguai x Argentina. A primeira das duas finais de Mundial disputadas entre países sul-americanos ao longo da história.
Os dois times vinham de vitórias empolgantes nas semifinais por 6-1 e sentiam-se em casa por jogar em condições ambientais familiares. Não havia outra coisa a se pensar se não na promessa de um duelo que honraria o tamanho da competição. O jogo começou melhor para os uruguaios, que logo aos 12 minutos abriram o placar com Pablo Dorado, e encheram de euforia os torcedores mais otimistas.
A seleção argentina não se rendeu e terminou a primeira metade da partida na frente do placar, Peucelle e Stabille marcaram aos 20' e 37' minutos. Os dois times, que iniciaram a partida com a formação 2–5–3, lutaram por cada bola durante os 90', mas a declaração do atacante argentino Francisco Varallo denuncia qual foi o resumo da ópera do segundo tempo.
“Tudo que eu queria era ganhar, eu sofri muito quando os uruguaios começaram a beijar a camisa. Eu sou incapaz de dizer o quanto eu chorei quando tudo acabou. Ainda hoje, dói pensar sobre esse jogo, um jogo que estava na mão. Às vezes, eu ainda me pego sonhando que fomos campeões.”
O Uruguai marcou três gols no segundo tempo e o toque final veio aos 44' minutos. “El Divino Manco”, que já havia levado perigo ao gol argentino na etapa inicial, subiu de cabeça e fechou a partida em 4–2 para os donos da casa. Héctor Castro, com duas pernas, um braço inteiro e o outro cortado no antebraço direito, tornou-se uma das primeiras lendas inquestionáveis da história do futebol mundial.