A COPA EM VINTE DIAS #07

Santiago do tamanho do mundo

Uma história surpreendente, narrada por um dos principais personagens da Copa de 62, no Chile.

Drible da Vaca
DribledaVaca

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Por: Bertany Pascoal
Edição: Vitor Magalhães

Poster da Copa de 62, no Chile.

Eu tinha 24 anos quando a minha seleção fez a melhor participação na Copa até hoje. Foi aqui mesmo, no meu país, e o jogo mais marcante pra mim, sem sombra de dúvidas, foi a semifinal que fizemos contra o Brasil. Foi uma surpresa pro Chile inteiro termos chegado até ali, e quando soubemos que iríamos enfrentar a Canarinha, foi uma festa maravilhosa. Era, até então, a primeira semifinal de copa entre dois sul-americanos. Aqui pertinho passavam ônibus com cartazes colados que diziam: “Con Didi o sin Didi, lo haremos hacer pipi” ou “Con Vavá o sin Vavá, los haremos hacer caca”. Toda Santiago ficou mais vermelha ainda.

Eu queria que o Pelé tivesse vindo jogar, mas ele se machucou no começo da Copa; sempre que as pessoas vinham aqui, ficavam comentando isso. Mas eles também diziam que o Brasil tinha outro craque, um homem muito moreno, as pernas tortas, ligeiro, com o nome de Garrincha; além de terem o Vavá, que já tinha feito gols na Copa passada. Eu fiquei ansioso por ver o Garrincha mas, claro, queria que ele saísse daqui sem vencer.

No dia do jogo, eu nunca tinha visto tanta gente na minha vida toda, fiquei até assustado, com um medo de toda aquela gente junto a mim. Mas a ocasião não poderia ser melhor. Se ganhássemos do Brasil iríamos pra final da Copa do Mundo. Quando o jogo começou eu soube o porquê da fama daquele homem com o nome engraçado.

Chile x Brasil — 1962

Garrincha era um ser feito para driblar, partir pra cima, sem medo de errar. Aos nove minutos do jogo ele pegou uma sobra que veio da esquerda, com a “Perna que não era a boa”, e colocou no ângulo. Imagine se tivesse sido a boa.

Aos 32', mais uma vez esse homem fez um gol. De cabeça, subiu, testou, derrubou o zagueiro, e saiu ileso com uma elegância imperial. Ele estava me deixando impaciente e maravilhado ao mesmo tempo. Diminuímos o placar com Toro, em uma cobrança de falta monumental; nunca esqueci a trajetória que a bola fez, minha visão era privilegiada. Ele, antes do jogo, tinha animado a gente com a frase que dizia: “Comemos o macarrão italiano, tomamos a vodca russa, e, agora, tomaremos o café brasileiro.” O problema era que os homens de amarelo estavam insaciáveis.

Em outro escanteio Vavá subiu e fez, 3 a 1, e eu comecei a sentir dentro de mim o gosto irreversível da realidade. Mas logo minhas esperanças seriam retomadas com o gol de Sanchéz, um dos maiores futebolistas que tivemos até hoje, e que na época jogava na Universidad de Chile aqui em Santiago. A cobrança de pênalti dele foi tão boa que desconcertou o goleiro, e eu senti que ia explodir, desabar, não sei bem descrever. O povo fez o chão tremer demais, e eu senti isso nas minhas entranhas.

Mas o Vavá subiu e fez outro, outro de cabeça. Foi aos 78', e os chilenos foram silenciando lentamente. Senti-me alguém feliz naquela tarde de 13 de junho de 1962. Mas quando o jogo acabou os gritos e salves continuaram, e eu quase desabo em mim. Parece que ninguém estava triste, todos tinham vencido. O som das palmas me pareceu o som das asas de todos os pássaros, esse som celestial eu conheço muito bem.

Meu nome é Estádio Nacional de Santiago, e completo 80 anos em alguns meses. Lembro dessa semifinal como se fosse hoje; essa tarde em que acolhi mais gente do que minha capacidade permitia. Eu fiquei do tamanho do meu sonho. Pouco tempo antes da Copa nossa pátria sofreu um terremoto que quase rasga o ventre da nossa terra, e o povo ficou em prantos de desconsolo; mas aquela copa foi o testemunho da nossa garra, e eu senti tremor de novo, dessa vez de alegria, no meu peito.

Eu viria a reencontrar as duas seleções nas suas partidas finais. Cada uma em sua jornada, e cada um vencendo seu jogo, Brasil campeão enchendo o meu olho de graça, e o meu Chile em terceiro, fazendo uma festa frenética; mas o povo que eu recebi nesses jogos não foi igual àquele da semi. Nada se compara com aquela tarde em que eu fui do tamanho do mundo.

Resumo do jogo

Gols de Chile 2–4 Brasil

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Perfil destinado à divulgação do futebol sul-americano. Autor: Vitor Magalhães. E-mail: oficialdribledavaca@gmail.com