Você tem fome de quê?

Glauco Batista
Drogaria Silva
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4 min readOct 22, 2018

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Vem chegando o verão… e com ele a imensa ansiedade de se manter em forma e estar com o shape em dia!

Falta apetite na vida?

Os corpos irão se exibir nas praias, piscinas, boates e nossa vaidade não nos permitirá imperfeições.

Entra em cena o projeto de verão: malhar pesado na academia, gastar um pouco mais com personal trainer, uma receita irada da “nutri”, uma consulta com o “endócrino”, shakes, fitoterápicos, drenagem, plástica, etc.

É a indústria da beleza. E ninguém parece perceber que muita gente ganha muito dinheiro por conta dessa necessidade de emagrecer.

Mas até quando essa necessidade é realmente necessária?

Na história da humanidade regimes de privação alimentar são comuns, especialmente num contexto religioso.

Na antiga Grécia, durante o período de festividades em honra à deusa Deméter (deusa da terra, da fertilidade e das colheitas), obrigava-se às mulheres o jejum, tendo em vista que, no mito, essa deusa ficara nove dias sem comer ou beber em função de uma profunda tristeza pelo rapto de sua filha, Perséfone, perpetrado pelo hediondo Hades, deus dos Reinos Inferiores.

O jejum dos católicos na Quaresma é um comportamento ritual de imitatio Christi (imitação de Cristo), que se refere à passagem bíblica em que Jesus ficou no deserto jejuando, sendo tentado pelo demônio e ao mesmo tempo se preparando para sua tarefa de redenção da humanidade.

O carnaval, festa que antecede à Quaresma, tem a origem de seu nome provavelmente do latim carnem levare, que significa “abolir a carne”, indicando o último banquete no qual se permitiam as pratadas desse tipo de alimento antes dos quarenta dias do período santo.

Tradições orientais e egípcias ainda mais antigas apontam que o jejum parece ter sido dirigido também contra a ação maléfica de demônios.

Na Idade média o jejum, pelos religiosos, era praticado com vias a expiação dos pecados e purificação do corpo.

Um dos exemplos mais marcantes é a Ordem dos Franciscanos, onde o jejum era sinal de negação das tentações mundanas tanto quanto de santidade.

Ainda na Idade Média, muitas mulheres que seguiam o caminho santo nos mosteiros, além da (óbvia) abstinência sexual, impunham-se uma alimentação tão escassa que chegavam a extremos de subnutrição grave! E tudo em nome de Cristo.

Na história das religiões, portanto, o jejum é uma ação intencional de negar o alimento, que se traduz numa atitude que procura a espiritualização e a transcendência do corpo e da alma.

É uma anulação do “eu” (ego) e a consequente afirmação de uma identidade maior, i.e., Deus.

Considerando agora um outro lado do espectro das manifestações simbólicas do comportamento alimentar temos a anorexia.

A composição da palavra vem do prefixo grego “a”, de negação, assim como de “orexis”, do verbo grego “oregein”, de desejar, ter apetite, fazer força para alcançar algo.

Daí o termo anorexia nervosa, apropriado pela clínica médica e psiquiátrica, que se define pela ação intencional para diminuir a ingestão calórica, e não só a mera inapetência, relacionada a algum trauma psíquico.

São notórios os casos de pessoas, especialmente mulheres, que entram num processo de emagrecimento e acabam tendo problemas relativos à anorexia.

Da mesma forma são comuns, na indústria da moda, as histórias de privações alimentares das modelos assim como dos padrões cadavéricos de beleza, sem contar os casos de suicídio onde a motivação é a inadequação aos padrões de corpo vigentes na mídia.

Manifestações sintomáticas extremadas podem nos indicar significados ocultos: a busca a qualquer custo pela beleza pode levar à feiura, à doença ou mesmo à morte.

Ainda na mitologia grega, é deveras curioso que Afrodite, a deusa grega da beleza, jamais admitia ser menos admirada do que por uma mortal.

E se isso acontecesse, a pobre mulher era condenada ao infortúnio: loucura, tragédia e morte.

Nos dias de hoje os antigos deuses estão mudos e a religião já não é mais a principal referência a significar nossos atos cotidianos.

Porém os deuses mudaram de face: dinheiro, poder, sendo a beleza uma de suas maiores expressões.

O peso sociocultural imposto pela ditadura do “corpo perfeito” está em todos os lugares: outdoors, televisão, redes sociais, como também em nossas subjetividades, assombrando nossa alma.

E qual não é o custo (financeiro e existencial) que temos para aplacar a sede desse monstro insaciável!

Será que o projeto de verão deve ser colocado acima de nosso projeto de vida?

Propostas de restrição alimentar sem um contexto simbólico conectado ao nosso Eu profundo podem ser levianas ou mesmo perigosas.

São propostas superficiais, convencionais e extrínsecas à nossa essência, e seu significado se esgota em si mesmo.

Será que a busca por um estereótipo anoréxico de beleza não poderia revelar um outro tipo de fome?

Um “oregein”, um apetite por alcançar um verdadeiro e profundo sentido individual?

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Glauco Batista
Drogaria Silva

Glauco é diretor comercial da Drogaria Silva. Psicólogo formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Canta, toca baixo, violão e guitarra.