O Mito da Separação
Quantos paradoxos você consegue sustentar em si?
Talvez você esteja vivendo uma revolução sutil. Posso sentir essa agitação no interior de alguns indivíduos e seus organismos sociais.
Uma mudança no padrão narrativo e no "lugar comum". Um choque que se manifesta em alguns como ansiedade ou angústia, em outros como prazer, mistério ou seja o que for. Estamos sendo desafiados a aprender a lidar com a complexidade sistêmica do universo. E quanto mais acessamos essa complexidade, maior nossa consciência da inevitável incompletude da percepção.
Imagens aéreas de drones, probabilísticas quânticas, genoma, a internet e big data — o volume de dados gerados a cada dia sobre nosso comportamento é esmagador. estamos expondo coletivamente muitos dos enganos que sustentaram a postura social, econômica, científica e política até aqui e nossas instituições estão tendo que se contorcer e reestruturar. Corações e consciências estão tendo que se contorcer e reestruturar. Não temos um manual pra esse processo.
Está ficando mais difícil sustentar o paradigma do "Nós contra Eles". A noção de que o “Outro” é visto como um perigo e ele deve ser mantido afastado, sob controle ou até mesmo aniquilado — sendo essa a função fundamental do Poder. A história do séc. XX foi moldada a ferro e fogo por essa polarização. Ironicamente o último século também foi marcado por níveis crescentes de interação. As mesmas revoluções técnicas que nos trouxeram a internet, voos intercontinentais, smartphones, pousos na lua e satélites que enxergam o início dos tempos foram impulsionadas pela possibilidade real e constante do conflito com o Outro. Chegamos à "mútua aniquilação assegurada".
O que sabemos não cabe nas antigas caixas. Nos falham as categorias lineares e visões binárias. Apesar dos esforços dos demagogos, agitadores e tradicionalistas, fica cada vez mais claro que não podemos nos dar o luxo de nos perceber como separados de nenhum outro ser vivo.
Ao avançarmos se torna cada vez mais caro continuar sustentando o mito da separação. Pagamos limitando horizontes relacionais, tendo vidas menores, jamais permitindo que se aproximem as lições que verdadeiramente precisamos, pois elas são perigosas. Elas podem levar toda a familiaridade, arrebentar as amarras que no fundo confortam. É sedutor viver nas nossas mentes, tentando decidir o que é melhor sem agir em direção alguma. Empilhamos palavras, nomeamos futuros fictícios e ao, nomear, separamos.
Palavras definem e para definir dissecam. Para dissecar é necessário interromper. Toda explicação é um pulo de fé onde algo é reduzido, morto, congelado e metaforizado na esperança de provocar a compreensão. Essa tal compreensão como utilizo aqui é um fenômeno dinâmico, orgânico e em constante construção. Não pode nunca ser completa — ela é pessoal, subjetiva e em última instância viva. Por isso comunicar é dolorido e exige tanta habilidade. É preciso cultivar um estado específico para canalizar ao reino humano concepções dessa ordem sutil.
O outro é uma ficção. Você é uma ficção. Toda percepção é artesanal. Somos todos artistas melhores do que supomos, disse o filósofo. Toda a realidade é sua criação. Simultaneamente percebemos e criamos o mundo e no relacionar estamos vulneráveis ao mundo do outro. É perigoso.
É preciso saber ser simultâneo para sobreviver à uma colisão de mundos. Empilhar realidades sem escolher, sem dissecar, sem separar. Suspender conclusões finais e cultivar um jardim de visões de mundo, nada mais do que protótipos operacionais que anseiam pela contribuição do outro, para quem sabe, alimentar nossa compreensão do todo, sobre tudo… o nosso tudo, que tende a crescer.
A compreensão existe em um lugar íntimo pré e pós pensamento. Antes e depois da semântica. Fora do tempo. Ao mesmo tempo estar presente e sentir o todo. Presensentir o Sistema. Ser parte dele de forma tão íntima a ponto de permitir perder-se. Não há distância alguma entre aquele que percebe e o que é percebido.
Há uma possível mentira escondida em todas as galáxias e todas as partículas. O agora é o desenrolar de uma gigantesca onda cuja palavras só podem violar. É a nossa ficção que empilha e organiza os agoras, palavras nos servem para explicar para nós mesmo o tempo, mas não nos sobra capacidade pra contemplar com tanta delicadeza toda a explicação do tempo do Outro, tão infinitamente complexo quanto nós mesmos. Um universo em um grão de areia. A humildade dessa percepção faz o chão tremer.
Como equilibrar o ser e o permitir ser dentro do relacionar?
Ocorrem abalos sísmicos no Zeitgeist. A consciência pede coragem e pede prática. Se vim até aqui traindo meu direito universal ao silêncio e na mesma fala manifestando tantos paradoxos, é para tentar cativar em você a compreensão. Será que poderão servir bem ao mundo crimes como esse? Será que poderemos nos encontrar depois do par-de-dois, o jogo do preto e branco, a mentira que existe entre eu e você?
Como humanos, vivos, que dançam, ganham e perdem, estamos inseridos dentro do sistema paradoxal, simultâneo de agir e perceber, análise e síntese, pathos e praxis. Não poderá haver um sem o outro, e ninguém pode viver sem pendular. A verdade é que separar um do outro só é possível porque aqui estamos utilizando palavras. Um recurso linear que usa o tempo para desenrolar explicações.
Em tempos de demagogia, nacionalismo, traições, discurso massificado, sinto que precisamos conversar sobre o Outro, não apenas como as minorias ou grupos oprimidos… o Outro é seu pai, seu parceiro e o seu desafeto.
Aceitar que nossas percepções sempre nos parecem as mais verdadeiras que a do Outro, pois não tenho como me dedicar inteiramente à sua percepção como faço com a minha. Preciso aprender a ser simultâneo para aprender com você. Não preciso te amar, mas preciso saber que eu sou outro você. Você existe porque te percebo, e eu existo ao ser percebido.