Adaptações históricas e liberdade criativa: Uma análise sobre vestimentas
Roupas são grandes indicadores de períodos históricos. Sendo criadas por motivos culturais, religiosos, sociais, políticos e estéticos, ou por necessidade, elas indicam tempo e espaço. Lembro de quando visitei o Museu da Moda em Gramado, Rio Grande do Sul, em que havia exposições de roupas “de época” e sempre havia um pequeno texto indicando a influência e referências utilizadas por costureiros e estilistas (designers?) para chegar aos seus trabalhos finais. O museu tinha em sua maioria peças da história eurocêntrica, sempre femininas, mas ainda assim foi interessante pensar que os vestidos da Era Napoleônica foram inspirados pela vestimenta militar da época, por exemplo.
Com isso, em filmes e séries de cunho histórico, figurinistas e animadores procuram deixar as roupas mais próximas o possível das roupas da época em que a história se passa, para o público facilmente reconhecer qual a localidade e década do enredo. No entanto, nem sempre esse é um trabalho feito com precisão, com criadores tomando “liberdades” que podem até ser ofensivas.
Uma série que utiliza jogos temporais é Wandavision. A série conta a história de Wanda e Vision, personagens da Marvel Comics e Universo Cinematográfico da Marvel, em que, por meio de um surto de Wanda, entram em uma espécie de mundo fantasioso, onde todos participam de uma sitcom com os episódios que se passam entre 1950 e 1990.
Alguns dos pontos principais de reconhecimento de referências da época e de outras sitcoms é pelo figurino. Com sitcoms reproduzindo situações do cotidiano, elas podem ser um grande indicador da moda e tendências daquele contexto. Wandavision faz este trabalho com maestria, com personagens usando roupas típicas estadunidenses em todos os episódios. Além disso, mostra aos poucos as mudanças sociais que aconteciam durante as décadas, com Wanda e outras personagens femininas transicionando de “perfeitas donas de casa” a mulheres que possuíam outras nuances e traços de personalidade. Demonstrando, também, movimentos sociais e a luta de pessoas negras por direitos civis com Geraldine (ou Monica Rambeau), uma mulher negra, usando cabelo blackpower no episódio que se passaria na década de 1970.
Outra obra que tem um trabalho interessante em relação ao figurino é o clássico Cinderela de 1950, produzido por Walt Disney. Na época, a empresa estava passando por dificuldades financeiras, então houve um empenho imenso para que esse filme fizesse sucesso. No entanto, Cinderela fez tanto sucesso, que poucos anos depois foi possível criar a Disneylândia, em 1955. Uma das táticas utilizadas para que isso acontecesse foi transformar radicalmente a aparência da princesa, que não apenas parece muito mais adulta que a última (Branca de Neve), como também mais fashion.
Enquanto a Branca de Neve usava roupas parecidas com a moda Renascentista, com uma aparência mais infantil e seguindo o ideal feminino da década de 1930, Cinderela já parece mais uma jovem adulta e suas vestimentas foram muito mais inspiradas na moda da época de criação do filme ao invés de resgatar influências de quando a história original teria sido contada. Em 1947, Christian Dior havia revolucionado a moda, com vestidos femininos de luxo e cheios de detalhes, diferentemente da moda influenciada pela Segunda Guerra, um reflexo da crise. Com isso, Walt Disney se inspirou no New Look Dior e fez o possível para que sua nova princesa fosse tomada como um ideal de moda e beleza, sendo esse um filme drasticamente guiado pelo figurino que qualquer outro da Disney. Foi uma liberdade criativa que funcionou nesse sentido de alcançar popularidade, mas tornou a época que a história teria sido contada um tanto confusa. No entanto, não atrapalhou o enredo em si e não foi uma alteração ofensiva para qualquer cultura, diferentemente do que acontece com os filmes Pocahontas e Aladdin.
Para a criação da personagem Pocahontas, do filme Pocahontas da Walt Disney Pictures e Walt Disney Feature Animation, em 1995, o supervisor de animação Glen Keane fez cerca de 100 rascunhos até estabelecer um visual. Ela deveria ser “sexy”, como Keane afirmou em uma entrevista para a Entertainment Weekly. Suas feições foram inspiradas em diversas pessoas, nem sempre indígenas, com “características exóticas”.
Suas roupas, portanto, seguiram uma linha parecida. Apesar do filme ter sido criado com uma equipe de pessoas de várias comunidades indígenas auxiliando com referências e pesquisas históricas, de acordo com a entrevista “10 things to know about ‘Pocahontas’”, de Cindy Pearlman para o jornal The Herald Journal, a personagem foi envelhecida (a verdadeira seria uma criança), suas roupas foram levemente inspiradas por comunidades indígenas da época em que a história se passa (século XVII), mas encurtadas e desenhadas extremamente justas, dando ênfase ao seu corpo, além de ela usar um colar que não possui semelhança com qualquer acessório das comunidades indígenas Powhatan, trazendo atenção para seu decote. Por essas e diversas outras graves questões, Pocahontas é um filme extremamente criticado em relação à representatividade.
Outro alvo de críticas semelhantes às de Pocahontas, é o filme Aladdin. O conto original veio do livro As Mil e Uma Noites, um compilado de histórias e contos populares do Oriente Médio e Sul da Ásia, e foi adicionado apenas no século XVII por um tradutor francês, Antoine Galland, após ouvir a história de Hanna Diyab, com o nome Aladdin e a Lâmpada Mágica.
A história se passaria mais próxima da China, diferentemente da adaptação da Disney, que em 1992 criou uma cidade fictícia, Agrabah, baseada em Bagdá, capital do Iraque. O filme utilizou-se de diversas referências culturais , em especial indianas, persas e árabes, durante diversas épocas, mas provavelmente se passaria durante o século XVII-XVIII na região dominada pelo Império Otomano. Mesmo com a época e referências culturais difusas, de acordo com a historiadora Ayşe Baltacioğlu-Brammer, que analisou as roupas do filme no vídeo “Historian Fact Checks Aladdin’s Wardrobe”, postado pelo canal Glamour, Aladdin deveria usar uma blusa por baixo do colete, um turbante tradicional e sapatos. A princesa Jasmine, no entanto, usa roupas muito reveladoras. Seu figurino deveria conter um vestido por cima das calças e uma espécie de tule cobrindo seu cabelo. Ela foi outra personagem extremamente sexualizada e suas roupas foram criadas principalmente a partir do imaginário de pintores europeus orientalistas do século XVIII e XIX.
Observando as análises de Wandavision e Cinderela, pode-se concluir que é possível fazer adaptações interessantes quando os criadores se propõem a seguirem suas referências históricas fielmente ou não, desde que feita com “boas” intenções, não focando na sexualização de personagens ou realizando representações ofensivas, que são ainda mais nocivas para grupos minoritários. Em Pocahontas e Aladdin, mesmo se propondo a ser uma obra feita com estudos e uma boa base teórica, como é o caso do filme Pocahontas, ainda foram filmes com personagens não-brancos sexualizados, principalmente mulheres, suas vestimentas sofrendo de uma “liberdade criativa” de seus criadores que acabam perpetuando estereótipos e preconceitos. Isso mostra que ainda é possível que designers de moda e personagem tenham liberdade criativa, desde que com o cuidado e empatia necessários, se possível com participação direta na produção das próprias pessoas que estariam sendo representadas, não apenas como referências que podem ser ou não levadas em consideração.
BIBLIOGRAFIA
Cinderella: The Ultimate (Postwar) Makeover Story
Fashion History of the French Republic. The fashions of the Directory.
https://thecostumerag.com/napoleon-change-fashion/
Pocahontas needed an ethnic look | EW.com
Historian Fact Checks Aladdin’s Wardrobe | Glamour
Inside the Elaborate ‘WandaVision’ Hair and Makeup Process
‘WandaVision’ Costume Designer Reveals Inspirations Behind Looks — The Hollywood Reporter
WandaVision: sitcom fashion throughout the decades
Rating Disney Princess Dresses on Historical Accuracy (Part One)
Disney Exec: ‘She has to be sexy.’ Historical Inaccuracies and Harms of Disney’s Pocahontas
The True Story of Pocahontas: Historical Myths Versus Sad Reality