Design e o fim do século da tecnologia

Gui Lopes
e o design com isso?
7 min readNov 14, 2021

Um breve ensaio sobre design, interfaces digitais e pandemia

A EXPERIÊNCIA HUMANA CONSTRÓI O TEMPO

Em seu ensaio “Quando acaba o século XX” (2020), a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz nos lembra que é a experiência humana que constrói o tempo. Séculos, com tudo o que carregam dentro de si, não terminam com a virada do calendário. As viradas acontecem a partir das crises, dos adventos, e dos abalos de verdades até então aparentemente consolidadas. Ela exemplifica:

O historiador britânico Eric Hobsbawm disse que o longo século XIX só terminou em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial. Acreditava-se então no progresso e na evolução. […] No entanto, a Primeira Guerra mostrou como esses mesmos povos estavam mais próximos da barbárie e da destruição, e o conflito retirou todo o lustro civilizatório da Belle-Époque europeia. (SCHWARCZ, Lilia. Quando acaba o século XX. 2020)

Da mesma forma, para ela, a pandemia de Covid-19 — cujos primeiros casos foram notificados em 31 de dezembro de 2019 — marca o fim do século 20. Assim como o fim da Primeira Guerra propiciou que uma nova perspectiva fosse construída em contraponto à toda capacidade destrutiva enxergada até então, a pandemia marca um novo olhar para o desenvolvimento tecnológico. Para ela, vivemos o fim do “século da tecnologia”.

Para entendermos o que isso pode significar no campo do design, precisamos entender, em primeiro lugar, como pode ser definida a dita “tecnologia”. Gui Bonsiepe, lendário designer e professor da área, por exemplo, posiciona “tecnologia” como uma das etapas dos processos de conhecimento e de inovação, ao lado da ciência, do design e da arte: a ciência produz conhecimento científico; a tecnologia produz conhecimento tecnológico a partir desse conhecimento científico; e o design gera transformação social através do desenvolvimento de interfaces, possíveis a partir do conhecimento científico e tecnologia adquiridos.

Em segundo lugar, precisamos entender como pode ser definido esse tal “século”. David Harvey, já em 1989, teria feito uma boa síntese do século XX, através do conceito da “condição pós-moderna”: através da compressão tempo-espaço, vivemos a era do multitasking, da simultaneidade, da instantaneidade, da transição material — imaterial. Mas nem Harvey imaginaria até onde chegaríamos. Como Rafael Cardoso coloca em “Design Para um Mundo Complexo” (2011):

Quando Harvey escreveu esse texto, é possível que ele o tenha feito com uma máquina de escrever. Na melhor das hipóteses tecnológicas, ele o digitou em computador pessoal […]. É possível que seu computador ainda não possuísse nem HD […]. É certo que ele não dispunha de acesso a internet. No ano em que o livro foi publicado, inventava- se a world wide web (www) […]. (CARDOSO, Rafael. Design Para um Mundo Complexo, 2011)

Tendo esses dois conceitos definidos, percebemos que posicionar a pandemia de Covid-19 como marco do fim do “século da tecnologia” pouco provavelmente significa supor o fim da produção de conhecimento tecnológico. Também pouco provavelmente significa supor o fim de todas as características da vida pós-moderna. O que se quebra, então? Para Schwarcz, a grande marca do século XX foi não só a tecnologia, mas particularmente a ideia de que ela nos emanciparia e libertaria. E é essa ideia a respeito da nossa condição pós-moderna que tem seu encanto potencialmente quebrado de uma forma mais ampla por todos que experienciaram a pandemia:

Mesmo já iniciados no processo de globalização no século XIX, foi no século XX que a tecnologia ganhou escala mundial e acelerou nosso tempo. Graças a ela, acreditávamos estar nos livrando das amarras geográficas, corpóreas, temporais. Não estávamos! Ao deixar mais evidente o nosso lado humano e vulnerável, a pandemia marca o final do século XX. (SCHWARCZ, Lilia. Quando acaba o século XX. 2020)

A PANDEMIA E OS (DES)ENCANTOS DA VIVÊNCIA DIGITAL

Embora tecnologia e design sejam campos distintos, conhecemos o emprego comum do termo “tecnologia” tanto para a tecnologia de um produto quanto para sua interface. E interface, por sua vez, acaba por ter, no senso comum, seu emprego no campo digital, mesmo sendo algo natural a todo artefato. Muitas das exemplificações de Schwarcz sobre a forma como a tecnologia mudou (ou criou a ilusão de mudar) paradigmas são contextos intrinsecamente atribuídos a suas interfaces. O mesmo pode ser dito dos exemplos de Cardoso a respeito do contexto tecnológico de Harvey. Enquanto designers, podemos tangenciar à ideia de Schwarcz e pensar que a pandemia de Covid-19 é um demarcador na forma como interfaces eram (e serão) vistas e abordadas.

Sendo impossível desassociar a pandemia de Covid-19 e os (des)encantos da vivência digital, podemos nos voltar agora ao campo das interfaces gráficas digitais e reescrever a pergunta: assim como o fim da Primeira Guerra tirou o véu do progresso pelo poder bélico e revelou a barbárie vivida na Belle-Époque europeia, poderia a pandemia tirar o véu do progresso das interfaces digitais e nos desencantar com as barbáries da nossa condição pós-moderna através delas?

Acredito que sim.

Trago uma dessas barbáries como a exaustão. O mesmo século que nos propiciou “progresso” através da internet, dos smartphones e das redes sociais digitais, também nos deixou exaustos demais tentando acompanhá-las. Com demasiada velocidade, ou instantaneidade das informações, recebemos mais do que conseguimos acompanhar. Como Chappell Ellison sintetiza para a AIGA Eye on Design:

Estamos investindo tanto em projetar interfaces que fornecem uma entrega contínua de conteúdo, que não estamos considerando mentalidades de usuários que oscilam em paralisia decisória quando confrontados com conteúdo infinito. Porque o fato é que há muito conteúdo. Em todos os lugares. […] E para muitos de nós, inclusive eu, um conteúdo infinito sufoca. (ELLISON, Chappell. There’s Too Much Damn Content, and Slick UX Design Is Making it Worse. 2019)

Designers de interface e de experiência do usuário, pressionados a propiciar o fornecimento de toda essa informação, se pautam em recursos para valorizar a entrega contínua de conteúdo, e adotaram parâmetros de velocidade, facilidade e usabilidade como dogmas, acima de qualquer cuidado psicossocial ou ético. Isso teve seu papel na nossa exaustão e ansiedade contemporânea, até ser escancarado durante a pandemia de Covid-19. É inegável que qualquer sentimento de exaustão perante o infinito digital tenha se maximizado durante a pandemia, onde, através do isolamento, a perda das noções de espaço e tempo durante isolamento social foi ainda mais sentida.

Os dogmas da velocidade, facilidade e usabilidade nos levam a outras barbáries. O mesmo século que nos propiciou ações a um clique de distância, também propiciou, através de um clique, vazamento de informações, disseminação de fake news e negacionismos em escala mundial.

Escândalos como o da coleta massiva de informações pela Cambridge Analytica, em 2018, já nos alertaram para os impactos de espaços e ferramentas digitais na democracia. E só foram possíveis pela própria forma como as interfaces digitais foram pensadas para tirar nossa atenção do compartilhamento de nossos dados. Com a pandemia, tivemos um boom de desinformação sobre vacinas de Covid-19 que tomou o Brasil porque, acima de tudo, as próprias redes sociais nos propiciam compartilhar toda e qualquer coisa sem checagem prévia. O designer Jason Yuan escreve sobre o assunto em seu artigo “The fallacy of easy”:

Por que definimos beleza e facilidade de uso como as estrelas norteadoras não negociáveis ​​do design? […] Compartilhar um artigo no Facebook é super fácil […]. Mas será que tal ação merece ser tão fácil? Ao tornar o compartilhamento a um clique ou dois de distância, também diluímos a gravidade dessa ação? […] Assim como responsabilizamos as políticas de conteúdo do Facebook por desencadear a disseminação de desinformação, também devemos examinar os paradigmas e sistemas que possibilitaram a disseminação em primeiro lugar. (YUAN, Jason. The fallacy of easy. 2019)

RESPONSABILIDADE PARA UM NOVO SÉCULO

Quando pensamos o “fim do século da tecnologia” em um recorte para o design, e mais especificamente para o campo das interfaces digitais, não estamos falando de uma nova tendência visual, ou de um rompimento estilístico. Não vamos interromper o desenvolvimento de conhecimento tecnológico, nem o desenvolvimento de interfaces. Não vamos acabar com as características pós-modernas. Estamos demarcando um desencantamento.

Tiramos o véu e encontramos problemas nas nossas abordagens. Encontramos parcela de culpa na exaustão, na ansiedade, na desatenção, no negacionismo, na desinformação. Projetamos interfaces que permitem isso. Porque, se o mundo está rápido, achávamos que nosso trabalho era fazer com que o acompanhassem, sem nos perguntarmos se aquela deveria sequer ser a velocidade. Achamos até que superamos o velho mantra de Louis Sullivan, que gritou em 1930 “a forma segue a função”, e aprendemos com a pandemia que apenas trocamos os dogmas.

E, demarcado e reconhecido isso, podemos começar a pensar as possíveis abordagens para esse novo século.

REFERÊNCIAS

BONSIEPE, Gui. Design, cultura e sociedade.
São Paulo: Blucher, 2011;

BONSIEPE, Gui. Do material ao digital.
São Paulo: Blucher, 2015;

CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo.
São Paulo: Cosac Naify, 2011;

SCHWARCZ, Lilia. Quando acaba o século XX.
São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

ELLISON, Chappell. There’s Too Much Damn Content, and Slick UX Design Is Making it Worse.
AIGA Eye on Design, 30 jul. 2019. Disponível em: link

YUAN, Jason. The fallacy of easy.
UX Collective, 29 out. 2019. Disponível em: link

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