A invenção da rapadura

Caio M P dos Santos
É quase Shakespeare!
4 min readSep 17, 2017

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(Adaptação de uma velha piada que contava o meu amigo Alex Medeiros)

De pé na plateia, com seu terno Giorgio Armani, azul turquesa, listrado, e gravata borboleta — quem hoje em dia usa gravata borboleta? — o senhor professor doutor das Universidades Taguacipelutúnia do Faroeste… Enfim, ia subindo muito sério, pelos degraus, perfumadíssimo — notava-se à distância, não pelo odor, mas pelo conjunto da obra. Aplaudiam, em geral, maquinalmente, com mais intensidade nas poltronas reservadas. Deu a mão para o mestre de cerimônia, sorrindo a primeira vez, e acenou à mesa erguendo também as sobrancelhas. Um pigarro discreto, e o início das formalidades de praxe: “Obrigado, professor Fulano, meu amigo que há muito não via. Agradeço imensamente o convite. É uma honra estar aqui. Antes de dar início à minha fala, gostaria de cumprimentar… através da qual estendo as saudações aos demais integrantes da mesa”. E seguiu, após um gracejo, um elogio à instituição organizadora, congratulações ao público presente — guerreiro, firmemente resistia, a acompanhar o evento numa quarta-feira de futebol — e o aviso, a autoadvertência, de que era impossível competir com a juventude plugada e com os meios de comunicação de bolso: “neste meu livro, ‘A invenção da rapadura’, eu pretendi demostrar…” Era um calhamaço de 575 páginas, (quinhentas e setenta e cinco!), sobejamente ilustradas, está claro (o que, aliás, é algo tanto mais extraordinário). — A rapadura, essa que nós conhecemos hoje, surgiu seguramente no século 17, entre os escravos africanos. Há indícios, porém, que remontam sua origem lá entre a antiga civilização egípcia. Aquele povo sábio, grande desenvolvedor das ciências, especialmente a química, produziu um alimento nutritivo, baratíssimo, capaz de sustentar a massa de escravos, os trabalhadores que possuem o verdadeiro mérito pela construção das pirâmides, e que era muito semelhante ao tijolinho doce (risos da plateia) que nós consumimos hoje. E faz todo o sentido porque, aquela realidade, tinha muito da nossa época…

Entre os nobres colegas da mesa ouvia-se um cochicho e outro, sempre no mesmo tom:

- Oh, impressionante!

- De uma clareza…!

- Fantástica capacidade de síntese.

E o palestrante nem tinha terminado: continuava a descrição histórica pormenorizada. Era, de fato, impressionante: — A rapadura já é uma característica cultural brasileira. Revela as condições de vida de um povo, ajudando a compreender nossa tão combatida — por alguns, né, outros querem manter o status quo — a tão combatida desigualdade social. Vejam quanta importância tem essa barrinha de açúcar! É preciso tomar consciência disso! A rapadura não deve ser ignorada. Ao contrário, ela deve adquirir, devemos dar a ela, a magnitude, a dimensão, uma dimensão que seja proporcional à essa força catalizadora de transformação social-cultural brasileira e, até, latino-americana. Só para ilustrar: durante meus estudos, estive na Espana, passei um período na Espanha, na Universidade… lá concluí meu doutorado, que ensejou a publicação deste livro. Bem, estive na Europa, debruçado, tentando entender essa maravilha da humanidade. É realmente incrível! Lá, pasmem, eles não conhecem a rapadura!

Falava, quase babando, parecia sentir um desejo gravídico de rapadura. Imperdoável ninguém ter pensado em servir amostras no coquetel do intervalo.

Atento, na plateia, um seu aluno, mestrando. Com tudo concordava, a menear a cabeça quase como um autista. Escrevera sobre o indigitado tema, tão caro ao seu mestre: oh , a rapadura! A rapadura, alimento diário do nordestino, no polígono das secas, segundo as estatísticas. Seu trabalho era um tanto modesto, nada comparado ao grande rapadurista: 142 páginas. Limitava-se a analisar os seus aspectos químicos e biológicos, ou seja, os elementos constitutivos da “rapa-dura”. “Rapa”, esclarecia a introdução, porque se tirava uma lasca, uma rapinha, e “dura” de duro mesmo, rígido. O aluno, muito humilde, anotava as brilhantes observações do palestrante, uma sumidade no assunto, como se pôde observar, as quais usaria para a aula do próximo sábado, na sua turma de especialização. Dedicado, conseguira fazer com que um de seus pupilos aderisse à causa, conforme a inspiração de seu mestre, conscientizando assim a sociedade da importância da rapadura na culinária nacional, o seu valor nutritivo, histórico, sociológico. E cultural, cultural também.

Esse pós-graduando, jovem esforçado, desenvolvia um trabalho científico interessantíssimo. O tema? Rapadura. Buscava na escassa bibliografia — uma tristeza o descaso do cidadão para com o valor mais alto: o conhecimento!, aquilo que não se pode tirar da gente; o dinheiro podem nos roubar, mas o conhecimento, ah! este fica gravado na gente, forever –, tentava encontrar na bibliografia as referências de um assunto que lhe escapava. Onde achar informação? Digo, achar não, porque não perdi nada, devo dizer: onde procurar informação? Perguntava-se inutilmente, e reduzia a obra gigantesca a um apanhado confuso e impreciso das idéias expostas no clássico “A invenção da rapadura”.

Pena não ter ido ao evento, onde os calouros de sua antiga, e saudosa, IE (Instituição de Ensino) estavam em peso.

– Agradecemos a presença da Faculdade…

Encerrava-se dizendo, o mestre de cerimônia. Da tribuna, via-se, era lamentável: os acadêmicos estavam ali, a maioria, por causa das horas. Infelizmente não se dá valor ao saber neste país. Os discentes, os futuros profissionais que em breve atuarão no mercado, olhavam o palco, as paredes, as cortinas, com cara de drogados, chapados mesmo; sem comentar os que não piscavam, bitolados na tela do celular. Na faculdade, o professor indagaria, pediria um resumo, valendo presença ou quem sabe um pontinho para evitar exame, do que foi tratado na palestra daquela noite. E os alunos? Os alunos entregariam um parágrafo, o mesmo parágrafo escrito em 29 versões. Mas haveria um ser — gente, só no Brasil essas coisas -, um sujeito, ousado, meio débil mental, que escreveria, após uma sessão de massagem capilar:

- Rapadura é doce mais não é mole não!

É como canta o Luiz Gonzaga: “por isso é que o Brasil num proguede, vixe!”

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