Cheio da vida…Cheio de vida…

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
8 min readOct 12, 2019
“A vida boa para sempre é uma invenção mentirosa (…) A pior de todas as mentiras. É uma verdade que é melhor conhecer antes que tome conta das nossas mentes e nos deixe mergulhados nesse sonho tolo e frágil”

Por que contamos nossas histórias, descrevemos episódios em que atuamos como personagens, narramos cenas de nossas vidas, recontamos diálogos dos quais participamos?

Talvez porque alguém nos tenha perguntado algo, e alguém se interessa; talvez por uma necessidade interna, pessoal e urgente de encontrar uma ordem no caos de acontecimentos; um sentido em meio a um caminhar desnorteado; talvez por vaidade, orgulho, vitimismo, carência, necessidade de chamar sobre nós mesmos a atenção alheia…

O cronista esportivo (e ex-escritor?) Frank Bascombe (criado por Richard Ford), por exemplo, depois de 442 páginas, nos desvenda o porquê contou sua história: “Acho que contei tudo isto porque, sem querer, naquela quinta-feira [uma quinta-feira de Páscoa], acordei com a sensação de que muitas coisas iriam mudar em minha vida e ser resolvidas, e outras iriam terminar brevemente, e que assim teria algo interessante para contar”.

As coisas interessantes que esse cronista esportivo nos conta tem muito de crônico, pouco de esportivo. É uma história repleta de mistérios, mas mistérios de um tipo especial: “(…) estou sempre vivamente interessado nos mistérios da vida, que nunca se apresentam em grandes proporções”, ele diz.

Não esperem, portanto, mistérios de “grandes proporções”, mas os do tipo “inquestionável”, como o que resulta da percepção de que, não importa o tanto que nos esforcemos, será sempre impossível nos “identificarmos totalmente com uma pessoa” e, portanto, não devemos nos preocupar com isso: “Todos têm histórias para contar. Alguns podem falar do sucesso ou do fracasso de suas carreiras. Algo nos trouxe até onde chegamos e é certo que não há história pessoal que possa levar outro Tom, Dick ou Harry ao mesmo lugar”.

Mas, e se…?

E se Frank Bascombe tivesse…?

Ele mesmo se faz essa pergunta e diz: “A conclusão é que, devido às bruscas mudanças imprevisíveis que o mundo sempre nos reserva, eu teria acabado da mesma forma: divórcio. Crianças. Mudanças de carreira. A vida numa cidade como Haddam. E esta ideia é ao mesmo tempo consoladora e inquietante”.

Mudança, consolação, inquietude…

As poucas linhas acima reúnem, em palavras, realidades e sentimentos que ecoam ao longo de toda história contada por Frank; palavras sussurradas e, às vezes, bradadas.

Por exemplo: à sua incompreensão desta realidade que se chama “mudança” ele atribui o fato de ter desistido de ser escritor. Tornou-se pessimista e por um motivo: levou a vida a sério demais e tornou-se incapaz de “entender a necessidade vital de alternar o alegre e o triste, a luz e a escuridão, o sério e o jocoso na literatura”.

Se é importante na literatura essa “necessidade vital de alternar” os opostos, isto se dá em função da própria estrutura da realidade, que molda e anima nossa existência: “A vida da gente pode mudar muito sem aviso”, diz o personagem Wade a Frank. E quem poderia contradizê-lo? Frank? O escritor que desistiu de escrever e mudou de profissão? O pai que perdeu um filho? O marido que se separou da esposa?

Claro que não. E é por isso mesmo que Frank responde: “Eu sei, Wade”. E é o fortalecimento desta consciência, é a gradativa interiorização do entendimento do papel incontornável que a mudança tem em nossas vidas um dos traços marcantes da transformação pela qual Frank passa.

Em determinado momento, ele assevera: “A vida boa para sempre é uma invenção mentirosa dos subúrbios americanos. A pior de todas as mentiras. É uma verdade que é melhor conhecer antes que tome conta das nossas mentes e nos deixe mergulhados nesse sonho tolo e frágil”.

A vida? Boa para sempre?

Abandonemos esta ideia: essa vida não existe. Afinal, quem de nós está plenamente livre de poder afirmar, como Frank: “Tudo parecia tão certinho e promissor, mas subitamente não sei mais se a vida passou por mim como um enorme caminhão e deixou-me aqui aplastado na estrada”? Quem de nós pode, sem cometer um grande erro ou incorrer em grande injustiça, negar que “a verdade é que a vida nem sempre está em ascensão”?

Sentir-se atropelado, perceber o início do período de decadência, são motivos suficientes para botar ansiedade num coração, para agitar uma imaginação e afligi-la, para tornar angustiosa uma existência. Frank o percebe.

Em vários momentos ele reconhece estar “no limite da ansiedade”, “sem conseguir ver claramente” o que o espera, e consegue apenas vislumbrar “o mesmo horizonte indefino e vazio”; fala de “minutos angustiantes”, de “vagas miragens”. Chegou mesmo a chorar: “É uma ansiedade, naturalmente, e qualquer um de nós pode senti-la…”.

O que fazer nesses momentos? O caminho que Frank parece ter encontrado é: “Procuramos consolo onde possível”. E ele lembra sua reação à morte do filho: “Resolvi ensinar em Berkshire para esconder a dor terrível da perda do meu filho. Era uma dor de remorso, a mesma que me levou a desistir de terminar meu romance e virar cronista esportivo. O mesmo sofrimento intenso, que provoca todas as mudanças dramáticas na vida ou então coloca as pessoas em desgraça”.

O intenso sofrimento nos coloca então diante de dois caminhos: mudança dramática ou a desgraça. Opções terríveis? Talvez. Mas Frank julga que “estar em movimento é bom” e, portanto, mudar é bom. E diz isso em um momento em que não faz a menor ideia de para onde vai e o que vai fazer. No entanto, há um consolo de solo seguro: “Tudo muda. Podemos sempre esperar que isso aconteça”.

Ele parece dizer que esperar o contrário disso “é uma maneira desastrosa de se preparar para a vida”; é permanecer naquela ilusão da vida boa para sempre…Ou na quimera oposta: o sentimento de desgraça incontornável, de sofrimento invencível, de angústia plena e inescapável.

Quem fala sobre “a maneira desastrosa de se preparar para a vida”, na verdade, é Herb, ex-jogador de futebol americano, agora paraplégico, e que é entrevistado por Frank: “Realmente agora o futebol já não significa mais nada para mim”, e conclui: “Agora tenho o resto da minha vida para recuperar o que perdi, se puder imaginar um sentido para ela”.

Herb vai “procurar consolo onde possível”, mas precisa imaginar um sentido para sua vida. E a imaginação pode ser mapa e bússola, ou pode ser grade e perdição.

Se pudermos imaginar…

Foi “por falta de imaginação”, reconhece Frank, que ele não alçou “voo para a grandeza”, como os grandes escritores (e cita Tolstói e Eliot como exemplos): “Eu não sabia, mesmo, como as pessoas se sentiam diante da maioria das coisas, e o que mais fazer ou pensar”. Ele e um amigo (Bert), também escritor desistente, estavam “como duas crianças que haviam esgotado todo o conhecimento diante de um problema”.

Para um ser que tende naturalmente ao conhecimento, como afirma Aristóteles, esgotar o conhecimento (ou julgar tê-lo esgotado) é a fórmula certa para o paralisante tédio.

Avaliando o romance abandonado (Frank publicara apenas um livro de contos), diz que o texto foi se tornando “cada vez mais grave, soturno, abafando minha criação, minhas frases e sua construção — minha escrita tornou-se um tecido metálico, pesado, que nem mesmo eu gostaria de ler — e os temas iam ficando cada vez mais densos e melancólicos”.

De repente, ele diz, as suas personagens começaram a transmitir a seguinte noção: a vida é algo inevitavelmente intransponível e desagradável, e é imprescindível suportá-la: “Claro que esta forma de abordagem pode conduzir a um cinismo terrível, pois sei muito bem que a vida não é assim, mas muito mais interessante”.

Ainda assim, ainda sabendo que a vida é muito mais interessante, não conseguia descrevê-la positivamente e, antes mesmo de aprender como fazê-lo, perdeu a coragem, desinteressou-se e desistiu. “Não há uma perda irreparável para a humanidade quando um escritor desiste de escrever”, ele nota.

Não! A perda irreparável não é da humanidade, mas é do próprio escritor que desistiu de escrever.

Mas Frank volta a escrever: ele nos conta a sua história no livro “O cronista esportivo”. E por que mesmo decide conta-la? “Contei tudo isto porque, sem querer, naquela quinta-feira [uma quinta-feira de Páscoa], acordei com a sensação de que muitas coisas iriam mudar em minha vida e ser resolvidas, e outras iriam terminar brevemente, e que assim teria algo interessante para contar”.

Conta porque tem algo interessante para contar. Algo relacionado à mudança, à resolução, ao fim…

Conta porque a vida não é algo inevitavelmente intransponível e desagradável…Conta porque a vida é interessante…

Conta porque “a vida alheia (…) é imprevisível”…

Conta porque “tudo pode acontecer (…)”…

Conta porque “o mal está emboscado em qualquer lugar, e a morte é um castigo demasiado severo comparada a outras alternativas”…

Conta porque “é possível ser consolado com o consolo alheio, mesmo o mais banal”…

Conta porque a consolação “é vital para evitar uma depressão aguda”…

Conta porque “precisamos ter muita força de vontade, caráter e coragem para sairmos do banco de reservas e jogarmos com vontade num jogo importante, sabendo que jamais seremos titulares do time”… (lembremos do escritor para quem a humanidade não liga)

Conta para “conhecer-se a si mesmo, nossas próprias limitações e potencialidades, e não nos alienarmos delas”…

Conta para não ser levado “a um estado de alheamento angustiante e ao pior gênero de afastamento e abstração em relação ao outro, uma impossibilidade de comunicação”…

Conta porque “a vida é cheia de mistérios” e, portanto, de interesse, e porque “quanta coisa na vida não pode ser adivinhada nem antecipada”…

Conta porque “todos nós encaramos o mundo de algum ponto de vista, lugar ou maneira específicos”, e talvez até julguemos “útil e proveitoso” esse ponto de vista…

Conta para escapar do “ritual de purificação à base de bebidas fortes e lágrimas quentes (…) único que temos em nossa civilização”…

Conta para “aceitar a dizer ‘sim’ o quanto puder” a tudo: nossas cidades, nosso vizinho, nossa vizinhança, nosso carro, ao carro do outro, ao gramado, à cerca, à calha…

Conta para amadurecer, para “saber reconhecer o que é ruim ou fora do comum na vida”; para “ser capaz de admitir que não se pode mudar o inevitável, mas seguir em frente, fazendo o melhor possível”…

Conta para “enfrentar a realidade onde puder (…) que é tudo o que há para fazer”; enfrenta-la onde puder e por pior que seja.

Anos depois de enfrentar a morte do filho, o divórcio, o abandono da literatura, e no momento em que enfrenta aquela Páscoa (relembrada no livro), Frank enfrenta o suicídio de um amigo: “A morte de Walter teve sobre mim o efeito que deveria ter: lembrar-me da responsabilidade que me ligava ao mundo”.

Conta, pois a “última verdade que nunca poderá ser mentira é a própria vida, a vida como é vivida e acontece”…

Conta, enfim, para responder a pergunta do momento: “A que você realmente dá importância na vida?”.

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