Cheio da vida…Cheio de vida…
Por que contamos nossas histórias, descrevemos episódios em que atuamos como personagens, narramos cenas de nossas vidas, recontamos diálogos dos quais participamos?
Talvez porque alguém nos tenha perguntado algo, e alguém se interessa; talvez por uma necessidade interna, pessoal e urgente de encontrar uma ordem no caos de acontecimentos; um sentido em meio a um caminhar desnorteado; talvez por vaidade, orgulho, vitimismo, carência, necessidade de chamar sobre nós mesmos a atenção alheia…
O cronista esportivo (e ex-escritor?) Frank Bascombe (criado por Richard Ford), por exemplo, depois de 442 páginas, nos desvenda o porquê contou sua história: “Acho que contei tudo isto porque, sem querer, naquela quinta-feira [uma quinta-feira de Páscoa], acordei com a sensação de que muitas coisas iriam mudar em minha vida e ser resolvidas, e outras iriam terminar brevemente, e que assim teria algo interessante para contar”.
As coisas interessantes que esse cronista esportivo nos conta tem muito de crônico, pouco de esportivo. É uma história repleta de mistérios, mas mistérios de um tipo especial: “(…) estou sempre vivamente interessado nos mistérios da vida, que nunca se apresentam em grandes proporções”, ele diz.
Não esperem, portanto, mistérios de “grandes proporções”, mas os do tipo “inquestionável”, como o que resulta da percepção de que, não importa o tanto que nos esforcemos, será sempre impossível nos “identificarmos totalmente com uma pessoa” e, portanto, não devemos nos preocupar com isso: “Todos têm histórias para contar. Alguns podem falar do sucesso ou do fracasso de suas carreiras. Algo nos trouxe até onde chegamos e é certo que não há história pessoal que possa levar outro Tom, Dick ou Harry ao mesmo lugar”.
Mas, e se…?
E se Frank Bascombe tivesse…?
Ele mesmo se faz essa pergunta e diz: “A conclusão é que, devido às bruscas mudanças imprevisíveis que o mundo sempre nos reserva, eu teria acabado da mesma forma: divórcio. Crianças. Mudanças de carreira. A vida numa cidade como Haddam. E esta ideia é ao mesmo tempo consoladora e inquietante”.
Mudança, consolação, inquietude…
As poucas linhas acima reúnem, em palavras, realidades e sentimentos que ecoam ao longo de toda história contada por Frank; palavras sussurradas e, às vezes, bradadas.
Por exemplo: à sua incompreensão desta realidade que se chama “mudança” ele atribui o fato de ter desistido de ser escritor. Tornou-se pessimista e por um motivo: levou a vida a sério demais e tornou-se incapaz de “entender a necessidade vital de alternar o alegre e o triste, a luz e a escuridão, o sério e o jocoso na literatura”.
Se é importante na literatura essa “necessidade vital de alternar” os opostos, isto se dá em função da própria estrutura da realidade, que molda e anima nossa existência: “A vida da gente pode mudar muito sem aviso”, diz o personagem Wade a Frank. E quem poderia contradizê-lo? Frank? O escritor que desistiu de escrever e mudou de profissão? O pai que perdeu um filho? O marido que se separou da esposa?
Claro que não. E é por isso mesmo que Frank responde: “Eu sei, Wade”. E é o fortalecimento desta consciência, é a gradativa interiorização do entendimento do papel incontornável que a mudança tem em nossas vidas um dos traços marcantes da transformação pela qual Frank passa.
Em determinado momento, ele assevera: “A vida boa para sempre é uma invenção mentirosa dos subúrbios americanos. A pior de todas as mentiras. É uma verdade que é melhor conhecer antes que tome conta das nossas mentes e nos deixe mergulhados nesse sonho tolo e frágil”.
A vida? Boa para sempre?
Abandonemos esta ideia: essa vida não existe. Afinal, quem de nós está plenamente livre de poder afirmar, como Frank: “Tudo parecia tão certinho e promissor, mas subitamente não sei mais se a vida passou por mim como um enorme caminhão e deixou-me aqui aplastado na estrada”? Quem de nós pode, sem cometer um grande erro ou incorrer em grande injustiça, negar que “a verdade é que a vida nem sempre está em ascensão”?
Sentir-se atropelado, perceber o início do período de decadência, são motivos suficientes para botar ansiedade num coração, para agitar uma imaginação e afligi-la, para tornar angustiosa uma existência. Frank o percebe.
Em vários momentos ele reconhece estar “no limite da ansiedade”, “sem conseguir ver claramente” o que o espera, e consegue apenas vislumbrar “o mesmo horizonte indefino e vazio”; fala de “minutos angustiantes”, de “vagas miragens”. Chegou mesmo a chorar: “É uma ansiedade, naturalmente, e qualquer um de nós pode senti-la…”.
O que fazer nesses momentos? O caminho que Frank parece ter encontrado é: “Procuramos consolo onde possível”. E ele lembra sua reação à morte do filho: “Resolvi ensinar em Berkshire para esconder a dor terrível da perda do meu filho. Era uma dor de remorso, a mesma que me levou a desistir de terminar meu romance e virar cronista esportivo. O mesmo sofrimento intenso, que provoca todas as mudanças dramáticas na vida ou então coloca as pessoas em desgraça”.
O intenso sofrimento nos coloca então diante de dois caminhos: mudança dramática ou a desgraça. Opções terríveis? Talvez. Mas Frank julga que “estar em movimento é bom” e, portanto, mudar é bom. E diz isso em um momento em que não faz a menor ideia de para onde vai e o que vai fazer. No entanto, há um consolo de solo seguro: “Tudo muda. Podemos sempre esperar que isso aconteça”.
Ele parece dizer que esperar o contrário disso “é uma maneira desastrosa de se preparar para a vida”; é permanecer naquela ilusão da vida boa para sempre…Ou na quimera oposta: o sentimento de desgraça incontornável, de sofrimento invencível, de angústia plena e inescapável.
Quem fala sobre “a maneira desastrosa de se preparar para a vida”, na verdade, é Herb, ex-jogador de futebol americano, agora paraplégico, e que é entrevistado por Frank: “Realmente agora o futebol já não significa mais nada para mim”, e conclui: “Agora tenho o resto da minha vida para recuperar o que perdi, se puder imaginar um sentido para ela”.
Herb vai “procurar consolo onde possível”, mas precisa imaginar um sentido para sua vida. E a imaginação pode ser mapa e bússola, ou pode ser grade e perdição.
Se pudermos imaginar…
Foi “por falta de imaginação”, reconhece Frank, que ele não alçou “voo para a grandeza”, como os grandes escritores (e cita Tolstói e Eliot como exemplos): “Eu não sabia, mesmo, como as pessoas se sentiam diante da maioria das coisas, e o que mais fazer ou pensar”. Ele e um amigo (Bert), também escritor desistente, estavam “como duas crianças que haviam esgotado todo o conhecimento diante de um problema”.
Para um ser que tende naturalmente ao conhecimento, como afirma Aristóteles, esgotar o conhecimento (ou julgar tê-lo esgotado) é a fórmula certa para o paralisante tédio.
Avaliando o romance abandonado (Frank publicara apenas um livro de contos), diz que o texto foi se tornando “cada vez mais grave, soturno, abafando minha criação, minhas frases e sua construção — minha escrita tornou-se um tecido metálico, pesado, que nem mesmo eu gostaria de ler — e os temas iam ficando cada vez mais densos e melancólicos”.
De repente, ele diz, as suas personagens começaram a transmitir a seguinte noção: a vida é algo inevitavelmente intransponível e desagradável, e é imprescindível suportá-la: “Claro que esta forma de abordagem pode conduzir a um cinismo terrível, pois sei muito bem que a vida não é assim, mas muito mais interessante”.
Ainda assim, ainda sabendo que a vida é muito mais interessante, não conseguia descrevê-la positivamente e, antes mesmo de aprender como fazê-lo, perdeu a coragem, desinteressou-se e desistiu. “Não há uma perda irreparável para a humanidade quando um escritor desiste de escrever”, ele nota.
Não! A perda irreparável não é da humanidade, mas é do próprio escritor que desistiu de escrever.
Mas Frank volta a escrever: ele nos conta a sua história no livro “O cronista esportivo”. E por que mesmo decide conta-la? “Contei tudo isto porque, sem querer, naquela quinta-feira [uma quinta-feira de Páscoa], acordei com a sensação de que muitas coisas iriam mudar em minha vida e ser resolvidas, e outras iriam terminar brevemente, e que assim teria algo interessante para contar”.
Conta porque tem algo interessante para contar. Algo relacionado à mudança, à resolução, ao fim…
Conta porque a vida não é algo inevitavelmente intransponível e desagradável…Conta porque a vida é interessante…
Conta porque “a vida alheia (…) é imprevisível”…
Conta porque “tudo pode acontecer (…)”…
Conta porque “o mal está emboscado em qualquer lugar, e a morte é um castigo demasiado severo comparada a outras alternativas”…
Conta porque “é possível ser consolado com o consolo alheio, mesmo o mais banal”…
Conta porque a consolação “é vital para evitar uma depressão aguda”…
Conta porque “precisamos ter muita força de vontade, caráter e coragem para sairmos do banco de reservas e jogarmos com vontade num jogo importante, sabendo que jamais seremos titulares do time”… (lembremos do escritor para quem a humanidade não liga)
Conta para “conhecer-se a si mesmo, nossas próprias limitações e potencialidades, e não nos alienarmos delas”…
Conta para não ser levado “a um estado de alheamento angustiante e ao pior gênero de afastamento e abstração em relação ao outro, uma impossibilidade de comunicação”…
Conta porque “a vida é cheia de mistérios” e, portanto, de interesse, e porque “quanta coisa na vida não pode ser adivinhada nem antecipada”…
Conta porque “todos nós encaramos o mundo de algum ponto de vista, lugar ou maneira específicos”, e talvez até julguemos “útil e proveitoso” esse ponto de vista…
Conta para escapar do “ritual de purificação à base de bebidas fortes e lágrimas quentes (…) único que temos em nossa civilização”…
Conta para “aceitar a dizer ‘sim’ o quanto puder” a tudo: nossas cidades, nosso vizinho, nossa vizinhança, nosso carro, ao carro do outro, ao gramado, à cerca, à calha…
Conta para amadurecer, para “saber reconhecer o que é ruim ou fora do comum na vida”; para “ser capaz de admitir que não se pode mudar o inevitável, mas seguir em frente, fazendo o melhor possível”…
Conta para “enfrentar a realidade onde puder (…) que é tudo o que há para fazer”; enfrenta-la onde puder e por pior que seja.
Anos depois de enfrentar a morte do filho, o divórcio, o abandono da literatura, e no momento em que enfrenta aquela Páscoa (relembrada no livro), Frank enfrenta o suicídio de um amigo: “A morte de Walter teve sobre mim o efeito que deveria ter: lembrar-me da responsabilidade que me ligava ao mundo”.
Conta, pois a “última verdade que nunca poderá ser mentira é a própria vida, a vida como é vivida e acontece”…
Conta, enfim, para responder a pergunta do momento: “A que você realmente dá importância na vida?”.