Das profundezas do desconcerto do mundo

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
8 min readMar 21, 2020
“Na fraqueza é que sou forte! Porque é só na fraqueza que consigo, pouco que seja, silenciar as estridências do amor próprio, e ouvir as pancadas do coração do meu Senhor” (Gustavo Corção)

“Para quê? Para que todo esse estudo? Todas essas horas de leitura? Para que todos esses livros?”.

Em mim são raros, mas esses momentos de desespero intelectual existem. E pode até soar paradoxal, mas me parece que é justamente nos momentos em que margeamos abismos, pessoais ou sociais, que a esperança de compreender algo se agudiza; os momentos “de profundis”.

Essa expressão — de profundis — me acompanha desde que, há alguns anos, li um pequeno e penetrante artigo de mesmo nome: De profundis. O autor é o escritor católico Gustavo Corção. Publicado em 1962, lido por mim em 2005 ou 2006, esse pequeno texto é, na minha vida, um clássico (um desses clássicos pessoais): um texto que nos explica e interpreta.

A sua ideia central é universal, essencial e, portanto, permanente; universal, essencial, permanente e, consequentemente, atual. Essa ideia dormita, latente, em minha memória na maior parte do tempo; e é só de tempos e tempos que ela acorda, como saída de um pesadelo, e me desperta para a sua realidade: as crises tornam o universal, o essencial, o permanente, o atual mais relevantes para nossa atenção.

Mas qual é essa ideia? Corção não a esconde nem camufla, e a escancara nas primeiras frases do pequeno e penetrante artigo: “Sempre desejei escrever um estudo, um ensaio, um livro, para mostrar, aos que se escandalizam com os desconcertos do mundo, que é esse turbado espetáculo o melhor encaminhamento para uma demonstração da existência de Deus”.

Um momento: deixe-se pensar…

Quantas vezes foi você esse escandalizado, esse ofendido, esse humilhado, esse abalado em suas crenças? Hoje, talvez, talvez até muito provavelmente, para você, seja um desses momentos de “turbado espetáculo”, de “desconcerto do mundo”; um mundo de desinteligência, de confusão, de falta de sentido. Mas, segundo Coração, esta é exatamente a boa hora para Boa Nova.

Ele pensa que esse caminho, a vereda da confusão à demonstração da existência de Deus, “é o mais indicado para nossos tempos de paradoxos e crises. Talvez seja um remédio bom para todas as épocas, a julgar pela ênfase com que a ideia aparece no Antigo e no Novo Testamento”. Ele lembra que “o livro do Eclesiastes (…) é uma longa demonstração, por absurdo, da transcendência da sorte humana e da existência de Deus”.

Mas por quê? Por que essa crença na transcendência da sorte humana é necessária? Por que é necessária a existência de Deus? Corção responde: “Pois se ficamos nos limites traçados ‘sub sole’, nos limites dos horizontes terrestres, a vida se torna inteiramente absurda”. E ser absurda significa ser contrária e repugnante à razão; é ser um despropósito, uma insensatez, um disparate.

Agora, outro momento: deixe-se uma vez mais pensar. E pense com calma. Considere com paciência, com carinho, com atenção e sinceridade, e responda a si mesmo: a tua vida é inteiramente absurda (atenção ao advérbio “inteiramente”)? A tua vida e a dos teus pais é completamente contrária e repugnante à razão? A tua vida e a dos teus filhos é um total despropósito, algo sem nenhuma finalidade? A tua vida e a vida da tua esposa, do teu marido, da tua noiva, do teu noivo, da tua namorada, do teu namorado é uma integral insensatez, uma rematada loucura? A tua vida e a vida dos teus familiares e amigos e pessoas que você ama e admira é (ou foram) um sólido disparate, contrárias ao bom senso, uma inquestionável tolice?

Um rebate sincero, de coração na mão, a essas perguntas, nos dirá muito de nós sobre nós mesmos. E somente uma resposta negativa nos tornará aptos a seguirmos os argumentos de Corção até o fim (a seguirmos qualquer coisa até o fim); pois uma resposta sinceramente afirmativa já não animaria razão alguma a buscar sentido algum em uma existência já decididamente sem sentido e sem razão.

Mas também seria um absurdo negarmos a existência do absurdo e, portanto, negá-lo em palavras é afirmá-lo em ato. O absurdo existe! E Corção sabe disso; e sabe tanto que é o absurdo o seu método: “Olha em volta de ti, alma atribulada e triste. O mundo, com todas as suas montagens, com todos os seus prestígios, tem o ridículo das coisas frágeis que se julgam enormes. Olha em volta de ti, alma cansada, e considera as farsas, as máscaras, os espetáculos, as galas, os príncipes, as cúpulas, os demagogos, os dirigentes em todos os escalões, e os dirigidos, ah! os pobres dirigidos que se extasiam de admiração diante de quem os desfalca, diante de quem os oprime. Mundo, mundo, triste mundo…”.

Sim, existe o absurdo! Sim, existe a tristeza! Mas existe também, diz Corção, o serviço, e é um servir por meio, por exemplo, de aulas, de artigos; é um servir à veracidade, à exatidão, “e assim sendo é sempre Deus, nos seus inúmeros pseudônimos, que estamos servindo, consciente ou inconscientemente”. E o serviço, por vezes, toma a forma de um combate; é um serviço em luta. E não há luta sem confronto. Não há luta sem esforço. E não há ação enérgica, não há coragem, não há diligência, nem zelo, nem ânimo ou vigor inquebrantáveis. Até Cristo prostrou-se, angustiado, no Jardim das Oliveiras, abatido pela consciência do cálice da sua Paixão. E suou sangue. Mas rezou: “Seja feita a Tua vontade, não a minha”. E, claro, Corção o reconhece:

“Chega entretanto a hora em que toda essa luta se transforma numa espécie de pesadelo, ou numa espécie de loucura. Um cansaço mortal esmaga o coração. Um coro de zombarias parece dizer que tudo é vão neste mundo absurdo e submerge a alma, matando não só as esperanças como também aquelas flores do passado que pareciam tão solidamente plantadas no fato de terem existido. E o mundo então nos parece mau. Mau e estúpido. Errado. Incôngruo. Abortado”.

E, talvez, nesses momentos, nos prostremos de joelhos, ou de cara no chão, e roguemos a Deus, como Cristo nos ensina, para que afaste o Cálice, mas…Mas que seja feita a vontade Dele. Ou, então, a aflição e a angústia e a dor que sofremos, encerradas no quarto escuro e fechado da nossa pequena lógica, apenas humana, apenas criatura, se misturam compondo sentimentos de ódio, de revolta e impingindo ações que apenas reforçam os absurdos, os erros, a estupidez, o mau.

E Corção afirma que “é nesse momento, nessa exata hora de acabrunhamento total e de total escuridão, que Deus nos surge e nos diz, não mais escondido, não mais disfarçado, mas presente e quase sensível, presente e quase visível, nos diz que sem Ele o desconcerto do mundo seria um gracejo das essências, ou uma insuportável piada produzida ao acaso pela matéria menor do que por nós e nossa autoria. Nos diz Deus, no fundo dos abismos, que sua existência é exigida pela ordem do mundo, pela harmonia das órbitas, das causas, dos seres, ainda mais urgentemente exigida pela desordem, que não pode ser a razão de ser do universo, a lei do mundo”.

Se assim fosse, diz Corção, isso nos forçaria “a uma loucura decidida”, e nos rebaixaria à mais completa e humilhante capitulação: “Sem Deus, o Mal vira Deus. E a alma cansada e triste fica sem saber de onde lhe vem a força de ficar triste, e a força de se sentir cansada. E de onde lhe vem a fatigada força de julgar o mundo”.

Hoje, 20 de março de 2020, em meio a uma pandemia mortal, não podemos esconder nossa aflição, nossa miséria; elas estão nos rostos, nos alertas, nas ações impulsivas, nas lágrimas… “E é nesse momento, em que pelos critérios do mundo estamos mais rebaixados, nesses momentos indescritíveis, intransmissíveis, incomunicáveis, a não ser em gemidos, em imprecações, em frases de dor entrecortadas e sem sentido, é nesses momento de humilhação, de irritação, de quase desespero, que Deus está próximo de nós, descido pelos degraus que o Cristo carnalmente desceu, tornado opróbrio como ele carnalmente e visivelmente se tornou”.

E Corção diz que “basta para isto um movimento da alma. Um pequeno movimento. Um movimento de pequenez, uma atitude inversa de tudo aquilo que os impérios prestigiam”. Sim! É um movimento de pequenez, mas nada tem de pequeno! Pois quantas vezes é grande o nosso amor-próprio! E que enorme o nosso egoísmo! Sólida e mastodôntica nossa arrogância! Ainda que humilhados! Ainda que angustiados! Ainda que medrosos! E resistimos, no fundo, nas profundezas, gemendo…Mas não rezando.

Corção defende que, “nesse assunto em que a miséria e a glória se interpenetram e se confundem”, o melhor é buscar “no Novo Testamento os textos mais convincentes, mais próximos de nossa aflição”. E ele encontra “a voz ardente” do Apóstolo Paulo nos contando as aflições que ele também experimentou: “Três vezes pedi ao Senhor que as afastasse de mim. Mas Ele declarou: — Minha Graça te basta, pois é na fraqueza que triunfa o meu poder. E então eu passei a me glorificar de minhas fraquezas a fim de que desça até mim a força de Cristo. Sim, eu me comprazo nas minhas fraquezas, nos meus ultrajes, nas angústias, nas perseguições sofridas pelo Cristo, porque quando estou na máxima fraqueza é que estou forte. Estou ficando louco? Sois vós que me compelis a me gabar…”.

Estaremos loucos? Estaremos à beira da loucura? Confirmaremos o “sim” daquele que diz ser a nossa vida inteiramente absurda?

“Considera em volta de ti o mundo, alma ferida”, nos exorta Gustavo Corção, pedindo para que nossa atenção se volte aos bem-sucedidos que passam, “e atrás deles o cortejo dos que esperam as sobras do prestígio, e atrás deles os fotógrafos, os jornalistas, os oradores, a humanidade de cabeça levantada no próprio engrandecimento”.

Consideremos também os malsucedidos que passam, “e atrás deles os aproveitadores de misérias, os que tiram juros da miséria, votos da miséria, bem-estar da miséria, renome próprio, honra e glória, da miséria, da miséria, da miséria. E atrás deles passam os marcados pela cruz que sentem nostalgias dos valores que desfilam nas passarelas do mundo. Veem-se cristãos, padres, bispos, todos querendo ter ouro no bolso ou na auréola. E em volta de todo esse espetáculo de Dolce-Vita que transcorre no limiar do Purgatório ou do Inferno, vemos uma negra nuvem de espessa tolice a eclipsar a pregação evangélica. Sim, essa é a grande, a máxima desordem do mundo…”: milhares, milhões correndo eminente perigo de morte, e a quase completa ausência de verdadeiras lideranças espirituais, intelectuais, políticas para indicar um norte para as almas, um rumo para o corpo.

O que fazer? “Considera e reza”, convida Corção; “considera, e imita a loucura do Apóstolo. E basta um movimento, assim como quem se volta, como quem olha para o vulto que está a seu lado, basta um quase nada para sentir as pancadas do sagrado coração (…) Na fraqueza é que sou forte! Porque é só na fraqueza que consigo, pouco que seja, silenciar as estridências do amor próprio, e ouvir as pancadas do coração do meu Senhor”.

Silêncio…Escutemos.

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