Domando Bucéfalo

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
4 min readJun 27, 2018
“Dessa forma, o aluno de Aristóteles mostrou já saber que não temos poder sobre as paixões a respeito das quais não sabemos as reais causas”

Todos nós sofremos os ataques doloridos e irritantes de alfinetes incógnitos; aquelas dores, aqueles incômodos que laceram nossa carne, mas também nosso espírito, lançando bílis em nossos melhores humores; achaques cuja origem, é verdade, pode nos escapar…Mas também é verdade que, muitas vezes, nós é que a deixamos fugir; e isso por mera falta da devida atenção e empenho da nossa inteligência. E como afirma o filósofo Alain, “não temos poder sobre as paixões a respeito das quais não sabemos as reais causas”.

É rápida e preciosa a conversa (“propos” em francês) em que ele lança essa reflexão. Aliás, a respeito da série de conversas escritas por Alain, Louis Lavelle disse que são “artigos curtos nos quais ele associa a algum acontecimento atual uma meditação sobre um tema eterno, conseguindo criar assim um novo gênero literário”; gênero que “se assemelha ao ensaio, mas é mais curto”; que “tem a duração da reflexão quando feita de um só fôlego”; gênero no qual o autor, por meio da conversa, “propõe a visão que tem das coisas e o julgamento que faz sobre elas” (o termo “propos” significa conversa, mas também proposição, proposta, propósito).

É “Bucéfalo” o título daquela conversa que abre o livro “Propos sur le bonheur”; e, penso, não há nesse texto apenas um “tema eterno” a respeito do qual ele medita, mas ao menos três: o medo, o sofrimento e o entendimento.

Para ser mais exato, ele reflete sobre a necessidade — que é de todos e de cada um de nós — de tentarmos entender o sofrimento e o medo; tanto aquele que sofremos e sentimos quanto (e principalmente) o que os outros sofrem e sentem.

Como símbolo do sofrimento, Alain escolhe o alfinete: “Quando uma criancinha chora e, mesmo chorando, parece não querer ser consolada, a enfermeira muitas vezes elabora as suposições mais engenhosas com relação àquela jovem personagem e sobre as coisas das quais ela gosta e das quais ela não gosta; apelando para ajuda dos pais, a enfermeira já reconhece o pai no filho; esses testes psicológicos são prolongados até ela descobrir o alfinete, ou seja, a causa real de todo o choro e a recusa da criança em ser consolada”.

A enfermeira, que é engenhosa, estende os testes até encontrar o alfinete, a causa real da dor e do mau humor da criança; ela busca entender o que, afinal de contas, está acontecendo.

Da nossa enfermeira hipotética, Alain salta para a história lendária de Bucéfalo, cavalo indomado e, aparentemente, indomável, requisitado pelo jovem quase imperador Alexandre, que logo viria a ser “o Grande”. E talvez a postura do jovem em relação ao cavalo intratável explique algo da postura que o líder adotou no governo, e que o levou pelos caminhos das conquistas e do Império; uma postura que é um esforço; um esforço que é o de compreensão.

Alain resume a história: “Quando Bucéfalo, o ilustre cavalo, foi apresentado ao jovem Alexandre, nenhum escudeiro poderia se manter sobre este animal formidável. Diante desse fato, um homem vulgar teria dito: “Eis um cavalo ruim”. Contudo, Alexandre pôs-se a buscar pelo alfinete, e logo o encontrou ao observar que Bucéfalo morria de medo de sua própria sombra; e como a agitação provocada pelo seu medo fazia a sua própria sombra saltar também, parecia não haver fim para esse círculo vicioso. Mas Alexandre virou o nariz de Bucéfalo na direção do sol e, mantendo-o nessa posição, o jovem foi capaz de tranquilizá-lo e cansá-lo”.

E ele conclui: “Dessa forma, o aluno de Aristóteles mostrou já saber que não temos poder sobre as paixões a respeito das quais não sabemos as reais causas”.

“Eis um cavalo ruim”, diria um homem vulgar; um homem infenso a buscar o alfinete e partidário das rotulações ordinárias. Alexandre, aluno de Aristóteles, no entanto, era invulgar; como invulgares são as enfermeiras que testam e testam em busca dos alfinetes perdidos espetando as crianças; como invulgares somos quando, de um modo ou de outro, buscamos as causas reais do que quer que seja; como vulgares somos quando, de um modo ou de outro, nos tornamos atribuidores reducionistas do que quer que seja:

“Nunca diga que os homens são maus; nem nunca diga que eles têm tal ou qual caráter. Ao invés disso, procure o alfinete”, nos desafia Alain.

E é, de fato, um desafio. Não que, com isso, Alain queira dizer que os homens todos sejam bons, nem que o caráter deles seja indescritível; quer dizer, apenas, que encerrá-los num ou noutro rótulo não nos ajuda a entendê-los; afasta-nos da compreensão; aproxima-nos da vulgaridade do homem que diz: “Eis um cavalo ruim”.

Alain nos desafia a refrear em nós o ímpeto de amputar uma realidade complexa rotulando-a vulgarmente. Alexandre viu que o cavalo era ruim, mas não se limitou ao que Bucéfalo era; ele partiu do que ele era para leva-lo aonde ele poderia chegar; as enfermeiras veem que a criança está de mau humor e grita, mas sabem que há algum alfinete, em algum lugar, espetando-a; e sabem também que “uma criança que grita faz com que as outras gritem; pior ainda, gritamos por gritar”.

O filósofo escreveu “Bucéfalo” quatro anos depois da Primeira Guerra e toda aquela circunstância parece tê-lo ensinado que “muitos homens negam o medo e por fortes razões”; e que, ironicamente, “quem tem medo não escuta razões; escuta as batidas de seu coração e o fluir do seu sangue”.

Todos temos fortes razões. Escutar ou não escutar, eis a questão que divide a postura invulgar da vulgar.

--

--