Exame de Sangue

Daniel de Oliveira Carvalho
É quase Shakespeare!
4 min readJul 13, 2019
Lab, photo by Chokniti Khongchum

A luz branca ofuscou-lhe as vistas até que o laboratório se revelou lentamente, como em uma visão mística. Por sobre os armários brancos frascos semelhantes a poções secretas faziam par a máquinas futuristas, cujos displays profundamente negros simulavam os mistérios de uma bola de cristal. Sinais de perigo estampavam os cantos da sala em sinal de alerta aos que tratam a ciência de forma sacrílega. No meio da sala uma velha enfermeira vestida com um puro jaleco branco, um pouco corcunda e com uma pequena verruga no nariz, sorria para o jovem que vinha perguntar quanto ao seu destino. Ela convidou o jovem a sentar-se na poltrona com aspecto de divã e a estender o braço sobre a almofada preta do pequeno pedestal de metal reluzente, ali coletaria o seu sangue, forma moderna de se ler o futuro.

A enfermeira dizia: sente-se! Sente-se! Não tenha medo! Fique tranquilo, será rápido. Não vai doer nada. Logo saberemos tudo. Logo tudo será revelado!

Ele, sentando-se na poltrona divã e estendendo o braço sobre o pedestal, contemplava de forma reverente o laboratório branco e sem máculas, templo da Ciência e da Sabedoria. Ela virou-se de costas para ele e sobre a bancada colocou os materiais para o ritual: luvas, álcool, seringas, tubos, elástico de compressão, algodão, gaze, etiquetas com o nome do paciente. Organizava os materiais como que para um feitiço, sussurrava palavras incompreensíveis: citrato, heparina, fluoreto. Algo de religioso, de esotérico havia naquele lugar em que tudo estava revelado pela luz de led branca. Aquela mulher era uma espécie de oráculo, era detentora de um conhecimento secreto para os homens mortais, pois fazia ao mesmo tempo o papel de sacerdotisa e cientista.

Enquanto ele esperava, pensava que aquela situação não era em nada diferente daquela em que, na antiguidade, pobres ignorantes depositavam suas esperanças nas palavras consoladoras de um vidente ou de um astrólogo que lia, nas mãos ou nos astros, o Fado reservado a cada um. Diferenciava-se apenas o método de leitura, pois esta lia o futuro nas microscópicas partículas de seu sangue depois de um secreto ritual em uma máquina misteriosa, onde tudo que era vivo sangue se tornava pura molécula, pura letra isolada de vida. Esta, ao invés de seguir as marcas das mãos, consultava o formato dos glóbulos vermelhos e das plaquetas. Na posição onde antigamente se encontravam Júpiter ou Saturno, ela agora encontrava colesterol e glicose e, dependendo da casa em que cada um habitava, se LDL ou HDL, sabia dizer se a substância estava exaltada ou em exílio, se era maligna ou benigna. Poderia então, pela visão mística que o display led da centrifuga lhe daria, saber o destino final daquele jovem receoso. Será que ele casaria? Teria muitos filhos? Enriqueceria? Quantos anos viveria? Seria feliz?

A médica voltou-se para ele. Massageou-lhe o braço como em um ritual, apertou o elástico sobre o músculo, inseriu a agulha sob sua carne. O sangue jorrava para dentro do pequeno frasco cilíndrico e de base côncava. Uma vez repleto do líquido misterioso, ela cobriu o sangramento com a gaze e pressionou o local, impedindo com que o pulsar do coração lhe expulsasse o sangue. Balançou no ar o frasco e o sangue, como que vinho nobre separado para um sacrifício, ondulou dentro do recipiente. Estavam ali a chave e os mistérios da vida. Todo o Destino escrito em forma de moléculas. Ela sorriu ao contemplar o precioso mistério. Tampou o frasco, etiquetou-o, guardou-o na pequena prateleira com os demais recipientes que encerravam o destino de muitos outros.

Pronto! Disse ela. Agora, enviaria a amostra para os sábios do laboratório. Dentro de cinco dias ele saberia de tudo. Saberia se o Destino lhe reservava dieta ou vitaminas, esporte ou repouso, saúde ou doença, dor ou alegria, fortuna ou miséria, casamento ou solidão, vida longa ou vida curta, salvação ou perdição. Ele que não se preocupasse, dizia ela, as moléculas diriam tudo. Elas sabem de tudo, nunca mentem nem falham. Nelas esta a verdade e não há verdade fora delas. Regem nossas vidas como microscópicos deuses do olimpo e conforme o humor de tão pequenos deuses o destino dos homens é traçado sobre a terra. Então, ela entregou-lhe um papel com um número, um protocolo, um código secreto que dava acesso à Resposta. Voltasse em cinco dias e tudo estaria esclarecido. Ele saiu do laboratório de esperança e fé renovadas, segurando firme o código da Revelação. Foi-se embora confiante na enfermeira, na ciência e na bondade dos deuses.

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