Ilusões perdidas no paraíso do vira-bosta

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
6 min readJan 18, 2019
“Só sabemos sentar no bar e falar das coisas que gostaríamos de fazer, mas nunca fazemos nada. Só conversar e beber, beber e conversar. E de vez em quando escrever umas coisinhas que ninguém lê, nem tomam conhecimento. E ainda temos a pretensão de nos considerarmos gênios”, cita o crítico Wilson Martins

Ao ler sinteticamente, num “sobrevoo”, os sumários de 13 dos volumes da coleção Pontos de Vista escrita por Wilson Martins, arrisquei-me a dois rápidos mergulhos analíticos em dois curtos artigos, os quais me inspiraram e me levaram ao título e ao tema deste texto.

Explícito é o título.

Eis o tema: a procrastinação denunciativa (ou o denuncismo procrastinatório, como preferir), principalmente, mas não apenas, das nossas classes “político-letradas”; classes que, por definição, governam e instruem o povo.

Se esse fenômeno conceituado pelo tema acima caracterizasse uma ou outra pessoa, vá lá; mas dada a sua frequência e suas consequências — as personalidades deformadas e as existências desvirtuadas — talvez possamos nos definir, de um modo geral, como um povo desfigurado de vida malsinada.

Para alguns, talvez seja esta uma generalização. De fato o é. Mas seria ela uma generalização incorreta?

Para enxerguemos naquela definição hipotética uma alta probabilidade, é só nos perguntarmos: “Conheço alguém que procrastina ao mesmo que denuncia? Em outras palavras, eu conheço alguém que tenha a vontade hesitante, repentina ou passageira, cheia de caprichos, fantasiosa, quimérica, utópica, sonhadora, volúvel, inconstante, nada termina, nada realiza, e ao mesmo tempo acusa Deus e o Mundo, critica o Oito e o Oitocentos, e acha defeitos imperdoáveis, incoerências insuportáveis e fragilidades gravíssimas do 9 ao 799?

Se você é ou conhece alguém assim, e se apenas eu e você estivermos lendo este texto, podemos concluir que 100% dos leitores é ou conhece alguém que seja afetado pela procrastinação denunciativa (ou o denuncismo procrastinatório, como preferir) e, portanto, tem ciência de personalidades desfiguradas de vidas malsinadas.

E isto é muito, muito deprimente: ter diante de nós o reflexo — no espelho ou apenas na retina –, ao vivo e a cores, de “vidas que poderiam ter sido e que não foram”, mas que denunciam e criticam apenas o “não foram” dos outros.

Vidas perdidas…Uma geração inteira perdida.

E é esta a exata expressão usada por Wilson Martins para definir os jovens dos 1960: geração perdida. Política e intelectualmente perdida.

E como o crítico chega a essa conclusão?

Se não por outras razões, ao menos pelo relato do escritor Luiz Vilela, autor da história “Os novos”, analisada por Martins no artigo “Ilusões Perdidas”.

A análise de Martins, publicado no dia 20 de outubro de 1984, celebra a segunda edição do livro de Vilela, publicado inicialmente em 1971. E o que explica a “glacial acolhida” que deixou o romance na geladeira por treze anos não é a baixa qualidade literária da obra que, segundo o juízo crítico do autor de Pontos de Vista, “não somente vence sem nenhuma dificuldade a prova da releitura, como, ainda, acabou ganhando com o distanciamento no tempo e nas paixões”.

Coisa muito diversa aconteceu, completa o crítico, “com os incontáveis romances ‘políticos’ do mesmo período, todos mergulhados para sempre nas brumas do esquecimento”.

E ele ainda pontua: o romance de Vilela é um testemunho, um documento que explica por que os “nossos revolucionários (…) jamais passaram de revoltados sem causa, sem objetivos, e sem programa realmente político, e por que a maior parte dos revolucionários das letras jamais ultrapassou o estágio fácil dos manifestos desafiadores e ambiciosos, das ‘obras em projeto’ e das proclamações exaltadas em favor das ‘vanguardas’ (…); transferiam-se sempre para causas exteriores e independentes da sua vontade as razões do próprio malogro. Foi uma geração que vivia no futuro — em imaginação — e que pensava construí-lo a custa de exorcismos, o que se traduzia, nos domínios da política e da literatura, por meio de táticas psicanaliticamente estéreis: promover a revolução na América do Sul era sequestrar diplomatas, assaltar bancos, cometer atos de terrorismo. Escrever obras-primas era procrastinar dia a dia o momento de começar a escrevê-las, ‘quando terminasse a repressão’”, descreve Martins, que o faz, como não é difícil perceber, sem se iludir, sem mitificar a geração de 1960, que tantas glórias alcançou pelo mais desonesto e covarde dos métodos: o das falsificações autoglorificadoras.

Eis como um dos personagens de Vilela, citado por Martins, descreve a si e aos seus colegas de geração:

“Só sabemos sentar no bar e falar das coisas que gostaríamos de fazer, mas nunca fazemos nada. Só conversar e beber, beber e conversar. E de vez em quando escrever umas coisinhas que ninguém lê, nem tomam conhecimento. E ainda temos a pretensão de nos considerarmos gênios”.

E em relação a outra personagem, Vilela escreve:

“Como sempre acontece, ela começou querendo tudo: um livro sobre o romance universal; depois, ficou só o brasileiro; depois o brasileiro, mas só urbano. Agora? Nem urbano, nem brasileiro, nem romance; nada de livro. Claro que ela nunca escreverá. Ela própria me disse que está abandonando suas ‘veleidades literárias’. Ela falou brincando, mas no caso dela é isso mesmo, desde o começo foi: veleidades”.

E são os representantes daquela geração que desde a década de 1980 nos “governam”, nos “ensinam”, nos “instruem”, nos “inspiram”. Uma geração que se perdeu porque, segundo Martins, não soube se afirmar e se impor política e literariamente enquanto geração. Em outras palavras, não apresentou obras, políticas e literárias, que a configurasse. Perdida, “compensou-se por antecipação com a elementar terapia de grupo que consistia em viver vicariamente as revoluções alheias”.

E Martins cita, claro, a Revolução Cubana e Che Guevara, idolatrados por tantos das gerações de 1960, 1970, 1980, 1990 e 2000; e cita Mallarmé e Joyce, estes nem de longe conhecidos pelos mais novos como aqueles.

Num país em que a figura do caga-regra é pública e notória; em que, como dizia Otto Lara Rezende, a gente sabe os três primeiros minutos de qualquer assunto; em que há um técnico de futebol, um presidente, um governador, um prefeito, um gênio sabe-tudo em cada boteco de esquina (e em cada curva das redes sociais), inevitavelmente tudo é potencial.

“Tudo é potencial no país do futuro”, não seria arriscado dizer…se o único risco fosse o de errar.

Mas lembre-se que “a coisa” não para por aí: à falta de autoimposição, caracterizada pela ausência de concretização de projetos e pela exuberância da procrastinação, se junta a ânsia de denuncismo; método infalível para racionalizar as circunstâncias: “A ‘repressão’, a censura, a estupidez dos editores, o trabalho esterilizante nas redações, os deveres profissionais eram outras tantas formas de racionalização para o malogro pessoal e a impotência criadora”, conclui Martins sobre aquela geração. Dessa forma, a postura “crítica” substitui a ação, o trabalho, a dedicação, a disciplina. E este é o tema do segundo artigo que me inspirou esta reflexão: “O país do denuncismo”.

Publicado em 24 de outubro de 1987, este outro artigo tem como tema o livro “O paraíso do vira-bosta”, publicado por Emil Farhat no ano anterior, e cujo assunto é, dentre outros, o denuncismo, traço, segundo os autores, marcante na psicologia social do brasileiro:

“De fato, somos o país das denúncias indignadas”, concorda Martins, que deslinda a ciranda: “o presidente denuncia a falta de espírito cívico das grandes empresas e dos milionários, que, reciprocamente, denuncia a incompetência econômica do governo; os ministros, prefeitos e governadores denunciam o excesso de funcionários nos respectivos serviços, mas garantem, ao mesmo tempo, que ninguém será demitido; os da área econômica denunciam as intoleráveis distorções do Plano Cruzado e suas consequências; os da área sanitária, apoiados em estatísticas irrefutáveis, denunciam as endemias e epidemias que assolam o país; os políticos denunciam a corrupção e a fraude eleitoral dos adversários; os consumidores denunciam o ágio dos mercados; a Igreja denuncia os latifundiários e a violação dos direitos humanos; a imprensa (…) denuncia tudo isso e o resto, sem excluir alternativamente todos os denunciantes”.

O problema não é a denúncia em si mesma, mas a denúncia vazia, salienta Martins, “porque, como já se tem notado, nunca os culpados foram punidos, nem os escândalos eliminados, nem os erros corrigidos, nem a corrupção estancada, nem os abusos coibidos”.

E para evidenciar a importância histórica desse traço do caráter nacional, Wilson Martins, escrevendo em 1987, pinça um exemplo de 1901, quando o também crítico, e então deputado, Silvio Romero, “explicava a seus pares (…) as razões de nossos atrasos frente a outros países: ‘enquanto eles agem, nós discutimos’, axioma que poderia ser formulado de outra maneira: ‘ enquanto eles agem, nós denunciamos’.

Tal denuncismo, compendiado por Farhat, promove uma frustração dupla, conclui Martins: a de sua futilidade e a da “imensa hipocrisia que implicam”.

Elegendo a denúncia vazia e anestesiante como meio preferencial de ação, nos eximimos — ou pretendemos nos eximir — do enfrentamento decidido dos problemas reais e concretos. Nada mais do que um meio a mais de procrastinação; uma procrastinação denunciativa.

Ou um denuncismo procrastinatório, como preferir.

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