Não é mera coincidência

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
3 min readSep 6, 2018
Como Carlos Drummond de Andrade no poema “Máquina do Mundo”, decidimos por “desdenhar colher a coisa oferta que se abre gratuita ao nosso engenho”

Na manhã de quinta-feira, dia 30 de agosto, o brasileiro ficou sabendo o que já era evidente: que os alunos deixam o ensino fundamental com desempenho pior do que tinham quando entraram; e que a maioria dos estudantes no ensino médio não aprende o básico de português e matemática.

Quem nos informa isso são os luminares do Ministério da Educação e os dados são do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb).

Na tarde do mesmo dia, é anunciada a eleição de um cineasta — um cineasta! Não um escritor! — para a Academia Brasileira de Letras — de Letras! (Repito: L-E-T-R-A-S).

Na noite de domingo, dia 02 de setembro, o Museu Nacional é devorado pelo fogo, e milhões de itens de geologia, paleontologia, botânica, zoologia e arqueologia são reduzidos às cinzas, e o secular Palácio Imperial é em parte destruído.

O psicólogo Reuven Feuerstein, criador da teoria da Modificabilidade Cognitiva e da Experiência de Aprendizagem Mediada, listou 28 deficiências cognitivas que podem assolar o indivíduo, dificultando a compreensão que ele tem da realidade. Uma dessas deficiências é a percepção episódica da realidade, assim definida: “falta de inclinação de procurar, e inabilidade de discernir, relacionamentos entre eventos, coletá-los, organizá-los, e resumi-los”.

Pois bem: as notícias acima não são meros episódios isolados da vida nacional; e quem não pensa na profunda e ampla relação que há entre a deseducação sistemática das crianças e jovens, a escolha de uma figura que nada contribuiu para as letras nacionais para a Academia de L-E-T-R-A-S, e o toque calcinante de Nero no Museu Nacional, não compreende que todos esses eventos são parte de uma e mesma história: a da Institucionalização da Idiotice, que bem poderia ter como subtítulo “A Interiorização da Imbecilidade como Projeto (ou Dejeto) Nacional”.

Sim, talvez tenha sido um incêndio criminoso. Mas podemos nos perguntar: até que ponto também não podemos julgar criminosa a flagrante incompetência em cumprir um serviço como o da educação, por exemplo?

Sim, é prova de falta de senso das proporções, de critérios, de valores realmente literários a escolha de um cineasta que nenhuma contribuição fez às letras nacionais para uma instituição que assim se define: “A Academia Brasileira de Letras (ABL) é uma instituição cultural inaugurada em 20 de julho de 1897 e sediada no Rio de Janeiro, cujo objetivo é o cultivo da língua e da literatura nacionais”.

Mas também a “educação” — que o Ministério da Educação e tantas Secretarias (estaduais e municipais) — nos entregam não é consequência da falta de um mínimo de senso das proporções, de critérios e de valores realmente educacionais (inclusive literários)?

A verdade é que antes de arderem os milhões de itens do Museu Nacional, foram lançadas no inferno das ideologias, nas chamas dos interesses mesquinhos, nas labaredas do imediatismo, no limbo do esquecimento, milhões de ideias, símbolos, perspectivas, valores, conceitos, escritores, filósofos, poetas, santos, heróis, histórias que abriram, à frente dos que vinham (ou seja, de nós todos), um caminho razoavelmente seguro e inspirador para pensarmos e compreendermos a realidade; tudo agrupado nisso que chamamos “tradição cultural”.

Mas, como Carlos Drummond de Andrade no poema “Máquina do Mundo”, decidimos por “desdenhar colher a coisa oferta que se abre gratuita ao nosso engenho”.

O filósofo brasileiro Mario Ferreira dos Santos chamou a atenção para esse estado de coisas no seu livro “Invasão Vertical dos Bárbaros”, de 1967. Emil Farhat também, em sua obra “O país dos coitadinhos”, de 1968. Em diversas crônicas (reunidas depois em livros), o escritor Nelson Rodrigues também atestou o declínio da inteligência nacional. Osman Lins, em seu “Do ideal e a glória: problemas inculturais brasileiros”, de 1977, tratou do assunto. Desde a década de 1990, o filósofo Olavo de Carvalho publica livros, artigos e ministra aulas em que a decadência da nossa alta cultura é também descrita e analisada. E muitos outros assinalaram, com maior ou menor profundidade, a nossa decadência.

Certa vez, Nelson Rodrigues disse que desejava o seguinte escrito em seu epitáfio: “Assassinado por imbecis de ambos os sexos”.

Na lápide da cultura nacional bem poderíamos escrever: “Assassinada por imbecis de ambos os sexos, aniquilada por idiotas de todas vertentes ideológicas, calcinada pela canalhice mesquinha de todos os tipos de ralé nacional (política, artística, econômica, universitária, religiosa, midiática…)”.

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