Num mero mundo de papel

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
4 min readMar 20, 2019
“Tal testemunho, neste ambiente de guerras de narrativas, de assassinatos de reputação, de maledicência, de fake news, de desinformação, de inépcias empossadas, de inaptidões consagradas, de incapacidades celebradas e de analfabetismos diplomados, pode sugerir o seguinte auto-questionamento a quem interessar possa: Com quais diplomas eu aprendi?”

“Diploma é papel pintado”. Muitas vezes li e ouvi o professor Olavo de Carvalho dizer isso; e eu, um legítimo detentor de três diplomas de curso superior, três ou quatro diplomas de ensino fundamental e médio, e dezenas de diplomas de honra ao mérito nas mais variadas ciências e artes pré-escolares, escolares e desportivas, eu deveria sentir-me profunda e devastadoramente ofendido, indignado, revoltado, atacado. Mas não me sinto. Afinal, eu li também o Rubem Braga.

E a crônica que me ensinou a compreender bem a ideia acima se intitula “Em um mundo de papel”. Escrita em 1958, ele conta uma história que se passou em São João do Meriti. Em sua Câmara Municipal, mais especificamente. O caso envolveu três vereadores, dois deles vivos, um papel, e toda uma concepção capenga de mundo e de realidade.

Eis o que aconteceu: a morte de um dos vereadores, embora trágica e apesar de triste, animou no seu enlutado suplente a sanha de poder. Ansioso, já na imediata sessão, ele requereu ao presidente da Casa a posse devida, justa e justificada do cargo. O presidente, no entanto, exigiu antes a posse da certidão de óbito do falecido edil. O suplente não a tinha, mas disse que a levaria em outra ocasião. E insistiu: para não haver inconveniente, ele poderia tomar posse imediatamente.

O presidente respondeu:

- Não se trata de inconveniência ou conveniência, mas sim de impossibilidade: o suplente não pode ser empossado sem antes estar devidamente provada e comprovada a morte do vereador substituído.

Ao que o requerente argumentou:

- Mas Vossa Excelência não ignora que o excelentíssimo vereador, de fato, faleceu…

- A prova do falecimento — formulou o presidente o que seria o seu mantra — é a certidão de óbito.

- Mas vossa Excelência, no entanto, tomou conhecimento oficial do óbito; como presidente da Casa até praticou diversos atos oficiais motivados pela morte…

E o presidente, fiel àqueles princípios, reafirmou:

- A prova do falecimento é a certidão de óbito.

- Mas Excelência — insistiu o suplente, já agoniado — o morto foi velado aqui, neste recinto, neste plenário; o enterro saiu desta sala, desta ilustre e digna Casa de Leis!

- A prova do falecimento é a certidão de óbito –, redarguiu, calmamente, o presidente, inabalável diante do embate herético que o bom senso promovia à burocracia.

- Excelência! — exclamou o suplente, sorrindo de nervoso — Pelo amor de Deus, Excelência: o senhor segurou uma das alças do caixão!

O presidente olhou-o, tomou um papel entre os dedos, e sussurrou, mostrando a folha:

- A prova do falecimento é a certidão de óbito!

Narrada a história, Rubem Braga finalmente conclui cheio de ironia: apenas os medíocres, os anarquistas e os pobres-diabos, condenados a vida inteira a ser suplicantes ou requerentes, e que jamais serão Autoridade, são incapazes de perceber a beleza da frase do caríssimo, ilustríssimo e digníssimo presidente da Câmara: “A prova do falecimento é a certidão de óbito”.

“Estes”, escreve o cronista, “jamais compreenderão que uma pessoa não pode existir sem certidão de nascimento nem pode deixar de existir sem certidão de óbito. Que acima da vida e da morte, do bem e do mal, da felicidade e da desgraça está esta coisa sacrossanta: o papel”.

O caso do diploma, me parece, ilustra a mesma tendência: para muitos brasileiros, a prova de conhecimento é e será sempre e unicamente o sacrossanto diploma.

E se dizemos: “Mas você não ignora que ele tem milhares de alunos que o procuram voluntariamente…”, eles respondem: “A prova de conhecimento é o diploma”.

E se ainda insistimos: “Mas ele tem centenas de aulas e diversos cursos gravados…”, eles reinsistem: “A prova de conhecimento é o diploma”.

E quando salientamos uma vez mais: “Mas você sabe que ele tem dezenas de livros publicados, alguns deles best sellers…”, eles desconversam: “A prova de conhecimento é o diploma”.

Desde muito antes do caso na Câmara Municipal de São João do Miriti, até a mídia, as universidades e as redes sociais de hoje em dia, é este um dos grandes embates que enfrentamos: o herético bom senso contra a cega burocracia.

“Somente a consciência individual do agente dá testemunho dos atos sem testemunha, e não há ato mais desprovido de testemunha externa do que o ato de conhecer”, escreve o professor Olavo de Carvalho. Tal testemunho, neste ambiente de guerras de narrativas, de assassinatos de reputação, de maledicência, de “fake news”, de desinformação, de inépcias empossadas, de inaptidões consagradas, de incapacidades celebradas e de analfabetismos diplomados, pode sugerir o seguinte auto-questionamento a quem interessar possa: “Com quais diplomas eu aprendi?”.

Nos anos em que acompanho o trabalho do professor Olavo, seja em suas aulas, seja em seus textos, uma das mais importantes lições que aprendi foi esta: esforçar-me na busca do bom senso de olhar e valorizar a realidade, e não um mero mundo de papel.

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