O método de Balzac

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
7 min readMar 13, 2019
“Para dominar os outros, ouçam bem, é preciso saber o que os outros ignoram: para onde se vai! (…) O que Napoleão começou com a espada, acabá-lo-ei pela pena”, diz Balzac

Há muitos anos, li a mensagem que o filósofo Mário Ferreira dos Santos deixou aos leitores do seu “Práticas de Oratória”. Desde então, lembro-me constantemente do método de exposição ali descrito. Ele compõe-se de três fases: a sintética, a analítica e a concreta.

Na fase sintética, o enfoque é no todo, na visão panorâmica do tema abordado; na analítica, os olhos baixos voltam-se para o mais próximo, o menos geral, e visam uma perspectiva mais profunda, atentos às partes componentes daquele conjunto, daquele todo; na última fase, a composição da síntese panorâmica (aspecto geral) com a análise em profundidade (aspectos particulares) resulta no que o filósofo chamou de “concreção”.

É muito ilustrativo o exemplo usado por Mário Ferreira dos Santos:

“Para justificar nosso método damos o exemplo de quem, dirigindo-se a uma cidade que não conhece, contempla-a do alto de um morro. Tem dela uma visão sintética. Depois, ao visitar suas ruas e bairros, vai conhecê-la com pormenores. Finalmente, quando se afasta da cidade, e a contempla outra vez do alto do mesmo morro, tem dela uma visão concreta, muito distinta da primeira, porque, embora tenha uma visão geral, esta já inclui aspectos e minudências, que antes desconhecida”.

Estudando parte da obra de Honoré de Balzac, não me parece ser outro o método de composição da sua Comédia Humana.

Segundo nos conta Otto Maria Carpeaux, o processo daquele escritor, “inventor do romance moderno”, é o de “fazer-nos ver primeiro o país, depois a cidade, depois a rua, depois a casa e, enfim, o quarto onde o drama se passa”. Sínteses que se afunilam, se afunilam, se afunilam, e que se tornam análises das minudências, apreciações de “Cenas da Vida Privada”, como foi nomeada uma das partes da obra imensa.

Não é fácil alcançar a concreção; corrigir e aperfeiçoar a síntese pela análise; é objetivo que demanda tempo, esforço, atenção, empenho.

Se fôssemos intentá-lo com a Comédia Humana, isso nos exigiria, primeiro, a observação sintética do muro de volumes que a forma; depois, a leitura da lista de obras que compõem esse monumento erigido pelo “Homero da burguesia”; por fim, a leitura de cada capítulo de cada volume, o mergulho analítico em cada uma das 95 obras concluídas.

Se levássemos um mês para ler cada uma delas, terminaríamos a nossa imersão em aproximadamente oito anos. Seria um esforço admirável.

Mas o que seria o esforço de ler a Comédia Humana comparado ao de imaginá-la e escrevê-la?

A ideia desse monumento foi concebida por Balzac em 1832. Ele então se dedicou 18 anos para dela concretizar o que pode, deixando ainda 48 obras inconclusas.

Quanto esforço de observação! Quanto empenho da imaginação! Quanto planejamento de ação! Quanto exercício de escrita, reescrita, leitura, releitura, edição e pesquisa não foram despendidos por esse “criador shakespeariano de caracteres”, por esse “monomaníaco da arte”, como o rotula Carpeaux.

Sobre Balzac, aliás, muito já foi dito e escrito.

Ruth Guimarães, tradutora de parte de sua obra no Brasil, afirmou ser ele o mais discutido e mais genial dos escritores modernos: “É onipotente e onisciente como um deus benévolo”, diz, tal a sua forma de escrever; forma “completamente transbordante”, típica do “homem que tem o coração demasiado cheio e que não pode conter a enxurrada”; gênio certeiro e intuição fecunda.

Citando Taine, a tradutora pinta Balzac como um ser movido por uma curiosidade de espírito que abraça o universo de nossos conhecimentos; uma imaginação que cria um mundo: “Percorrem-se em dez linhas (suas) os quatro cantos do pensamento”, escreve Taine.

José Geraldo Vieira afirma que “o caso de Balzac significa abundância, quantidade, formas cíclicas, concêntricas, secantes e tangentes, enfim toda uma estruturação de diagramas geométricos do destino”.

Paulo Rónai, o maior especialista na obra do francês no Brasil e um dos maiores do mundo, resume:

“Com ele, em síntese, fazemos um completo aprendizado da vida, descobrindo os conflitos ocultos nos seios das famílias, a fragilidade dos amigos e suas traições, o êxito dos bajuladores e dos hipócritas, a preterição dos bons, a insensibilidade dos ricos, o ódio e a inveja dos pobres, as rivalidades mesquinhas e a inércia irritante das repartições, as vinganças terríveis de sensibilidades feridas. Vemos em ação as mil formas de amor (um de seus principais temas), assumindo às vezes feições romanticamente angelicais, porém mais frequentemente agindo como paixão devastadora que transtorna as existências de suas vítimas. Aprendemos a conhecer os caminhos tortuosos da lei, os labirintos da chicana, o mundo tenebroso do crime, os arcanos da prostituição, os meandros da política, as manobras escusas das altas finanças”.

E é o próprio Balzac quem diz: “Para dominar os outros, ouçam bem, é preciso saber o que os outros ignoram: para onde se vai!”. A essa concepção de domínio pelo conhecimento ele acrescenta uma comparação que revela muito do seu espírito: “O que Napoleão começou com a espada, acabá-lo-ei pela pena”.

Essa ânsia de, com a pena, dominar a França e, por meio desse domínio, conquistar a humanidade, descrevendo-a e compreendendo-a, levou Balzac a transformar-se em um marco da literatura.

Para Otto Maria Carpeaux, “a história do romance como gênero literário divide-se em duas épocas: antes e depois de Balzac”. Coube ao francês, inclusive, transformar o sentido da palavra ‘romance’: antes, o termo significava uma história romanesca, fora do comum; “depois, será o espelho de nosso mundo, de nossas cidades e ruas, das nossas casas, dos dramas que se passam em nossos apartamentos e quartos”.

Com Balzac, pela primeira vez o romance espelha os dramas financeiros: “De dinheiro e de negócios fala-se, principalmente, nos romances de Balzac. A Comédia Humana é a ‘Tragédia do Dinheiro’”, escreve Carpeaux.

Nas histórias dele, o amor — embora seja tema constante, como lembra Rónai — já não é “o conteúdo da vida inteira”, como no Romantismo, e as mulheres são “substantivos em contratos de casamento, ou então objetos de prazer, tentações e obstáculos dos homens de negócios, motivos de falência”.

De dinheiro e de negócios fala-se, principalmente, mas não disso, apenas: história de uma sociedade hierarquicamente organizada, os critérios dessa organização são, segundo Carpeaux, além do dinheiro, as paixões e as tradições.

“A bem dizer”, escreve José Geraldo Vieira, “tratou de todas as modalidades e de todos os aspectos do homem, vícios, virtudes, instintos, injunções”; como um “Minotauro que se nutre hibridamente do concreto e do subjetivo”, a genialidade de Balzac não fugiu à vida nem ao tempo, “antes se abeberou neles”, afirma Vieira. Suas criações, diz Ruth Guimarães, “ele as tira da vida, impregnadas de vida, ainda quentes e dolorosas de humanidade”; o horizonte de Balzac, o que fazia seu coração se expandir, afirma Henry James, é “embarcar nesse mundo, ser bem-sucedido, viver de maneira grandiosa em todas as acepções da palavra”.

Talvez seja essa vitalidade pulsante e sanguínea o aspecto de inquietude que não permitiu que o trabalho de Balzac se enquadrasse em uma única e limitada escola literária: “ele é clássico, romântico, realista, idealista”, diz Ruth Guimarães; “rotular seus romances de realistas é empobrecê-los”, afirma Carpeaux, que diz ser “inegável” nele, inclusive, o romantismo; para José Geraldo Vieira, a leitura lenta e gradual da Comédia Humana é um “curso mais que didático da arte literária de narrar”.

A construção de todo esse “diagrama geométrico do destino” foi possível, dentre outros motivos, graças a uma técnica “longamente estudada e incessantemente aperfeiçoada por Balzac”, e assim descrita por Paulo Rónai:

1) personagens que são protagonistas em uma história aparecem em outra em papel secundário e vice-versa;

2) em meio às histórias, personagens criados por Balzac citam outras personagens por ele criadas como se fossem pessoas da sua convivência e conhecimento;

3) além da citação de personagens, também acontecem referências a acontecimentos de um romance em outro, mas sem necessariamente tornar evidente o personagem envolvido;

4) o autor também se propõe o trabalho de elucidar as relações de um com outro personagem;

5) notas feitas por Balzac remetem o leitor a outras histórias (dentre todas as técnicas, essa a menos artística, aponta Rónai).

A noção de grandiosidade movia e jorrava da sua agitada vida interior. Balzac dizia que, no mundo, se não se é grande em alguma coisa, mais vale não ser coisa alguma: “Ao ver a massa enorme dos homens vulgares, pergunto a mim mesmo por que motivo é que eles vivem, que interesse têm nisso”.

O “Homero da burguesia” sonhou, planejou, executou e alcançou a grandeza literária. Invulgar em tantos sentidos, soube por que viver e esteve ciente “do interesse nisso”; e foi por esse interesse que ele limou, noite após noite, café após café, folha após folha, livro após livro, cada um dos seus órgãos.

Já em 1842, seis anos antes de morrer, “fígado, coração, pulmões, rins, cabeça, tudo nele era motivo de sofrimento”, conta Ruth Guimarães; já era tão intenso o seu esgotamento “que, escrevendo, muitas vezes procurava as palavras sem encontrá-las”. Ainda escrevia 18 horas por dia. Rins e pés doíam-lhe demais. “Mergulhava os pés em mostarda e a cabeça no ópio”, diz a tradutora.

Mas não era por mero e puro descuido, desleixo, gratuidade. Ele tinha uma obra a fazer. Uma missão. “A respeito da vocação do escritor ele tinha uma concepção alta e grave, e condenava sem remissão um livro cuja única pretensão consistisse em fazer-nos passar agradavelmente algumas horas”, diz Rónai.

“Agradar” não era, de fato, o objetivo de Balzac com a Comédia: “Não é nenhuma visão otimista”, escreve Rónai, “mas por isso mesmo ajuda-nos a enfrentar o mundo em que vivemos, pois suas características em nada mudaram no decorrer do último século. Dir-se-ia que Balzac aceitou enfrentar deliberadamente todas as experiências para facilitar-nos a orientação no labirinto confuso da sociedade”, pontua Rónai. Mas ainda assim (e talvez por isso mesmo) ele “nos atrai, e nos fala ao espírito e ao coração”.

O escritor, vocação alta, vocação grave, missão difícil e árdua, deve enfrentar as experiências; todas as experiências possíveis; e deve enfrenta-las todas para poder, em meio à confusão, esforçar-se, não para definir caminhos, para dizer o que o mundo, a vida, a sociedade devem ser; mas para, instalando-se na realidade, conseguir, imantado de alguma verdade, apontar algo semelhante a um Norte para que, dele, possamos inferir um possível Sul, um presumível Leste, um razoável Oeste; cruz transversa abstrata que é o nosso “aqui” e o nosso “agora”.

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