Que ao menos elas vejam a luz do sol

Luiz Felipe Adurens Cordeiro
É quase Shakespeare!
4 min readJun 18, 2018
Se as aspirações são altas e nobres e lúcidas — sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas — e quem sabe se realizáveis — elas podem até não achar ouvidos de gente, mas que ao menos vejam a luz do sol

Por vezes, como Álvaro de Campos defronte da Tabacaria, julgamos não ser nada, que nunca seremos nada, que não podemos querer ser nada… Apesar de termos em nós todos os sonhos do mundo.

Sim: não somos nem Napoleões, nem Cristos, nem Kants, mas continuamos sendo humanos (almeja-se) e seguimos necessitados de forças para nossas batalhas individuais, e amor para nossas relações pessoais, e críticas para nossos pensamentos íntimos. E que importa se somos pequenos? Que importa se podemos tão pouco? Tão pouco como escrever um verso…Ou escrever qualquer coisa, ou dizer algo a alguém defronte, por exemplo, a uma tabacaria?

O que importa é não pensarmos tanto de nós mesmos, nem imaginarmos tanto que, decepcionados a tal ponto com aquilo que não conseguimos ser, chegarmos a invejar os mendigos, como Álvaro de Campos no Tabacaria.

“Fazermos de nós mesmos o que podemos fazer; não fazermos de nós mesmos o que não sabemos” poderia ser um princípio de vida.

Mas o problema é que entre o princípio e a sua realização se impõe a realidade; muitas vezes como algo entre um buraco e um abismo; uma pedra e uma cordilheira…E temos que ter consciência, e temos de nos preparar para entender que assim são os nossos caminhos, e que nossas viagens não se dão nos mapas.

Penso que, para um escritor, um dos muitos possíveis empecilhos entre o seu plano e a sua realização seja o sentimento de “não ser nada” dado à forma do seguinte pensamento: “Tanto já foi escrito ao longo dos milênios, tanto já foi dito ao longo dos minutos, e que importa o que eu escreva ou diga?”. Ele olha sua biblioteca, lança os olhos, em sua memória, nas bibliotecas que já viu; mira imaginativamente todos os bilhões de volumes e títulos; se lembra de todas as histórias e os versos que leu e, desanimado, conclui: “Não sou nada e tudo já foi dito”.

- Sim! — concordaria o escritor André Gide — Tudo já foi dito. Mas, como quase ninguém escuta, é preciso dizer de novo –, ele completaria.

Então uma nova perspectiva se abre. E é com isto — com o esquecimento e a desatenção e a ignorância alheias — que o escritor desanimado com a própria voz deve contar para justificar seu esforço. Não contar com isso, penso, é uma das formas de uma deficiência cognitiva chamada “comunicação egocêntrica”.

Segundo o psicólogo Reuven Feuerstein, essa deficiência da comunicação é uma consequência de uma atitude que uma pessoa tem para com outra; atitude caracterizada pelo juízo de que um não é uma entidade separada do outro e, portanto, parte do pressuposto de que o “outro” sabe tudo que “eu” sei, teve as mesmas experiências e as mesmas informações.

Para Feuerstein, a consciência do processo que ele denomina “individualização” e “diferenciação psicológica” pode nos ajudar a superarmos a comunicação egocêntrica. Esse processo caracteriza-se pelo indivíduo saber-se (e sentir-se) como “entidade separada, com o direito de pensar e expressar-se de uma forma especial que o distingue dos outros”.

É verdade: não somos nem Napoleões, nem Cristos, nem Kants; mas também é verdade que tampouco somos nada, apesar de nossos sentimentos, por vezes, nos dizerem o contrário.

Objetivamente, somos algo. Somos mais do que “algo”: somos alguém; e somos um “alguém” que lida com outros “alguéns”. Daí que, complementarmente à individualização e à diferenciação psicológica, Feuerstein chame a atenção para a importância do que denomina “comportamento de compartilhar”. Para ele, a habilidade de compartilhar experiências com outras pessoas, e participar das suas experiências, é “necessária e desejável”, pois ajuda a restaurar em nós “a prontidão e habilidade de fazer contato e chegar a um encontro com outros (…) a aumentar em nós a habilidade de ficar próximo um do outro, nos ajustarmos um ao outro, ganhar insight e suporte um do outro, e criar harmonia entre nossas experiências um com o outro”.

Saber compartilhar para individualizar-se, e individualizar-se para compartilhar, tomando cuidado para não degringolarmos nos extremos: a despersonalização ou o egoísmo individualista. E que importa se somos “apenas os da mansarda”? E que importa se “em mansardas e não-mansardas do mundo estejam nesta hora gênios-para-si-mesmos” sonhando? E que importa se somos um desses “gênios”?

Se as aspirações são altas e nobres e lúcidas — sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas — e quem sabe se realizáveis — elas podem até não achar ouvidos de gente, mas que ao menos vejam a luz do sol.

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