Uma explicação

Daniel de Oliveira Carvalho
É quase Shakespeare!
4 min readApr 18, 2020

Dona Nilma estava em casa, assistindo televisão. Eram quatro horas da tarde, e passava um programa de família, destes dedicados a exibir e explicar casos da vida cotidiana para senhoras aposentadas e donas de casa. Naquele dia a apresentadora conversava com um especialista em relações familiares. Ele, em seu tom professoral, cheio de conhecimento e segurança, falava dos problemas que as famílias enfrentam todos os dias como algo banal, como coisa que ele há muito dominava e que estava cansado de ver. O especialista estava sentado na poltrona do estúdio de televisão de uma forma confortável e segura, de pernas cruzadas e braços bem relaxados, como se todas relações familiares fossem algo óbvio para ele. Quando a entrevistadora perguntou ao especialista o motivo de tantos desentendimentos familiares, ele sentenciou com a máxima confiança:

- As famílias hoje não se entendem mais. E por que elas não se entendem? Por causa de valores. Mas, de quais valores? Perguntava o especialista em seu tom de palestra — Os valores de nossa sociedade em rápida transformação. E é daí que vem todos os desentendimentos familiares. Pois os valores dos pais não são os valores dos filhos, e os valores dos filhos não são os valores dos pais. Há um conflito. Os pais prezam por uma coisa, os filhos prezam por outras. E os pais desprezam o que os filhos prezam e os filhos desprezam aquilo a que os pais prezam.

A entrevistadora fazia uma cara de assentimento, de surpresa com a verdade que o especialista enunciava na televisão. Quando ele completou:

- A causa dos desentendimentos familiares é, no final das contas, nós desprezarmos aquilo que não prezamos.

A entrevistadora assentiu, e repetiu a frase do especialista:

- É verdade, desprezamos aquilo que nós não prezamos.

Dona Nilma, em casa, sentada na cadeira da cozinha, também repetiu aquelas sábias palavras: nós desprezamos aquilo que não prezamos.

- Nós desprezamos aquilo que não prezamos — repetiu ela mais uma vez, como que tentando fixar aquele ensinamento em sua memória.

Acontece que dona Nilma, aposentada havia muitos anos, mãe de quatro filhos, esposa de um mecânico automotivo, não sabia o que era uma platitude. Se alguém, algum dia, lhe falasse essa palavra, platitude, imaginaria ela se tratar de algo relativo aos pratos, por causa do termo plati que soava como prato, para ela. Quanto a terminação tude era lhe um mistério. Também era para ela muito confusa a palavra prezar. Desprezo ela conhecia, e muito bem. Não poucas vezes na vida fora desprezada por namorados, pelo marido, pelos filhos, pelas vizinhas, por colegas de trabalho e por outros a quem ela simplesmente julgava esnobes. Tinha uma ampla experiência em ser desprezada, ou porque era pobre, ou porque não tinha estudo, ou porque era mulher, ou porque morava na periferia, ou ainda porque as pessoas eram ruins mesmo. Não sabia o motivo, ou eram eles vários, mas conhecia bem o sentimento do desprezo. Sabia quando seus filhos ignoravam as suas recomendações que, para ela, só lhes podia fazer bem. Sabia o que era desprezo quando o marido criticava o seu trabalho doméstico. Em resumo, o desprezo era seu colega de longa data.

Mas a palavra prezar tinha para ela um significado difuso. Era algo como valorizar algo, como dizer que era importante. Mas dona Nilma não conseguia se lembrar de nada, de nenhuma situação em que ela podia dizer ter prezado por algo. Tinha, sim, muitas coisas das quais gostava, mas prezar era algo que lhe era confuso. A ideia de almejar um valor lhe escapava. Ter grande consideração por algo era lhe também confuso, pois nestes casos ela gostava mais do termo gratidão, que tanto se usava na televisão. A vida de dona Nilma era um suceder de casos, um aceitar contrariedades e infortúnios e não uma luta para defender aquilo que ela prezava, para promover aquilo que ela julgasse ser bom e verdadeiro. Estimar, respeitar, admirar a dignidade ou ter orgulho de algo não eram experiências de que dona Nilma se lembrasse com clareza, pois afinal de contas, como dizia a sua mãe: ninguém era melhor do que ninguém, e nem ninguém sabe mais do que ninguém e cada um tem o seu jeito de ser. Ela tinha o dela, os outros tinham os deles, de forma que nunca era preciso prezar por algo, assim, tão veementemente.

E por isso ela repetia para si, sentada na cadeira da cozinha, tomando o café da tarde: nós desprezamos aquilo que não prezamos.

À noite, quando o marido chegou para o jantar e as panelas ferviam no fogão, ela repetia para si mesmo aquele pensamento difuso e aparentemente luminoso. Ele serviu-se, sentou-se no seu lugar de costume e começou a jantar, tomando pequenos goles do seu copo de cachaça, enquanto assistia televisão. Dona Nilma, depois de comer, quase quieta em seu canto, resolveu falar:

- Hoje eu estava vendo na televisão eles falando sobre problemas familiares, porque problemas familiares todo mundo tem. Tem uns que dizem que não tem, mas todo mundo tem.

O marido fazia ouvidos moucos, bebia e assistia ao noticiário.

- E eles falaram que o problema das famílias, hoje em dia, é que a gente… como é que ele disse… é que a gente despreza aquilo que não preza. — completou ela, em um tom sentencioso, como se proferisse a mais alta verdade.

O marido, mastigando uma garfada de macarronada, ficou olhando para a esposa, desconfiado do que ela queria dizer. Desprezar o quê? Prezar o quê? Pensava ele. Com medo de uma longa conversa e uma severa discussão, ele limitou-se a um:

- Poxá, lá…

- E é bem por isso — continuou dona Nilma, em tom esclarecedor — se os filhos não desprezassem os pais, não teríamos todas estas confusões que temos.

O marido fez um sinal de aquiescência, enfiou outra garfada de macarrão na boca, e continuou assistindo ao telejornal. Dona Nilma, continuou em seu lugar, em frente ao prato vazio, cheio de ossos de galinha, pensando consigo mesma naquela verdade que lhe parecia profunda: desprezamos aquilo que não prezamos.

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