Como a Filosofia me ajudou a prender um cara

Dinho Araújo
E-volua
Published in
6 min readOct 10, 2019

Sabe quando você está trabalhando no desconforto da sua mesa, focado em terminar o serviço quando, de repente, precisa minimizar o Word para prender um cara rapidão?

Pois é… eu também não sabia, até que um dia aconteceu.

Para te contextualizar, é importante que você saiba que eu sou escrevente, aliás, do maior tribunal do mundo: o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Escrevente é aquele funcionário público que fica certificando processos, expedindo documentos e f̶a̶z̶e̶n̶d̶o̶ auxiliando o trabalho dos juízes. Uma atividade altamente burocrática que, se tudo der certo, será exercida quase que exclusivamente por robôs daqui a algum tempo. Um escrevente, por excelência, passa metade do tempo movimentando processos e a outra metade reclamando dos advogados (autocrítica não é o forte da nossa classe).

Por trabalhar na área cível, isto é, mexer com processos que envolvem briga de vizinhos, cobrança de aluguéis e separação de casais, a prisão não é algo comum na rotina do trabalho, salvo quando o processo trata do único assunto que a justiça brasileira trata mais ou menos por igual brancos, negros, ricos, pobres, famosos e anônimos: pensão alimentícia.

Normalmente, quem prende o devedor são os policiais, que cumprem o mandado de prisão diretamente na casa do Vacilo-em-Forma-de-Pai, mas também acontece do Pai-em-Forma-de-Vacilo precisar expedir algum documento, como o RG, e o sistema alertar que ele é o Vacilopai que deveria estar preso. No meu caso foi um pouco diferente: o Não-Amo-Meu-Filho estava no fórum movendo um “processo de pequenas causas” e foi até o cartório onde eu trabalho para saber por que o nome dele estava sujo.

Quando abri o processo, notei um mandado. Torci para que não fosse de prisão, mas a vida não está nem aí pra gente e era sim um mandado de prisão. O Não-Pagão-de-Pensão estava na minha frente e eu sabia que tinha que prendê-lo.

CHOQUE

Coração: disparado. Mãos: trêmulas. Respiração: ofegante. Visão: embaçada. Voz: sei lá. Habilidade de andar: o que é isso?

Eu quase não podia contar com meu corpo para completar a missão. Mas o dever moral falava mais alto. Em nenhum momento passou pela minha cabeça liberar o cara. Eu não sabia como, mas iria prendê-lo. Não houve dúvida ou dilema, somente a determinação para cumprir a lei. Talvez por isso meu corpo tenha oferecido tanta resistência: ele sabia que não teria como escapar ao chamado.

Depois de usar a boa e velha tática de respirar fundo para oxigenar o cérebro e assim diminuir a chance de tomar uma decisão ruim, levantei e falei discretamente pra minha chefe, procurando uma orientação:

“Estou super confiante”

_ O cara no balcão está com mandado de prisão aberto.

Ela virou e passou, claramente, a instrução:

_ Você tem que prender ele.

Munido de toda a informação necessária e agora preparadíssimo para concluir a tarefa, voltei confuso para minha mesa e imprimi o mandado. Um colega se apressou à avisar os guardas que se posicionaram estrategicamente na entrada do cartório enquanto me aguardavam emitir a voz de prisão.

A HORA DA AÇÂO: ALTO LÁ!

Não tinha mais volta. Estava tudo arquitetado. Somente dez passos me separavam do Piriri-Pororó-Vai-Dormir-No-Xilindró. Enquanto eu fazia uma das caminhadas mais longas da minha vida, pensamentos do tipo “Como será que ele vai reagir?” , “E se ele me marcar pra me bater depois que for solto?”, “E se o Renato Augusto não tivesse perdido aquele gol cara a cara com o Courtois no jogo que eliminou nossa seleção da última Copa?”, “Ele sabe onde eu trabalho!”

Finalmente, face-a-face com o sujeito, respirei fundo e com uma voz de garotinho na puberdade, anunciei, com descrição e respeito:

- O senhor está preso por não pagar pensão. O valor do débito é X e diz respeito à ação movida pelo seu filho. Aqui está a senha do processo e a cópia do que foi alegado contra você.

A reação dele foi muito diferente do que eu imaginei. Ele só perguntou se estava sendo, de fato, preso — como quem não entende direito o que está acontecendo — e em seguida os guardas o levaram para delegacia.

No dia seguinte ele pagou a pensão e foi solto.

DILEMAS MORAIS

Dilema moral é toda situação que você deve escolher entre o certo e o errado, sem meio termo. Não vamos entrar (não nesse texto) se o que é certo para mim é o errado para você. Filosoficamente, acredito numa moral universal que todos devem obedecer para conviver em harmonia. Se você quiser se aprofundar no tema, recomendo que assista a este vídeo.

A moral da moral é que uma vez que você sabe o que é moral, não adianta só saber, você deve praticá-la… e praticá-la na moral! Não como uma obrigação ou porque isso te trará benefícios, mas pelo simples fato de que a atitude correta é boa por si só e entender isso é a nossa maior batalha como espécie.

E se eu não tivesse prendido o [sua vez de apelidar o pai que não paga pensão] como um colega de trabalho confessou que faria se estivesse no meu lugar?

É bem provável que a criança continuasse sem receber o que era dela por direito. Quem garante que ela não estava passando necessidade? Talvez estivesse com fome ou precisando de um remédio caro. Fato é que nunca vamos saber, mas uma coisa podemos afirmar: aquele dinheiro era dela por uma questão de JUSTIÇA e se eu deixasse de praticar o meu dever, por medo ou qualquer outra fragilidade pessoal, eu teria retirado, por egoísmo puro, a oportunidade daquela criança de ter um futuro melhor.

Todos os dias vamos nos deparar com dilemas morais. Nem sempre teremos que decidir entre prender ou não alguém (a menos que você seja policial ou juiz). A maioria das vezes será algo banal como atravessar na faixa de pedestres, não xingar os outros no trânsito, responder aquele parente distante que nos chamou nas redes sociais, cumprir os compromissos de trabalho ou comparecer naquele evento com os amigos que quando marcamos estávamos empolgadíssimos, mas na hora de ir bateu aquela preguiça.

Vícios e virtudes (e filosofia)

As ferramentas para vencer esses impulsos egoísticos são as virtudes. Quando bater a preguiça coloque o compromisso; quando vir o ódio, ponha amor; ao menor sinal de covardia, seja corajoso. Neste parágrafo, há uma grande lição a se aprender: a natureza é como o tic-taca do Barcelona, ela não gosta de espaços vazios. Onde não há virtude, necessariamente há um vício, assim como na ausência de luz quem reina é a escuridão.

Preenchendo nossa alma com um pouquinho de luz todos os dias, nos tornamos melhores, pois assumimos a responsabilidade de cumprir o nosso dever. Mesmo que isso signifique prender um Pai-de-Selfie no meio do expediente.

E isso eu aprendi com meu professor de Filosofia.

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Dinho Araújo
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Filósofo por natureza e ativista do pensamento crítico. Me siga no insta @dinhooaraujo