À Mesa com: Joana Barrios

Actriz e apresentadora de televisão em entrevista a Bruno Martins, do podcast Assim Assado.

EatTasty Portugal
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12 min readAug 31, 2020

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Joana Barrios é atriz e apresentadora de televisão. E, mesmo que os seus talentos de cozinha só se tenham tornado reconhecidos no último ano graças à sua participação no “Programa da Cristina”, na SIC, a verdade é que muita da sua formação humana vem do trabalho no restaurante que os seus pais tiveram em Montemor-o-Novo, o Monte Alentejano.

É uma relação umbilical com a comida e com o ato de cozinhar. Nesta conversa que Joana Barrios teve com Bruno Martins — autor do podcast Assim Assado — ela assume que foi a cozinha que lhe deu o à-vontade das relações humanas.

Esta foi uma entrevista que aconteceu online, em direto no Instagram, durante o festival online Oeiras Ignição Gerador, no dia 18 de junho de 2020.

Joana, podia começar por pedir-te a opinião sobre as mudanças de hábitos nas nossas vidas nos últimos meses, por causa da pandemia, mas só o facto de estarmos a ter esta conversa num festival que acontece exclusivamente online já é um pouco paradigmático.

O que acho que é uma alteração muito radical, em termos de formatos, é que passámos de ideias de “não se podem fazer entrevistas por Skype, porque temos que ter as pessoas à nossa frente” a “tudo é feito no Skype!”. Chegámos à conclusão que afinal os computadores e a possibilidade de se falar e de se debaterem assuntos online, são possíveis e as pessoas também vêem. Ou seja, a Internet enquanto bicho de mil-e-uma cabeças deixou de existir. Já é tão ou mais popular do que a televisão, do que o cinema ou de que outra forma de consumir cultura e iniciar debate.

No teu caso, que também trabalhas em televisão, da mesma forma que eu passei a ter um estúdio de rádio em casa, também tu passaste a ter um estúdio na tua cozinha.

A minha cozinha tornou-se muito famosa, sim! Não é a mais bonita do universo, mas para mim é linda! Este lado de abrir a porta da casa também é fixe, mas poder continuar a trabalhar e a desenvolver a minha atividade performativa — neste caso com a comida — porque existe um telemóvel ou um computador é uma coisa extraordinária. Só posso agradecer por poder continuar a falar da importância de cozinhar, de comer e de utilizar esses momentos para trazer a família para a mesa e até iniciar aqui esta conversa.

Estamos a gravar esta conversa na chamada hora de almoço: 13h30. Já almoçaste?

Não, estou a comer ameixas! Vou almoçar a seguir, porque o meu marido também teve de sair. Tenho ali uns bifes de atum incríveis para grelhar, mas vou esperar que ele chegue… entretanto engano a fome com estas ameixas de Santo António que são incríveis. Se pudesse mandava-te agora para tu provares.

Olha, por falar em enviar coisas, uma das coisas que se começou a fazer mais na altura de pandemia e de quarentena: mandar comida feita para casa. Os serviços de home delivery e de take away ganharam um papel e uma dimensão gigantes, de tal forma que os restaurantes não estavam à espera.

Tu és a favor do take away?

Sou. Mas já era. Sou a favor de tudo o que envolve comer. Neste caso, esses serviços ajudaram-me muito no encontrar de um conforto em estar em casa. E tu, és favor?

Sou. Acho que há certas comidas que são maravilhosas para take away, porque não perdem propriedades, e há outras que, quando chegam, já vêm meio “esfrangalhadas”. E isso é terrível, porque há certas coisas que sabes que quando foram feitas estavam lindas, tinham uma apresentação maravilhosa, mas depois foi encerradas numa caixa e ficaram tristíssimas. Uma vez — antes da pandemia — o meu marido pediu uma pizza, que, além de ter chegado “esfrangalhada”, chegou toda encostada a um lado da caixa. Ele queria reclamar e a única forma que havia de reclamar era tirar uma foto… nessa altura, comecei a pensar na quantidade de intermediários que é preciso passar para reclamar de uma pizza que deveria ter sido comida na pizzaria, que veio de lado, que se se encostou a um canto e teve que se raspar…

Há uma página fantástica de Instagram, a propósito disso, chamada “Comidas Feia”. Imagino que pizza teria ficado muito bem nesse perfil.

Mas olha que a comida feia é outro resultado das redes sociais: de repente toda a comida que fizeres tem que ser bonita. E isso é tudo mentira.

Sobretudo se for eu a cozinhar!

Tu cozinhas mal?

Não vou dizer que cozinho bem, mas tenho vindo a ganhar um gosto enorme em estar na cozinha, a mexer nos tachos e nos vários utensílios que eu acredito que me vão ser bastante úteis. Mas vai-se a ver e, no final, o resultado e é só normal.

OK! Mas eu acho que há comida que é feia e que é deliciosa — e que é impossível de fotografar. O meu marido é fotógrafo e quando fiz o [livro] “Nhom Nhom” — e que tornou visível que eu, afinal, sou uma pessoa que se dá muito bem com os tachos e com os legumes, as frutas, carninhas e peixinhos — havia montes de coisas que o [marido] Carlos me dizia: “Isto é horrível. Parece vomitado. Não há uma forma de fotografar isto para ficar bonito!”.

É óbvio que vou pedir-te um exemplo disso.

Há uma salada que costumo fazer que é só a batatinha nova cozida com pele. Depois cortas um talos de aipo, muito fininhos, e podes misturar com atum de lata ou fresco (que se grelha) e mistura-se com azeite, vinagre e tudo o que te apeteça. Mas tenta fotografar: vai ficar horrível! Não há nada que se possa fazer que torne essa saladinha bonita. Por outro lado, tudo o que vai ao forno fica lindo…

Por causa dos dourados com que fica, claro.

Sim, e a poesia dos queimados à volta; ou a memória de um papel vegetal num bolo… tudo isso é uma poesia incrível. Já tudo o que é feito em frigideira… é tenebroso. Não à volta a dar. Mas olha que nisso a Internet tem um papel espetacular: por exemplo, o meu filho mais novo fez anos durante a pandemia e os membros da minha família — à vez, e devidamente desinfetados — vieram cá a casa parabenizar o Álvaro. A minha cunhada chegou e eu tinha feito um pan fried de qualquer coisa, daqueles que se fazem na frigideira e depois vão ao forno para tostar. Ela disse: “tenho visto bué coisas nestas frigideiras que vão ao forno! Nunca tinha visto nada assim!” De repente isto é algo novo, uma coisa de Instagram: que são as frigideiras muito bonitas de ferro.

Adivinha quem é que comprou uma panela de ferro durante a quarentena?

Tu!

Eu mesmo! Para fazer pão. Pensei: “Ir ao forno não chegava!”

E porque vista a receita mais vista do New York Times, foi isso?

Não, eu já fazia pão há alguns meses, quando comecei a fazer massa-mãe. O interesse foi crescendo, ao ponto de comprar uma panela de ferro para poder cozer melhor o pão.

Então vou passar-te um Instagram que vai matar a tua ideia de que estás a fazer pão: é uma rapariga que faz pão em quadros. Chama-se Blondie And Rye.

Tu há pouco falavas de uma relação performativa que tens com a comida. O que é que isso significa?

Os meus pais tiveram um restaurante durante 20 anos — e por isso é que fui parar a cozinhas e por isso é que me sinto tão à vontade nas cozinhas e não me importo de desenformar um bolo que se desfaz no “Programa da Cristina” em frente a dois milhões de pessoas… esse à vontade vem daí, porque sei o que é que correu mal e o que é que não funciona: porque às vezes a exigência da performance sobrepõe-se àquilo que tem que ser a eficácia do prato confeccionado. Há duas coisas que me fizeram sempre odiar a amar a cozinha: uma delas, essencial e inevitável, foi os meus pais terem tido um restaurante e eu ter passado lá muito tempo enfiada (risos).

Mas contra a tua vontade?

Não. Eu cresci numa quinta no meio do mato. O restaurante dos meus pais era em Montemor-o-Novo e eles abriram na mesma altura em que o [coreógrafo] Rui Horta se mudou para lá e estabeleceu o Espaço do Tempo, em 1998 ou 1999 e eu tinha 12 ou 13 anos. Entre passar o dia enfiada no campo e ir até à cidade, ver e estar em contacto com todos aqueles movimentos, é óbvio que escolhi a segunda opção. E a partir do momento em que foi possível ter um emprego de verão, passei a assumir sempre vários setores do restaurante dos meus pais: estar na cozinha, servir à mesa, passar a ferro para a residencial… foi um curso de hotelaria na prática. A dada altura os meus pais tiveram uma cafetaria também na esquina da frente do Monte Alentejano, o que fez de mim, durante breves instantes, uma pequena Paris Hilton de Montemor (risos). E na cafetaria era responsável por fazer as compras e tratar do que era a pastelaria.

Claro que todas essas experiências deram-te um à-vontade muito grande em vários departamentos.

Sim, mas sobretudo com as pessoas — porque não sou uma pessoa socially-awkward e isso foi uma coisa muito mediada pela partilha das refeições. À mesa dos meus pais sempre se sentou toda a gente. E através dos restaurantes conheci grande parte dos artistas com quem hoje trabalho — o Teatro Praga, por exemplo… Mas agora também um lado que é muito feio — e menos sexy — da cozinha: quando as empresas de comercialização de produtos já preparados começam a entrar nos mercados regionais e a tentar implementar produtos. Os meus pais, há 20 anos, encomendavam a produtores locais, com impacto praticamente zero; toda a carne que era comprada para o restaurante, só era comprada na medida que era morto na altura: não se matava uma vaca só para tirar bifes. Todos estes conceitos que hoje são apresentados como extremamente novos e recentes já nasceram comigo, quase os carrego no meu código genético. De repente, quando começo a perceber que há montes de empresas que apresentam produtos de qualidade inferior — tudo o que é congelado é menos interessante, claro — e começam a não respeitar a sazonalidades, comecei a ficar um bocado desencantada com a comida. Quando, de repente, alguém prefere um pastel de nata congelado a uma Queijada que eu tinha acabado de fazer — na altura com 17 anos — percebi que esse processo de degradação alimentar é uma das coisas que me desencanta no universo da cozinha e da comida.

Mas ainda tens esse desencanto, Joana?

Hoje em dia está óptimo. Tenho amigos que gozam comigo porque eu chego a uma montra e consigo dizer tudo o que está lá; o que está ou não fora da época. E posso optar por não comer nada! E vivo super bem com isso: faço escolhas e prefiro determinadas coisas em detrimento de outras.

Mas quando cozinhas em casa — ou nas receitas que partilhas na TV — tens a preocupação daquilo que estás a falar? Da sazonalidade, por exemplo?

Sim, é muito raro utilizar produtos que já vêm pré-feitos. As coisas mais comuns são as leguminosas, mas se eu quiser fazer uma feijoada no sábado, sei que tenho que pôr os feijões de molho na quarta-feira para ficarem macios. E ponho os feijões de molho — não me custa nada.

É um processo mental que é já natural em ti.

Mas é porque eu passei muito tempo dentro da cozinha de um restaurante. E isto é organização de uma pessoa que foi, de alguma forma, formatada nesse sentido. Eu consigo perceber que o comum dos mortais não pense no menu da semana! Ou como é que o jantar de hoje, que pode ser lombinho assado; amanhã pode vir a ser uma empada e, com sorte, depois de amanhã, com os bocadinhos que sobram da massa, ainda consegues fazer uma omolete.

Sabes que durante o período de quarentena tentei fazer esse processo mental: tudo bem apontado… mas quem, simplesmente, não tem esse processo mental, torna tudo muito mais complicado.

Eu acabei por me reconectar imenso com a cozinha quando nasceu a minha filha mais velha. Sempre cozinhei — e isto que te estou a dizer, sempre pratiquei para mim na minha vida pessoal e individual. Tinha amigos que me tocavam à porta a perguntar se tinha sopa. E tinha. Com o nascimento da minha filha mais velha, e por complicações no parto (tive mastites e não consegui amamentá-la), comecei a preparar todas as refeições dela. A minha avó disse-me: “No meu tempo é que nos martirizávamos quando não podíamos dar de mamar. Agora é diferente: dás-lhe leite da fórmula e depois vais ser feliz!” E foi incrível, porque esta afirmação da minha avó foi algo que para mim foi uma validação sagrada. Quando a Mercedes, que é a minha filha mais velha, começou a comer sólidos foi incrível. E foi engraçado: a pediatra explicava-me que para substituir o sal devia usar ervas aromáticas, como coentros ou salsa… mas eu já sabia aquilo tudo porque cozinhava tudo do zero. No entanto, percebi que isso, para a maior parte das minhas amigas, isso não era uma coisa simples, porque a malta da nossa geração não está habituada a cozinhar.

Achas que, para a “malta da nossa geração”, o confinamento alterou-lhes de alguma forma a relação com a cozinha? Ou os serviços de take away e home delivery fizeram manter essa forma de pensar?

Tu és de Lisboa, Bruno?

Sou, sim.

As pessoas de Lisboa têm as vistas curtas, porque acham que os acessos que existem aqui, existem no país inteiro. O que não é verdade. No Alentejo não há home delivery como há aqui.

Sim, mas houve sítios que tentaram.

Sim, houve alguns que tentaram…

Mas percebo que não seja uma prática nem um hábito comum.

E a frequência que se come fora também é completamente diferente da de Lisboa — por assimetrias económicas, e etc. Mas uma das coisas que noto — desde que sou uma presença assídua no “Programa da Cristina” — é que há muitas pessoas que acabam por se sentir convidadas a cozinhar. E isso não tem que ser difícil. E a comida não tem que ser toda ela utilitária: ou para ganhar peso, ou para perder peso, ou gordurosa. Acho que as pessoas também estão a chegar-se muito mais às suas próprias cozinhas: com mais frequência, porque, felizmente, a Internet e o Instagram — e o Facebook, na sua altura — têm esse poder de ajudar as pessoas a fazer comida simples.

A gastronomia e a arte são duas coisas compatíveis?

Super! Nós somos muito responsáveis e esta coisa turbo-capitalista de estar na vida a dizer a tudo que “não tenho tempo!” é estúpida. A pandemia também veio explicar às pessoas que podes ter muita pressa, mas vais ter que esperar. Há coisas que têm o seu tempo. Este lado super utilitário da comida, de comer à pressa só para matar a fome, já se perdeu: comer é, além de importante, é uma forma de partilhar a tua experiência, o teu conhecimento, o teu amor, a tua amizade… tudo e mais alguma coisa. Uma das coisas que fiz na pandemia foi bolachas que, depois, ia deixar a amigos ou, então, mandava pelo correio. E já tinha feito isso montes de vezes. Alguém cozinhar uma refeição para mim é uma coisa que prezo brutalmente. E se for num restaurante, há certos pratos que me comovem, pela forma como são servidos e explicados. Devemos sempre perder todo o tempo do mundo a ouvir o que é que a pessoa que está ali a explicar tem para nos dizer, porque, senão, vai haver subtilezas de um prato que não se consegue detetar. E depois eu também acho que comer é como vestir: é uma relação de construção de pensamento. Eu fui educada assim: com o meu pai a ensinar-me a questionar tudo e mais alguma coisa. E isso é muito importante: tanto na comida, como na forma como te vestes, quer na forma como se consome e produz arte.

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