O Covil dos Inocentes

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77 min readFeb 2, 2016

Morar no escritório nunca é uma opção. Ninguém gosta de misturar vida profissional com vida pessoal, não que eu tenha tido vida pessoal, ultimamente.

Como Silvana descobriu que eu estava em meu gabinete, àquela hora da noite, é difícil determinar. Talvez ela estivesse passando na rua lá embaixo e tenha visto a luz acesa; mas o mais provável é que o desespero a tenha feito tomar uma decisão sem sentido, porém, que gerou resultados. Era meia-noite quando a silhueta surgiu na vidraça opaca, onde meu nome insistia em estar gravado pelos últimos seis anos.

Ela bateu na porta e não aguardou resposta. Entrou.

— Desculpe-me incomodá-lo esta hora, Vico, preciso de ajuda.

Silvana não era uma mulher de fazer cerimônias, pelo menos não na cama. Anos podem afastar duas pessoas, mas não a ponto de fazê-las parecerem completos estranhos.

— Não é incômodo. — pus a garrafa de conhaque de lado e me sentei no sofá que me servia de cama.

Ela estava maravilhosa, vestido preto e seios saltando para fora do decote, o cabelo mais louro do que nunca

— As coisas não andam fáceis para você, hein… — ela murmurou.

— Parece que os problemas do mundo desapareceram nos últimos meses. — respondi, e, para mim, era uma verdade. Há três meses não investigava caso algum, nem mesmo um mísero adulteriozinho; era como se todos os cornos houvessem se reconciliado com as esposas, e todas as crianças desaparecidas houvessem saído de seus esconderijos em poços. O aluguel atrasado redundou em despejo; o sofá no escritório era melhor que a sarjeta, mas o dinheiro do conhaque nunca faltou. — Meio tarde para contratar os serviços de um detetive. — ri com um desdém que não me convenceu, não poderia esperar que a convencesse também.

— Não vim contratá-lo. — ela respondeu, meu sorriso desapareceu.

— O que quer, então?

Silvana hesitou, olhou ao redor e, sem convicção, disse — Procurava um lugar para passar a noite.

Também olhei ao meu redor. Até poderia deixá-la dormir aqui, mas isto significaria dormir no chão, ou sentado. Estendi os braços, como se perguntasse “Aqui? Aonde?”

O escritório estava uma zona: nem se o olho dum furacão houvesse rodopiado sobre minha escrivaninha haveria tanto estrago, minhas anotações todas espalhadas, a máquina de escrever soterrada sob papel e garrafas vazias de Hennessy, o chão imundo, sem saber o que é uma vassoura há mais de ano.

— Entendo. — Silvana estava arrependida.

— Se quiser ficar, podemos dar um jeito. — eu disse, e, inevitavelmente, esta frase tinha conotação sexual. Não era minha intenção, mas o decote de Silvana me tirava do sério.

— Posso ao menos deixar algo com você? — ela perguntou, desconfortável.

— Não costumo fazer este tipo de favor, mas, para você, abrirei uma exceção. — ela me entregou, então, um embrulho.

— Cuide disto para mim, Vico, caso alguma coisa aconteça comigo.

Ri do clichê. Nove em dez pessoas que pensam estar em perigo não passam de paranóicas. Lancei o embrulho no interior duma gaveta.

— Não se preocupe, isto estará seguro. E você, provavelmente, também.

Ela me fitou com medo.

— Ou não?

— Tenho de ir, Vico. Obrigada por seu tempo.

E Silvana desapareceu porta afora e escada abaixo. Acompanhei-a, através da persiana, enquanto ela cruzava a rua e tomava um táxi. Que mulher fascinante, desfilando em salto alto e vestido semitransparente. Fui estúpido quando lhe recusei pouso, teria sido uma noite e tanto, mesmo que eu acordasse moído após dormir no chão.

Não consegui descansar. A lembrança da inusitada visita de Silvana me atormentava. Ela era uma mulher de fibra, porém, estava sensivelmente abalada, tinha medo. Seria um medo justificado? Não teria eu errado ao ignorar seus temores? A incerteza me remoia e, quando o telefone tocou, tive certeza de que algo estava errado. Ninguém liga para outra pessoa às duas da manhã se não for algo sério. Era Silvana.

— Vico, estou com medo! Você pode vir até aqui? Por favor. — Silvana demonstrava estar mais aterrorizada do que antes. Isto bastou para que me levantasse, lavasse a cara e corresse para o hotel onde ela estava hospedada. Paranóia ou não, a moça precisava de companhia.

O hotel era um pulgueiro, nada apropriado para Silvana, a notória amante de Giuseppe Carregno, o chefão da máfia italiana da cidade. Imaginei que o medo dela devia-se a alguma briga com Carregno. Ela devia ter fugido durante a noite e, agora, temia que os capangas do carcamano botassem as mãos nela e, quando ela estivesse novamente na presença de Carregno, da surra que levaria dele. Natural, eu também teria medo se fosse mulher, ainda mais se fosse mulher de quem ela era.

Não havia ninguém na recepção, por isto, subi sem ser anunciado. Terceiro andar. A porta do quarto estava entreaberta, bastante inusitado para quem está com medo.

Espiei pela fresta e vi um corpo nu, estendido sobre a cama.

Saquei meu revólver. Ninguém haveria de estar lá, eu tinha certeza, mas não custava nada ser precavido.

Entrei com cautela; na cama, Silvana jazia inerte. Vasculhei o quarto e, realmente, não havia mais ninguém. Então, fui verificar os sinais vitais de Silvana.

Uma das mulheres mais lindas que conheci, mais sexy, mas completamente desprovida de senso do perigo, estava morta.

Capítulo 2

No corpo daquele mulherão havia vários hematomas, impossível distinguir se eram conseqüências da violência de seus amantes ou se eram resultado de práticas sado-masoquistas, das quais Silvana era uma curiosa adepta. Lembro-me que ela bem que quis me dar umas palmadas, na última vez que nos encontramos, mas porrada, para mim, só se for realmente inevitável. Não apanho por prazer.

O vestido dela estava jogado sobre o espaldar duma cadeira e, no assento, suas jóias e bolsa. Na cabeceira da cama, dois frascos vazios de remédio, um para dormir, o outro antidepressivo, alguns comprimidos espalhados por ali. Na embalagem, o nome do psiquiatra que lhe prescreveu os remédios, Dr. Luiz Frischenbauer. Obviamente, quem a assassinou pretendia dar a impressão de suicídio. Mas para quem estava apavorada com a morte, Silvana não tinha o perfil duma suicida. Não havia indícios de violência, nem ferimentos — excetuando os antigos hematomas — que pudessem evidenciar morte por trauma; na verdade, Silvana parecia estar dormindo, nua, linda e loura.

Revirei a pequena bolsa da moça, mas não encontrei nada de interesse: objetos pessoais, maquilagem, preservativos. O que possuía valor deveria estar naquele embrulho que ela deixou comigo, mas isto seria algo que eu só poderia verificar quando retornasse ao escritório.

Com meu lenço, limpei minhas impressões digitais de todos os objetos que eu havia tocado — a maçaneta, a bolsa, os frascos de remédio. Não resisti e, antes de deixar o cadáver para ser descoberto pela polícia, dei um beijo na testa da Silvana.

— Vou descobrir quem fez isto com você, menina. — sussurrei. Poucas horas atrás, ela havia confiado em mim e me procurado. Eu a decepcionei, abandonei-a para morrer; descobrir o culpado era o mínimo que eu poderia fazer em memória da Silvana.

Sai e fechei a porta. Quando deixei o elevador, fui flagrado pelo olhar do recepcionista. Baixei a aba do chapéu e me esgueirei para fora do hotel. Amanhã, eu procuraria pelo nome de Silvana no jornal, na seção de homicídios.

Ao chegar no escritório, fui direto à gaveta onde havia guardado o embrulho. Rasguei o invólucro e retirei a pequena caderneta nele contida. A rápida folheada não me esclareceu muita coisa. Números, apenas números. O cansaço me impedia de raciocinar e encontrar alguma lógica naqueles algarismos. Não podia supor que fosse alguma mensagem criptografada, Silvana não era tão inteligente assim. Talvez fossem balancetes, algo envolvendo dinheiro, ou quantidades, ou outros dados quantitativos. Guardei novamente a caderneta na gaveta, acendi um cigarro e tomei um gole de conhaque. Meus olhos estavam pesados, e uma dor na alma finalmente anunciava que Silvana estava morta. É curioso como levamos algum tempo para associarmos uma perda com a realidade. Não a via há anos, não éramos muito chegados, porém, a sensação que me tomou era a de haver perdido um ente muito querido. Silvana não fazia, nem nunca fez, parte da minha vida, mas era como quando minha mãe morreu. Atribui esta fraqueza minha a pobre condição pela qual passava. Eu estava fragilizado, no fundo do poço, sem amor, — não direi sem futuro, pois nunca tive um — assim, a visita de uma bela mulher abala tudo, e vê-la morta, horas depois, é um choque ainda maior.

Abracei-me à garrafa e me deitei no sofá. Dormi, embriagando-me. Amanhã, eu partiria em busca por respostas; hoje, só quero dormir.

Capítulo 3

Fui despertado por batidas na porta. Através do vidro, duas cabeças enchapeladas aguardavam uma resposta.
— Só um minuto! — gritei, levantando-me num pulo, escondendo as garrafas vazias nas gavetas, jogando as cuecas sujas embaixo do sofá, limpando as remelas e colocando também meu chapéu, para esconder os cabelos despenteados.
Destranquei a porta e recebi os dois policiais em meu escritório.
— Sentem-se — apontei-lhes o sofá, no qual havia gravado o sulco do meu corpo.
— É uma visita rápida, Vico — um dos policiais resmungou, acendendo um cigarro. Estendeu a cigarreira para mim e aceitei um. Eles se apresentaram: detetive Soares, baixinho, óculos e terno bem asseado, o bom policial, e detetive Camacho, mal-encarado, truculento, barba por fazer, quem me cedeu um cigarro, o policial mau.
— Acredito… — respondi. Olhei para meu relógio — O que os traz aqui tão cedo?
Detetive Soares me passou um envelope. Dentro dele, três fotos. Fotos do cadáver de Silvana. A primeira, dela deitada de bruços, como, provavelmente, a polícia deve tê-la encontrado na cama do hotel, a segunda, frontal, corpo inteiro, da moça pálida e nua, a terceira, somente do rosto.
Os policiais me observavam, cuidando alguma reação que me denunciasse. Mas sou bom em dissimular emoções. Fingi indiferença.
— Você a conhecia? — Camacho me perguntou.
— Sim. Silvana.
— Nós a encontramos morta, hoje de manhã, superdose de remédios psiquiátricos.
— Suicídio? — perguntei.
— Quem sabe? Suicídio ou simplesmente excesso… — Soares respondeu.
— Isto é terrível — resmunguei, e não era mentira, a mentira era eu encenando estar surpreso.
— Qual foi a última vez que você a viu? — Soares me olhou por sobre os óculos.
— Acho que uns quatro ou cinco anos atrás…

A minha resposta inquietou Camacho, que cruzou os braços e soltou uma baforada de fumaça para cima.

— E quando foi a última vez que você conversou com ela? — Soares prosseguiu.

— Ontem à noite. Ela disse que precisava de minha ajuda.

— Então, você não a viu antes dela morrer? — Camacho pôs as duas mãos sobre o tampo da mesa e me fulminou com o olhar.

— Já disse que não.

Camacho retirou do bolso do casaco um bloco de notas, folheou-o e leu uma das entradas.

— “Por volta das duas e quarenta, o recepcionista do hotel viu um senhor descendo as escadas e correndo porta afora…”, há uma longa descrição deste senhor aqui. O recepcionista é um rapaz observador, e minha intuição me diz que quem estava saindo daquele hotel era você.

— Sua intuição? — ri. — Eu achei que a polícia investigasse os casos, não intuíssem quais são as pistas e as soluções. E se sua intuição estiver errada? Existem centenas de milhares de pessoas que poderiam se enquadrar na minha descrição.

— Na verdade, não precisamos da intuição do detetive Camacho para sabermos que era você, ontem à noite. — Soares me interrompeu.

— Ah não? — eles estavam começando a me irritar. Estava claro que eles possuíam uma evidência, senão nunca teriam perdido o tempo vindo até meu escritório.

— Às duas horas e sete minutos, a senhorita Silvana solicitou à recepção do hotel que realizasse um telefonema. Adivinhe para quem?

— Por acaso vocês são estúpidos? — perguntei. Camacho e Soares arregalaram os olhos. — Eu já lhes disse que ela me ligou, precisava de minha ajuda.

— E você foi até lá? — Soares inquiriu. Camacho estava enfurecido, calado, tentando se controlar.

— Sim. Ela estava com medo. Fui até o hotel, mas não a encontrei.

— Ela não estava no quarto?

— Não sei dizer. Bati, mas ela não respondeu.

— Possivelmente, porque você já a havia assassinado. — Camacho concluiu.

— Achei que vocês houvessem me dito que ela havia se suicidado. Agora se tornou homicídio?

— Não falamos em suicídio, você sim. Dissemos que havia sido uma superdose.

— Quer dizer que sou um suspeito? Há uma acusação formal contra mim?

— Se for um homicídio, Vico, você é o suspeito. E, quanto a acusação, por enquanto só estamos averiguando os fatos.

Aquilo era ridículo! Aqueles dois bananas estavam realmente me tirando o bom humor.

— Desde quando você a conhecia? — Soares perguntou, sem olhar para mim, enquanto perambulava pelo escritório.

— Eu a vi pela primeira vez acho que uns cinco anos atrás. Ela era stripper numa boate na cidade baixa, Absinto.

— Foi quando vocês se tornaram amigos?

— Amigos? Não! Eu dei uma gorjeta boa para a moça, ela me fez um belo boquete no banheiro, saímos algumas vezes, conversamos, mas ela se afundou na cocaína e paramos de nos ver. Estava andando com companhias barras-pesadas.

— E você não a viu mais, desde então?

Eles estavam me fazendo perder tempo com esta ladainha:

— Não. É só isto ou posso ajudá-los em mais alguma coisa? — levantei-me e fui encaminhando-os para a porta.

— Nós o procuraremos novamente. E, se você possuir alguma outra informação, pode nos contatar. — Soares me entregou um cartão, mas eu me recusei a pegá-lo.

— Sei onde encontrá-los. Mas tudo que eu tinha para dizer, já disse. Tenham um bom dia.

Bati a porta após eles terem partido.

Aqueles imbecis estavam tateando nos escuro. Eles não tinham a menor idéia de por onde começar, por isto, vieram para o lado mais fraco. Seria fácil incriminar um pobre coitado como eu, apenas para satisfazer Carragno. Eles me fariam de bode expiatório?

Se eles queriam roer este osso duro aqui, precisariam de dentes muito fortes!

Capítulo 4

Dei uma passada no necrotério e descobri o horário em que Silvana seria sepultada. Sexta-feira, nove da manhã.

Cheguei cedo ao cemitério, estacionei meu carro num ângulo em que eu pudesse ter clara visão dos que se postariam ao lado da cova aberta para Silvana. Acendi um cigarro.
Uma multidão, todos de preto, deixava o cemitério. Conferi no jornal o nome do morto, Eliazar Baptista, padeiro. Devia ser bom padeiro, pão seco e duro não atrairia tanta gente assim para a despedida.
O cemitério se esvaziou.
Um carro preto estava estacionado há uns trinta metros atrás do meu. Com meu binóculo, avistei o motorista e o passageiro do automóvel. Eram os dois policiais bananas — Camacho e Soares. Eles também estava tocaiando.
Conferi o relógio, estava quase na hora da Silvana. Dois coveiros maltrapilhos traziam o esquife, atrás deles, três homens em ternos. Um deles, o que vinha no meio, era baixo, carrancudo, nariz batatudo, cabelos ralos e fumava um charuto, trazia um triste semblante e um ramalhete de flores, fácil reconhecê-lo, afinal de contas, Carregno vivia nas páginas dos jornais; o que vinha a sua esquerda era alto, nariz fino, cabelo duro e lambido de tanto gel, terno impecável e ares de pedante; o da direita era um pouco mais alto que o do meio, sobrancelha espessa que se unia no meio, lábios caídos e olhar perdido. Por fim, vinha um padre, todo paramentado.
Fotografei-os enquanto se aproximavam da cova. Com a teleobjetiva, consegui bons retratos dos rostos deles.
O sacerdote deve ter proferido algum sermão, pois Carregno concordava com a cabeça. Não seria irônico que, agora, um padre que nunca havia visto a Silvana apregoasse as virtudes da moça?
Gostaria de estar lá e ouvir…
Os coveiros se aproximaram do caixão e o desceram, com cordas, no túmulo.
Carregno jogou as flores no buraco e os três, acompanhados do padre, partiram. Por fim, foram embora também os coveiros.

Esperei por horas. Não tinha bem certeza do que esperava, mas, mesmo assim, esperava. O carro dos policiais entrou em movimento, vindo em minha direção. Abaixei-me no banco para que não me vissem. Passaram por mim. Os bananas não tiveram paciência.
Quando estava quase desistindo também, vi um outro homem se aproximar do túmulo. Preparei a câmera. Era um rapaz, pouco mais de vinte anos, traços duros, expressões sérias, chegou hesitante, parou diante da lápide e permaneceu estático, em silêncio. Tirei fotos dele. Com a mesma sutileza com a qual veio, ele também foi embora.
Aguardei mais alguns instantes. Certificando-me de que minha vigília havia terminado, deixei meu automóvel e também me postei diante da lápide, onde estava inscrito o nome, o ano de nascimento e morte de Silvana.
Fui tomado por uma tristeza súbita e pelo peso da promessa que fiz a seu cadáver.
Ajoelhei-me sobre a terra recém-revolvida e repeti a promessa:
— Vou descobrir quem fez isto, Silvana.
Foi quando avistei alguém, semi-oculto atrás de uma árvore. Estava me fotografando.

Capítulo 5

Joguei o envelope no interior da caixa de correio, agora, seria apenas esperar o telefonema de Martins.

Estava diante dum prédio suntuoso. Os cavalheiros que entravam e saiam dele, todos com belos ternos e chapéus, sapatos bem engraxados, fizeram-me envergonhar dos meus trapos. Tudo em que consegui pensar foi tentar remover aquela mancha de café da minha gravata. Tentei esfregar com saliva, mas de nada adiantou.

Entrei e, no saguão do prédio, havia uma placa enorme, sobre os elevadores, com os andares e o nome de quem ocupava as salas. Retirei minha anotação do bolso e conferi — sala 1210 — , eu estava no lugar certo.

A secretária me atendeu com desdém:

— Posso ajudá-lo? — sorrisão amarelo.

— Procuro pelo doutor Frischenbauer.

— Tem consulta marcada?

— Não. Estou investigando a morte duma paciente dele. Detetive Vico. — entreguei um cartão a ela. Houve uma ligeira mudança no comportamento da secretária.

— Vou avisar o doutor. — a moça se levantou, meu cartão em mãos, e entrou numa porta.

Sentei-me e folheei uma revista de fofocas. O consultório era bem decorado. Este doutor devia ser psiquiatra de loucos ricos, porque louco pobre era lançado num manicômio e apodrecia lá. Foi o que aconteceu com meu irmão caçula.

— Por favor, acompanhe-me, o doutor vai recebê-lo. — a secretária me chamou.

Frischenbauer estava sentado numa poltrona, olhar vazio, movimentos lânguidos.

— A polícia já esteve aqui, detetive. — ele me disse, com voz pausada.

— Mas eu não sou da polícia.

— Por que eu deveria lhe dar alguma informação, então? — o psiquiatra me olhou por sobre os óculos.

Eu caminhei até o fundo da sala, onde os vários diplomas de Frischenbauer estavam dependurados.

— Pela simples razão de que a polícia não está interessada em desvendar este caso.

— Que idéia mais estapafúrdia. — Frischenbauer riu.

— Você sabia que Silvana era amante de Giuseppe Carregno?

— Eu não posso revelar o conteúdo do que meus pacientes me confidenciam.

Fitei-o com seriedade.

— Carregno manda em metade da polícia da cidade. Se foi ele quem ordenou a morte de Silvana — e eu tenho quase certeza de que foi ele — , a polícia jamais descobrirá um culpado. De duas, uma: ou eles alegarão suicídio, ou eles encontrarão algum otário em quem botar a culpa.

É claro que eu não abriria o jogo para o médico de que este otário era eu.

— E o que você tem a ver com este crime?

— Eu era amigo da Silvana. — Dr. Frischenbauer não pareceu acreditar em mim. — É uma promessa.

— Adoraria ajudá-lo, detetive… Mas as consultas são sigilosas.

— Você falou alguma coisa para a polícia? — insisti.

— Não. Eles receberam a mesma resposta que você. Só tenho obrigação de falar num tribunal.

— Entendo. Só me diga algo, creio que isto você pode: Silvana tinha tendências suicidas?

Frischenbauer coçou o queixo, hesitava.

— Não, pelo contrário, nunca conheci mulher que amasse mais a vida que ela.

Naquela frase, a máscara de frieza de Frischenbauer caiu. Compreendi que havia algo muito além dum relacionamento paciente-médico ali.

— E por que você receitou antidepressivos para ela?

— Silvana não estava numa boa fase. Depressão não quer dizer que o paciente deseja se suicidar. São patologias completamente diferentes.

— Obrigado, doutor. Ligue-me, caso decida falar.

Quando estava quase deixando o consultório, uma última pergunta, estúpida, mas que martelava em minha mente, me escapou:

— Você teria alguma razão para matar Silvana?

Frischenbauer riu, misto de nervosismo e desconcerto:

— É óbvio que não! Nunca!

Já estava no corredor, aguardando o elevador, quando a secretária correu para fora e me entregou um pedaço de papel:

— O dr. Frischenbauer me pediu para lhe dar isto. — e ela lançou uma piscadela para mim.

Escrito no papel, com aquela quase ilegível letra de médico, o endereço de Giuseppe Carregno.

Capítulo 6

Martins estava sentado no balcão do bar, cerveja e cigarro nas mãos.

— Quer dizer que você pode beber em serviço? — brinquei, enquanto fazia sinal para o garçom também me trazer uma loira gelada.

— É claro que não. E você? — Martins tragou, sorrindo maroto.

— Não só posso, como devo. — eu e Martins rimos.

— Recebi as fotos que você me mandou. — ele disse.

Eu estava muito curioso para saber o que Martins tinha para me dizer. Eu e ele havíamos feito a Academia da Polícia juntos, isto há muitos anos atrás. Eu desisti (ou fui reprovado, isto não faz mais diferença) e segui adiante, fazendo de quase tudo na vida, mas Martins se tornou policial, primeiro patrulhando as ruas, depois investigador da Homicídios, por fim, um dos criadores da Divisão de Crime Organizado da cidade. Atualmente, Martins era o comandante da divisão. Se havia alguém que conhecia as atividades de Carregno, fora, obviamente, os membros da organização, era ele.

— E aí? — perguntei, ansioso.

— Eu não sei o que você está procurando… Ou que tipo de problema você tem com a família Carregno… Mas se você quiser o conselho dum amigo, Vico, saia desta.

— Uhum… — murmurei, eu não estava a fim de advertências paternalistas. Martins, por pensar ter ascendido na vida por causa de sua carreira na polícia, sempre tinha destas.

Ele retirou do bolso o envelope que havia enviado a ele, e dele as fotos.

— Você tem alguma idéia de como se estrutura a cosa nostra? — ele me perguntou.

— Vagamente… — eu possuía o conhecimento básico sobre o assunto. Felizmente, meu caminho e da máfia nunca haviam se cruzado antes. Eu lia jornal, assistia, quando o tempo me permitia, aos filmes hollywoodianos, ouvia rádio, então, meu conhecimento era o mesmo do cidadão médio, Al Capone, metralhadoras Thompson, etc. — Bem, eu sei que a máfia está envolvida em todo tipo de negócio ilícito: tráfico de drogas, prostituição, extorsão, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, compra de juízes, de policiais, de políticos, roubo de cargas, assassinatos…

— Você tem razão. Mas quem você quer pegar? — Martins colocou as fotos uma do lado da outro sobre o balcão.

Apontei para o foto de Giuseppe Carregno.

— Eu tenho quase certeza que é ele. — disse, completamente constrangido, encolhido diante da superioridade com a qual Martins se punha diante de mim.

— Se você busca Carregno, adianto-lhe para que desista agora. Você nunca vai pegá-lo. Carregno é intocável. Estou há quinze anos na cola dele, mas não conseguimos incriminar o filho-da-puta.

Fiz um movimento com a cabeça, indicando para que Martins continuasse.

— Giuseppe Carregno é o que se chama de Capofamiglia. O Don Carregno, o chefão. A posição dele é o que o protege. Ele dá as ordens, mas a culpa nunca recai sobre ele. Se ele manda matar alguém, e o crime for desvendado, quem cai é um dos soldados. Ele nunca é culpado. Don Carregno é sempre inocente.

— E se eu resolver fazer do meu jeito? — retruquei.

— Qual é o seu jeito? Assassiná-lo? Então, você será um homem morto. Vale a pena? Você é quem decide…

— Mas quem são os outros? — apontei para as demais fotos.

— Este aqui é Salvatore Carregno, irmão de Giuseppe, conhecido como “Punho de aço”. — Martins falava do que tinha a sobrancelha unida — Ele ocupa a posição de Sotto Capo, é o segundo em comando depois de Giuseppe. Salvatore é quem comanda quando Giuseppe está fora da cidade e, se algo acontecer, é o segundo na sucessão para tornar-se o chefe.

— E este? — apontei para o altão engomado.

— Domenico Giambattista, o consigliere, o conselheiro de Don Carregno. Advogado ardiloso, sempre nos tribunais defendendo os asseclas da família.

Por fim, aquele que mais me intrigava, o rapazola que por último visitou o túmulo.

— Viccenzo Imbruglia, sobrinho de Giuseppe. Ele é um Capodecina, chefe dum grupo de dez soldados. A família possui vários destes grupos, cada um comandado por um Capodecina. Estes são os braços operacionais da família, quem executa as ordens, os únicos nos quais conseguimos pôr as mãos. Malditos bastardos!

Ri, acendendo um cigarro.

— Preste atenção, Vico. Se você for se envolver nisto, não se deixe ser descoberto.

Baixei os olhos.

— Já aconteceu? Como? — Martins segurou meu braço, estava preocupado.

— Tiraram fotos de mim, neste mesmo cemitério. Acho que foi um policial

— Se for um policial de Carregno, você já está bem fodido!

Talvez Martins tivesse razão, e a situação que ele me expôs não era das mais estimulantes. Porém havia algo que me encucava, as presenças de Giuseppe, Domenico e Salvatore no enterro de Silvana faziam sentido, mas o que Viccenzo fazia lá também?

Capítulo 7

Um capanga abriu a porta e entrei numa biblioteca. Salvatore estava sentando numa poltrona, fumando, de pé, atrás dele, estava Domenico; ambos me olhavam com frieza. À minha direita, no final da sala, perto duma janela, estava Don Carregno, diante dum tabuleiro de xadrez. Fiz menção de seguir em direção de Carregno, mas Salvatore me perguntou:

— O que você quer, detetive?

— Estou fazendo algo que creio ser do interesse de Giuseppe Carregno. — respondi, sem tirar os olhos do distante chefão.

— E o que você pode nos ofertar que nós não tenhamos condições de conseguir por nós mesmos? — desta vez, quem perguntou, foi Domenico.

— É isto que quero descobrir. Não sei se vocês também estão investigando a morte de Silvana. Se estiverem, poderemos trocar as informações que possuímos e avançarmos na solução deste caso.

— Não temos interessem em sua invest… — mas Salvatore foi interrompido por um pigarro de Don Carregno.

— Venha cá. — o mafioso fez um sinal para mim, apontando a cadeira em frente dele, do outro lado do tabuleiro.

— Obrigado, mas não quero me sentar. — respondi, enquanto me aproximava.

— Não me faça repetir a ordem. — Carregno observava as peças, num jogo já iniciado.

Sentei-me.

— Você joga xadrez, detetive?

Eu não diria a Carregno que, para mim, xadrez era diversão de viados.

— Não, não jogo.

— Você não sabe o que perde, detetive. Aprende-se muito com o xadrez. É um jogo traiçoeiro… — ele me fitou.

— Ah é? — eu não estava muito interessado em considerações enxadrísticas, mas também não pretendia irritar Carregno.

— Sim. O jogador que está com as brancas sempre começa em vantagem. É ele quem dita o ritmo do jogo, no começo. Às vezes, ele cria uma estratégia num dos flancos do tabuleiro, dando a entender que atacará por aquele lado, mas, quando menos se espera, ele encontra as fraquezas do oponente no outro lado e desestabiliza o jogo do adversário.

— Mas isto não é injusto? As brancas sempre têm a vantagem.

— Se nós, humanos, nunca errássemos, seria injusto. Porém, sempre cometemos algum deslize, então, o jogo se inverte, quem estava perdendo passa a ganhar, tudo se torna imprevisível.

— Assim é a vida… — respondi, entendiado.

— Silvana era uma boa moça. Fazia algumas besteiras, mas era uma boa moça. Eu adoraria botar a mão no disgraziato que a matou.

— Você também acredita que ela tenha sido assassinada? — a observação de Carregno atiçou meu instinto.

— Que mais poderia ter sido? Nada é por acaso, detetive.

Fomos interrompidos com a entrada de alguém na biblioteca. Era Viccenzo.

— Preciso falar com o senhor, tio. — Viccenzo resmungou.

— Um momento, Vinny. Este detetive está tentando descobrir quem matou Silvana. — Don Carregno comentou.

— Ah, é? — Vinny não parecia estar surpreso — Estamos torcendo para que sua investigação nos leve ao culpado.

— Silvana era quase uma irmã para o coitadinho. Um grande enxadrista ele… — Carregno me disse, quase sussurrando. — Quando você solucionar este caso, detetive, volte a falar comigo. Faço questão de cuidar para que o culpado seja punido.

Sai do covil de Carregno com um sentimento dúbio. Talvez, se eu o houvesse conhecido num bar, bebendo uísque e conversando sobre assuntos frívolos, jamais sustentaria uma má impressão dele. Carregno era calmo, ponderado, mas, mesmo assim, em seu olhar, havia uma vivacidade, uma paixão típica dos latinos. Eu não poderia confiar nele, mas não me parecia que ele tinha algum motivo para matar a amante. Quando falou em Silvana, havia ternura na voz. E se o que ele me disse era verdade, eu já possuía uma explicação para a presença de Viccenzo, Vinny como ele o havia chamado, no cemitério. Além disto, agora, eu havia me exposto de fato. Eles sabiam que eu sabia, se houvesse represálias, é porque eles tinham o rabo preso.

Retornei ao escritório e me deitei no sofá. Estava precisando de descanso. Porém, poucos instantes após haver fechado os olhos (ou poderia ter sido muito tempo, pois acordei um pouco babado), bateram na porta.

Quando me recompus, havia três pessoas na saleta semi-obscurecida pela penumbra, dois grandalhões com metralhadores a tiracolo, e Vinny, cigarro balançando na boca, uma pasta na mão.

Capítulo 8

Ele me executariam no escritório mesmo ou me levariam para um beco e me encheriam de chumbo?
Vinny caminhou até minha escrivaninha e apagou seu cigarro no cinzeiro.
Olhou-me e eu esperava que viesse de sua boca a minha sentença de morte.
— Desculpe-nos aparecer esta hora da noite, detetive, mas temos um trabalho para você.
Esta frase soou surreal. Que tipo de trabalho eu poderia prestar para a máfia?
— Como assim? — não pude evitar de gaguejar.
Vinny puxou a cadeira, mas não se sentou:
— Posso?
— Claro! — endireitei-me no meu assento, estendendo a mão para que ele fizesse as honras.
— O que acontece, detetive, é que titio ficou muito impressionado com você, hoje à tarde.
— Umhum… — que papo mais estranho, pensei.
— Nossos informantes descobriram que, semana que vem, desembarcará um navio vindo de Xangai.
— O que ou quem estará a bordo. — eu coçava o queixo.
Vinny prosseguiu:
— Brinquedos, seda, chá… — meu interlocutor respirou profundamente — E quinhentos quilos de ópio.
— Entendo.
— Não podemos permitir que esta quantidade de drogas chegue às ruas. Isto comprometeria seriamente nosso controle sobre a distribuição na cidade. Os chineses estão querendo nos passar a perna, mas vamos nos adiantar e dar a rasteira neles.
— E por que eu? Por que não alguém da sua família? — eu ainda estava desconfiado.
— Aqueles malditos chinas farejam um italiano a quilômetros de distância. Eles só parecem ser idiotas, mas, na verdade, são bastante astutos os desgraçados. — havia ódio no olhar de Vinny.
Curiosamente, eu nunca havia pensado que os chineses fossem estúpidos. Na minha opinião, os carcamanos eram bem mais bocós.
— Já perdemos três homens nas mãos dos chinas. — Vinny esclareceu.
Ahá! Aí estava a razão. Três italianos já haviam morrido. Eles não podiam se dar o luxo de perder mais alguém para a máfia chinesa. Um detetive particular, sem vínculos com a família, seria uma perda irrelevante.
Eu estava pronto para recusar o trabalho, quando Vinny fez a proposta.
— É óbvio que pagaremos seus honorários de acordo com a periculosidade do serviço, além de quaisquer eventuais gastos que você tenha durante a investigação.
— De quanto estamos falando? — dinheiro sempre era um estimulante, ainda mais quando se está com a corda no pescoço.
— Dez mil. Cinco adiantado, e o resto quando recebermos a informação.
Dez mil! Isto era mais do que eu havia recebido no ano passado inteiro! Eu poderia alugar um lugarzinho para morar, reformar o escritório e quitar algumas dívidas.
— Dez mil? — repeti — Bem, parece ser um valor justo…
Vinny largou a pasta sobre a minha mesa e a abriu. O dinheiro quase saltava dela.
— Como você deve saber, você se reportará a mim. Don Carregno não deve ser incomodado.
Martins já havia me explicado a hierarquia; era óbvio que Carregno queria se eximir de qualquer culpa. O responsável por esta operação era Viccenzo, se alguém tombasse nesta operação, seria ele.
— Eu sei como as coisas funcionam.

Apenas quando Vinny e os capangas deixaram meu escritório que o peso desabou sobre mim: agora, eu estava nas garras da máfia. E eu tinha poucos dias, talvez poucas hora, pois estávamos no domingo à noite, para cumprir o serviço.

Capítulo 9

Logo na segunda-feira de manhã me encaminhei ao porto.

No cais, visitei os gabinetes de vários despachantes, mas poucos puderam me dar alguma informação relevante.

Um dos estivadores, porém, me orientou a falar com Liang, despachante que comumente lidava com embarcações provenientes da China.

O pequeno escritório estava impregnado de fumaça. Liang, em sua mesa, óculos fundo de garrafa, lia um jornal em chinês, abanava-se com um leque, pois o calor era impiedoso, e fumava com languidez.

— Liang? — chamei-o.

Ele voltou para mim os olhos estúpidos.

— Sou Vico, detetive particular.

Liang continuava me observando, como se não estivesse me entendendo.

— Você falar português?

— Sim, é clalo. O que você quel?

— Eu possuo um cliente que está muito preocupado… Ele comprou algumas mercadorias chinesas e há mais de um mês ele está esperando elas chegarem. Ele recebeu a informação de que possivelmente o navio com sua encomenda está para chegar esta semana, mas ele ainda não sabe a data.

Liang não se mostrou muito entusiasmado com meu pedido. Retirei duas notas do meu bolso.

— Tem mais de onde estas vieram. Ponha um pouco de ânimo neste corpinho e me ajude. — ri. A visão do dinheiro foi um estímulo para o despachante, que jogou jornal e leque sobre a mesa e retirou um grosso livro, capa dura, duma gaveta. Liang ajeitou os óculos, abriu o livro e passou a folheá-lo, correndo o dedo pelas anotações.

— De onde você disse que o navio vem mesmo? — Liang perguntou, sem perceber que eu não havia lhe dito nada anteriormente.

— Xangai. Vem de Xangai. — resmunguei.

— Sim, sim… — Liang voltou um par de páginas e reiniciou a procura, dedo correndo pelas páginas. Subitamente, o dedo parou. O cenho de Liang se franziu, ele ajeitou os óculos e olhou, primeiro em minha direção, depois, na direção da porta, imediatamente atrás de mim. Voltei-me e, lá fora, há uns cem metros de distância, um chinês, ósculos escuros e casaco, mãos no bolso, nos espreitava.

Liang pigarreou, dedo trêmulo sobre a página do livro. Ele continuou a folhear, nervoso, as páginas, até o fim.

— Nada de Xangai está chegando, pelas plóximas tlês semanas, detetive. — ele estendeu a mão e apanhou as duas notas. — Sinto muito.

— Compreendo. Mesmo assim, agradeço a sua ajuda.

Não encontrei o homem que nos espiava, quando sai do gabinete de Liang. Contudo, já sabia onde estava a informação que eu procurava. Terceira página, quase no meio dela. À noite, voltarei.

Capítulo 10

À noite, o porto envolto em névoa era uma imagem sinistra e, ao mesmo, tentadora. Eu ouvia apenas dois sons, dos meus próprios sapatos contra o chão úmido e eventuais poças e o miado de gatos namorando sobre os depósitos.

Atracados, os navios eram apenas silhuetas, os mastros um fio negro entre o véu esbranquiçado. Caminhei até o escritório de Liang, apreensivo de que alguém, se é que havia alguma alma naquele silêncio, me visse.

Parei diante da porta e girei a maçaneta. Eu não podia esperar que o escritório estivesse aberto, mas sempre há uma esperança. Retirei do casaco minhas ferramentas de arrombamento e em poucos segundos destranquei a fechadura.

Entrei, fechei a porta e acendi minha lanterna. Não havia muita dúvida sobre o que vim fazer aqui. Avancei para a escrivaninha e vasculhei a gaveta de Liang. O livro estava lá. Quando o abri, veio a decepção e a incerteza.

Todas as anotações estavam em chinês!

Eu tinha impressão de tê-lo visto hesitando na página três, mas, agora, com toda aquela porra escrita em chinês, como eu poderia ter certeza?

Tive de pensar rápido. A caneta e papel que eu havia trazido para copiar a informação me seriam inúteis. Não poderia arrancar as páginas, caso não quisesse criar suspeita de que eu e a máfia italiana sabíamos a data na qual o carregamento chegaria. Isto seria arruinar a investigação.

Como sempre fui cauteloso, jamais me separo da minha câmera fotográfica. Retirei-a do bolso e fotografei a primeira página, com flash, senão, na hora da revelação, o resultado seria apenas um borrão preto. Fotografei a segunda, a terceira e a quarta páginas.

Foi neste momento que alguém bateu na janela, gritando em chinês.

Fiquei imóvel. Provavelmente, a claridade do flash pôde ser vista através da persiana do escritório e chamou atenção. Eu ficaria imóvel, torcendo para que quem quer que fosse desistisse e me deixasse em paz.

Mas é óbvio que ele não desistiu. Gritou novamente em chinês e, ao não obter respostas, em português:

— Quem está aí? — ele chacoalhou a maçaneta da porta.

Como eu não tinha de me preocupar mais se seria ou não descoberto, tirei uma última foto, da página cinco, guardei o livro na gaveta e corri para o banheiro, onde imaginava que haveria alguma janela por onde escapar.

Eu não estava errado. Realmente, havia uma janela, mas tão estreita que me pareceu impossível sair por ela, ainda mais estando acima do peso como eu estava.

Lá fora, ouvi gritos em chinês, como se o fulano estivesse chamando por ajuda. Em breve, uma dúzia de nanicos de olhos puxados estariam chutando a porta e querendo meu couro. Esta idéia me fez reconsiderar a janelinha e pensei até que, se eu encolhesse a barriga, talvez conseguisse passar.

Subi na privada.

Os chutes e ombradas na porta começaram.

Abri a janela e enfiei a cabeça para fora. Não havia ninguém, se eu passasse, talvez me salvasse, fugindo pelo beco.

Os chutes aumentaram, os gritos também. A turma havia chegado.

Projetei-me para fora. Cabeça e ombro facilmente, o torso um pouco mais complicado, mas a barriga, esta entalou.

Pelo ruído de madeira quebrando, a porta havia sido arrombada. Os chineses invadiram o escritório e, não me encontrando lá, começaram a tentar derrubar a porta do banheiro também.

O desespero começou a tomar conta de mim. Eu estava metade para fora da janela, metade para dentro do banheiro. Fazia uma força tremenda, meus braços apoiados na parede, mas não parecia que eu sairia dali. Eu suava, meus músculos dos braços trêmulos, pernas balançando no ar.

Os chineses derrubaram a porta do banheiro e ouvi exclamações e risos. Eles estavam se divertindo com minha situação constrangedora. Mãos agarraram meus pés e tentavam me puxar para dentro.

Realizei um último esforço, já que minha vida dependia disto. Como um milagre, eu me desentalei da janela e, apesar da força contrária dos chineses, escorreguei para fora e cai pesadamente sobre meus ombros.

Uma cabecinha de olhos puxados me olhou pela janela. E gritou comandos para seus colegas, os quais, provavelmente, já deveriam estar dando a volta para me pegarem no beco.

Atordoado, levantei-me. O chinês da janela também começou a sair por ela. Eu pensei em correr, mas quando me vi cercado, três chineses dum lado, dois do outro, e o que saltava pela janela, percebi que deveria me preparar para a luta.

Capítulo 11

Dos vinte aos vinte e três anos, lutei boxe semiprofessional, categoria Meio-Pesado. Eu era bom… Bom é apelido, eu era do caralho! Pus na lona muito lutador favorito, Bob “Chave Inglesa” Stuart, Gian “Baby Face” Giancarlo, João “Navalha” de Lima, Fernand “Cobra do Deserto” Sarracene. Por trinta lutas, eu fiz meus oponentes amargarem a derrota, até que veio Frank “Tornado” Carlyle e me derrubou no primeiro round, quebrou meu maxilar e me deixou hospitalizado por duas semanas.

Depois disto, fiquei com medo. Para que mentir?

Meu empresário me questionou, queria que eu voltasse, alegou que era apenas uma derrota e que eu superaria logo. Mas eu lhe disse que o médico havia me proibido de lutar novamente. Que eu poderia morrer se pisasse num ringue outra vez. Naquela ocasião, achei que deveria mentir, mas não agora. Tive medo, medo de encontrar outro Frank Carlyle pela frente que me fizesse beijar a lona. Eu havia feito alguma grana, tomado os melhores champanhas, trepado com as vagabundas mais caras, dormido nos melhores hotéis. Torrei todo o dinheiro que ganhei, por isto, quando a carreira acabou, comecei do zero.

O tempo passa e já faz quase vinte anos que meu sangue gelava ao entrar no ringue, ao ouvir no clamor da multidão meu nome. A habilidade se foi, não sou mais o mesmo pugilista de antes, já não tenho mais a mesma velocidade, porém, há certas coisas que nunca se esquece: lembro-me muito bem onde e como dar um bom soco.

Era nisto que eu pensava quando os chinas se aproximaram de mim, rodeando-me, dois empunhando bastões, os outros quatro com as mãos limpas.

O primeiro deles avançou sobre mim, chutando-me na altura do rosto. Antes que ele pudesse me alcançar, fiz a finta e acertei um upper no queixo do desgraçado. Ele tombou como um poste, completamente fora de combate.

Um segundo veio, soltando gritinhos, querendo me intimidar. Desferiu dois ataques com seu bastão, mas me esquivei, surpreendentemente, como nos bons tempos de juventude. Pude então entrar uma combinação, um gancho no fígado, outro no baço e um cruzado de esquerda. Este china também caiu, não inconsciente, mas agonizando com os golpes.

A maré de boa sorte não poderia durar para sempre. Um deles me acertou uma voadora nas costas, desequilibrei. Outro, pela frente, me chutou o abdômen. Uma bastonada na parte posterior da coxa me derrubou. Os quatro que estavam de pé passaram a me chutar no chão. Num reflexo, protegi a cabeça com os braços. Perder a consciência seria meu fim. Eles continuaram chutando, chutando, chutando.

Quando encontrei uma brecha, enfiei a mão dentro do casaco e saquei do coldre o revólver; disparei, acertando o joelho dum dos bastardos. Ele caiu e se arrastou para trás, gemendo. Ao me verem armado, os chineses se afastaram.

Cambaleante, escorando-me na parede, ergui-me. Os chineses hesitavam, não sabiam se deviam avançar sobre mim e acabar o serviço, ou correr e salvar as próprias vidas.

— Tenho cinco balas nesta merda! Vocês são três… Quem vai ser o macho a dar um passo pra frente?

Eles se olharam, permaneciam imóveis.

Com a arma apontada para eles, segui em direção ao meu carro. Eles me acompanhavam, à distância.

Eu estava todo arrebentado, mas já tinha a informação que precisava. Agora era só me encontrar com Viccenzo e receber o resto do pagamento.

Capítulo 12

Apesar da câmera haver se quebrado durante a surra, o filme estava intacto.

Revelei as fotos.

O entregador do restaurante chinês, por apenas vintão, leu para mim o que estava escrito no livro de notas de Liang.

Havia três carregamentos vindos de Xangai naquela semana, dois durante o dia e um, estranhamente, vindo durante a noite.

Entregar a droga durante o dia seria uma excelente maneira de despistar a polícia. Nada menos óbvio do que realizar um negócio ilícito diante da vista de todos. Porém, um carregamento à meia-noite era algo bastante inusitado. Que tipo de estivador trabalha à meia-noite? Que tipo de mercadoria precisa ser descarregado a esta hora da noite? Não se pode esperar que amanheça para que tal procedimento seja realizado?

Estas três perguntas me levaram à conclusão de que, se os chineses estivessem trazendo drogas, seria no navio da noite. Eu não tinha como me certificar disto, já que no caderno de Liang não havia nenhum tipo de informação sobre a espécie de produtos embarcados em cada um dos navios. Porém, a sorte estava a meu favor. O carregamento da meia-noite chegaria numa quarta-feira.

Os outros dois, na sexta de manhã e no sábado à tarde. Se, por acaso, o carregamento da noite não contivesse o procurado, os italianos poderiam realizar outras duas tentativas.

Foi isto que falei para Vinny, quando me encontrei com ele no restaurante italiano onde combinamos de nos encontrar.

— Mas há um problema, Vico. Se nós abordarmos o navio na quarta-feira, os chineses saberão que estamos atrás do ópio. Não teremos segunda ou terceira tentativas.

Ele tinha razão, mas, interiormente, eu tinha certeza de que estávamos atrás da pista certa.

— Mesmo assim, tenho plena convicção de que é o carregamento de quarta. O horário é muito estranho. Esta situação não cheira bem.

Vinny tragou o cigarro, cruzou as pernas e se esticou no espaldar da cadeira. Considerava as possibilidades que eu lhe apresentara.

— Vou conversar com titio. Deixarei que ele decida o que devemos fazer.

Ele estalou os dedos e um dos seus capangas logo trouxe uma outra maleta, na qual deveria conter, e de fato continha, a segunda parcela do meu pagamento.

— Por mim, eu considero o trabalho concluído, Vico. Mas, caso titio deseje mais informações, esteja pronto para realizar novas investigações, ainda pelo preço que estipulamos. O trabalho está pago, mas eu ligarei para você ainda hoje, confirmando se há algo a ser feito ainda ou não.

— Concordo.

Vinny fez um sinal com a mão, indicando que eu deveria me retirar, mesmo sem terminar de comer meu talharim ao sugo.

— Só mais uma coisa… — perguntei, enquanto me levantava — vocês conseguiram descobrir algo sobre a morte da Silvana?

A resposta era óbvia. Eles só não haviam descoberto, como sequer haviam procurado por novas informações. Don Carregno tinha outras preocupações em mente, como contrabando de ópio da China, por exemplo. Talvez ele fosse daquele tipo de pessoas que pensa: “Morreu? Está morto, sigamos adiante”.

Eu também costumo ser assim, mas toda regra possui sua exceção.

Vinny me ligou no escritório, e murmurou a frase que seria enigmática se eu não soubesse o assunto que se tratava:

— Titio comprou o doce. Não precisamos de mais caixas.

Senti-me como naquelas brincadeiras de criança, quando fingimos ser espiões e criamos códigos-secretos estúpidos para escondermos operações evidentes.

— Espero que ele goste dos doces. — respondi, rindo comigo mesmo.

Então seria na quarta-feira, meia-noite.

Retirei o chapéu, o casaco, a gravata, abri os botões da camisa e me joguei no sofá. Eu precisava encontrar algum lugar para morar. Debaixo da minha escrivaninha, havia duas valises, dez contos no total. Talvez eu até pudesse tirar umas férias, ir para alguma praia, encher a cara, bronzear este corpanzil branco e comer algumas mulatas.

No entanto, não se pode preparar a festa e não assistir à queima de fogos.

Na quarta-feira, eu estarei no porto também, fazendo o que sei de melhor: espreitando.

Capítulo 13

Aproveitei para buscar novas evidências sobre a morte da Silvana na terça. Fui ao necrotério e me deparei com talvez a única pessoa incorruptível da cidade, o médico legista, dr. Milano.

Fiz várias perguntas a ele, às quais ele respondeu com evasivas. Perguntei sobre a causa da morte de Silvana.

— Ela foi vítima de superdosagem de drogas psiquiátricas.

— Suicídio?

— Isto cabe à polícia determinar.

Nosso diálogo foi inteiramente assim; Milano era incapaz de dar uma resposta direta.

Quando perguntei se podia ver o laudo, ele se recusou a mostrá-lo. Quando mencionei os frascos de remédios encontrados na cena do crime, ele me disse que nunca recebeu frasco algum.

Fato bastante estranho. Como ele não havia recebido frasco algum? Eles estavam na cabeceira da cama, ao lado de Silvana. Tais evidência deveriam ter se extraviado entre a hora que eu a encontrei morta e a chegada dela ao necrotério. Ou o legista estava mentindo para mim. Ele parecia ser incorruptível, mas ninguém, ninguém mesmo é incorruptível.

A morte (ou assassinato) de Silvana estava escapando das minhas mãos. A cada dia que passava, mais longe eu me encontrava duma solução. As pontas soltas eram muitas e eu já não sabia aonde ir, nem a quem recorrer. Algo me dizia que estava na hora de me esquecer dela e voltar a me concentrar no presente, no que precisa ser feito, e no futuro, os casos que ainda virão.

Entrei num bar e pedi uma cerveja. Minha mente necessitava de descanso. Eu estava frustrado e, ao mesmo tempo, ansioso. Tinha dinheiro no bolso e, amanhã à noite, acompanharia o ataque dos italianos aos chineses. Eu assistiria a este evento e, depois, desapareceria por alguns dias. Tirar umas férias forçadas, esperar que as coisas se assentem, pois, provavelmente, o clima vai esquentar na cidade.

Uma bela morena me encarava, do outro lado do bar. Sorri para ela, erguendo minha cerveja em cumprimento. Ela mexeu no cabelo, baixou os olhos, sorriu e voltou a me encarar.

Fui até ela e disse a frase mais clichê daqueles que querem transar com uma bêbada:

— Garçom, traga outro drinque para a senhorita e mais uma cerveja para mim.

— Nunca te vi por aqui, bonitão. — ela molhou os lábios com a língua.

— Talvez porque eu nunca venha aqui.

Rimos.

Carol abriu meu cinto, ansiosa por me ver livre das calças. Eu tentava desabotoar o vestido dela, que resistia à minha inaptidão.

— Deixe que eu faço isto. — Carol passou a se despir, enquanto eu fazia o mesmo.

— Andou apanhando por aí, machão? — Carol beijava os pontos arroxeados em meu torso.

— Nem diga… — apesar de todo machucado, eu estava muito excitado. Há duas semanas que eu não fazia um amor gostoso, desde aquela deprimente discussão com Rose. Eu gostava daquela moça, trabalhadora, séria, mas queria algo que eu não podia lhe dar. Não sou homem de comprometimento; vivo das incertezas, do momento, da ausência do futuro.

— Pelo visto o pequeno Vico está querendo sair. — Carol enfiou a mão dentro da minha ceroula, eu gemia. — Pode deixar, hoje eu vou curar todas suas feridas.

Eu adoraria que fosse verdade, Carol, mas minhas feridas são muito mais profundas do que você imagina, bem mais dolorosas do que aparentam, e não vai ser qualquer vagabunda que vai me curar.

— É perigosa sua vida? — Carol e eu fumávamos, após o sexo.

— E a sua? — repliquei, não estava muito a fim de conversa.

— Estou falando sério! Sempre achei que a vida dum detetive fosse cheia de aventura, como nos filmes.

— Isto é tudo mentira, menina. A vida dum detetive é tão tediosa quanto a de qualquer outra pessoa; a única diferença é que nosso ofício é descobrir a sujeira que os outros querem esconder.

— Mas e os grandes amores? Os bandidos perigosos?

— Nada disto existe. Os bandidos perigosos são homens como nós: fracos, mortais, inseguros. Também sangram e sofrem como qualquer um. Grandes amores? Em que mundo você vive? Será que no seu país de conto-de-fada as princesas conhecem seus príncipes num bar e vão para a cama depois de meia dúzia de drinques e palavras?

Carol não gostou das coisas que eu disse…

E daí? A verdade quase nunca é agradável.

Aproveitei o tempo que me restava e me preparei para o que estava por vir. Comprei uma nova câmera e uma teleobjetiva, um binóculo e uma pistola semi-automática.

No crepúsculo de quarta-feira, acionei a ignição do meu automóvel e dirigi até o porto.

Seria uma longa espera, mas o show prometia ser bom.

Capítulo 14

Noventa por cento do trabalho dum detetive é esperar.

Um detetive competente é aquele que consegue agüentar longas horas, atento, vigilante, esperando apenas aquele segundo, no qual ele obterá a prova que solucionará o caso. Horas, pelo segundo certo.

Neste sentido, eu poderia me considerar como um puta investigador. Isto desde criança, eu empoleirado na árvore, esperando a Mariana trocar de roupa. Suportando câimbra, frio, desconforto, apenas por aquele momento que valeria a minha noite e que povoaria minha imaginação antes de dormir, quando eu brincava sozinho na cama, gemendo baixo para que meu pai não acordasse e viesse me bater com aquele bafo de bêbado.

Eu sabia esperar, e onde fazer isto para que não fosse descoberto.

Montei meu equipamento no telhado dum armazém. A câmera armada num tripé, apontada para o píer quatorze.

Ao contrário de dois dias atrás, quando o cais estava envolto em névoa, a noite de quarta estava maravilhosa, a lua cheia e algumas estrelas salpicadas no céu. Quando cheguei, ainda havia movimento no porto, mas, enquanto anoitecia, as pessoas desapareçam e os navios silenciaram.

Comi um sanduíche, tomei café, fumei um cigarrinho. Quando a hora esperada se aproximou, comecei a ficar ansioso. Faltavam quinze minutos para a meia-noite.

No mar, avistei um minúsculo ponto luminoso. Apanhei o binóculo. Era uma embarcação. Lentamente, balouçando, ela vinha para o porto. Tão devagar que parecia levar uma eternidade.

Do barco, surgiu um sinal de luz. Os tripulantes estavam indicando, para alguém em terra, que estava tudo bem.

Detectei um homem lá embaixo, com uma lanterna na mão, respondia ao sinal. Neste momento, quatro automóveis e uma caminhonete chegaram e estacionaram no porto. Deles, desceram vários homens, chineses, sem dúvida, todos baixinhos e cabeçudos. Traziam metralhadoras dependuradas nos ombros.

Eu os fotografei.

O navio atracou. Um marinheiro chinês desembarcou e amarrou no píer o barco. Em seguida, caminhou em direção aos outros chineses em terra e os cumprimentou. O que deveria ser o líder do grupo deve ter dado a ordem para descarregar a mercadoria, pois o marinheiro correu de volta ao barco e se iniciaram os trabalhos.

Era exatamente meia-noite e trinta e dois minutos quando a primeira caixa foi derribada. O trabalho braçal era realizado pelos marujos, os outros, que vieram de carro, pareciam ser apenas os guarda-costas. Uma a uma, as caixas foram levadas para a caminhonete, num total de dez.

Os chineses embarcaram nos veículos e começaram a manobrar para partirem.

Onde estavam os italianos? Será que preferiram não intervir?

Eu fotografava tudo, mas, pelo visto, este tudo seria nada.

Quando os chineses, em comboio, estavam deixando o píer e realizando a curva para contornar um dos depósitos e atingir a estrada para a cidade, um caminhão veio na contramão e se chocou de frente contra o primeiro automóvel. Por trás do comboio, surgiram outros dois carros, que bloquearam a fuga. Um terceiro veículo estacionou no píer.

Os italianos haviam feito a sua magistral chegada.

Capítulo 15

Dos carros, saltaram os mafiosos, encasacados e metralhadoras expelindo chumbo.

Eles fuzilaram o motorista e o passageiro da caminhonete, no qual estavam as caixas, bem como os marinheiros, que tentavam salvar suas vidas jogando-se no mar, mas que, atingidos pelos disparos, na água encontravam apenas mais um oponente, se não morriam baleados, morriam agonizando, sangrando e se afogando.

Os chineses tentaram uma reação. Um a um, desceram dos carros, mas eram incansavelmente metralhados pelos italianos. Após todos haverem tombado, do último automóvel saiu Vinny. Ele desfilou por entre a carnificina até chegar na carroceria da caminhonete. Conferiu as caixas. Um dos capangas lhe passou um pé-de-cabra, com o qual Vinny abriu uma delas. Parecia estar satisfeito.

Foi quando a cabeça dum dos italianos explodiu, seguido por um som seco. Vinny e seus soldados buscaram cobertura.

Procurei, com meu binóculo, a origem do disparo. Num galpão, ao lado do meu, um franco-atirador recarregava seu rifle.

Eu me escondi.

Ouvi gritos lá embaixo e rajadas de metralhadora. Os italianos tentavam alvejar o atirador, que efetuou um segundo disparo e, provavelmente, abateu mais um, pelos gritos que se seguiram.

Ergui minha cabeça parcialmente. Mais uma vez, o atirador recarregava. No solo, os italianos aproveitavam este momento e correram para seus carros e para a caminhonete. Tentavam fugir da cena de combate.

O atirador efetuou outro disparo, no intuito de acertar o motorista da caminhonete. Mas ela continuou em movimento, os italianos escapavam.

Apanhando seu rifle, o atirador se moveu para o outro lado do depósito, tentando acertar alguns tiros pela retaguarda.

Com a câmera, tirei algumas fotos do assassino. Pelo que tudo indicava, era um dos chineses, encarregado de proteger a operação. Ele havia fracassado.

Fiquei deitado no telhado do depósito por algum tempo. Aguardava que o atirador fosse embora.

Desci e, antes de partir, dei uma olhada na carnificina. Dos italianos, havia apenas um corpo, aquele que teve os miolos espalhados pelo disparo do rifle. Improvável que a polícia conseguisse reconhecer o corpo. Já os chineses, os cadáveres deles estavam por todo lado. Não havia sobreviventes.

Sons de sirenes se aproximavam. Corri até meu carro e percorri o caminho mais longo de volta para o escritório.

Eu estava exausto. Quase quatro horas da manhã. Eu descansaria um pouco e, logo cedo, pegaria um trem para algum lugar.

Para onde?

Ainda não sabia, mas para qualquer lugar longe da guerra que estava para começar.

Arrumei uma valise de mão com alguns trapos, meu revólver e meu bloco de notas. Retirei da pasta um maço de dinheiro, umas quinhentas pratas, dinheiro suficiente para me esbaldar por mais de mês, e depois escondi as duas maletas sob tábuas soltas, embaixo da escrivaninha, junto com a caderneta da Silvana, a pistola e os rolos de filme com as fotos desta noite sanguinolenta.

Despejei-me sobre o sofá, mas não consegui dormir, apesar do cansaço. Estava preocupado, algo me incomodava profundamente. Quando ouvi um bochicho no corredor do prédio, em frente à minha porta, compreendi minha preocupação. Vi silhuetas através do vidro fosco, falavam chinês.

Eles vieram me pegar.

Como chegaram até mim?

Alguém havia me dedurado. Esta era a única possibilidade. Os chineses me esfolariam vivo, era isto que eles costumavam fazer.

Me delataram e agora os chinas estavam à minha porta.

Capítulo 16

Só tive tempo de enfiar a mão na valise, catar o meu revólver e mergulhar em direção ao banheiro, quando as balas pipocaram em meu escritório atravessando a porta.

Se eu tivesse tempo, certamente refletiria sobre esta misteriosa relação entre eu, os chineses e um banheiro, mas, naquele momento, eu tinha mais era que pensar em como sair vivo de mais esta.

Os chineses gritavam, atiravam e gritavam, gritavam e atiravam.

Efetuei um disparo com meu revólver, e recebi cinqüenta outros das metralhadoras dos chinas.

Que mundo era este em que vivíamos, quando homens decentes tinham no máximo um mísero revolverzinho e os bandidos andavam com o que havia de melhor e mais mortífero?

Dei outro tiro, obtendo a mesma resposta dos inimigos. A gritaria na porta continuava.

Ao contrário do banheiro de Liang, não havia possibilidade de sair pela janelinha do banheiro do escritório, tanto pelo tamanho quanto pela altura. Meu escritório era no segundo andar e, mesmo que eu passasse por aquele retângulo de 50X20, me estrebucharia no asfalto. A minha única opção, neste caso, seria sair pela janela do escritório e descer pela escada de incêndio, já que, pela porta, seria impossível, com todos aqueles chineses loucos para me esburacarem.

Eles gritavam, deveriam estar decidindo quem seria o primeiro a entrar, espiei, mas não consegui ver nada, pois logo veio a fuzilaria. Voltei para minha proteção. Eu precisava criar alguma distração, algo que me desse tempo para precipitar-me janela afora e fugir.

Não podia divagar muito, tinha de ser algo prático e eficiente. Fui até o armário sobre a pia e encontrei um desodorante e perfume. Os frascos estavam cheios, boa explicação para minha sovaqueira usual.

Retirei minha camisa, amarrei parte dela no desentupidor de privada, e a embebi em desodorante. Com meu isqueiro, ateei fogo à peça que quase instantaneamente se incendiou. Uma bandeira flamejante.

Por sua vez, o frasco de perfume voou de minhas mãos, indo se estilhaçar no batente da porta de entrada. Os chineses retrucaram com metralhadas, mas me escondi. Quando eles deram uma trégua, arremessei meu coquetel molotov improvisado em direção à porta e a camisa em chamas, em contato com a porta embebida em perfume de quinta, criou um efeito semelhante àquelas rodas de fogo que vemos em circos, pelas quais pobres leões são obrigados a saltar. Os chineses gritavam, desorientados.

Foi a minha oportunidade para escapar; enrolei uma toalha fedida no antebraço e avancei em direção à janela. Os chineses, por entre a porta flamejante, me viram e dispararam a esmo. Para minha sorte, eles tinham péssima mira e não me atingiram. Atravessei o vidro da janela, meu braço protegido dos cacos pela toalha e caí de boca contra a escada de incêndio. Desci por ela quase rolando, ouvindo disparos sobre mim. Os leões haviam atravessado a roda de fogo.

Desci a escada, para poder, enfim, chegar ao térreo. Descia com pressa. Quando toquei os pés no chão, levei uma coronhada na têmpora que me fez desmaiar.

Eles haviam me pegado.

Capítulo 17

Já apanhei muito na vida. Provavelmente, apanhei mais do que bati. Na escola, certa vez, chamei o Tonhão, três anos mais velho do que eu, de viado. Aquele filho da mãe, junto com seus amigos, me juntaram a caminho de casa, levaram-me para um terreno baldio e me bateram. Só desistiram quando eu desmaiei. Após me recuperar, pensei que meu pai me defenderia, iria atrás dos pivetes e vingaria a ofensa a mim. Que nada!

— Seu pirralho, só me envergonha com sua bichice!

Quer diz, agora era eu quem era bicha? Tinha apenas onze anos, encarando meninos de quartoze, um contra seis, e era eu o covarde?

Não adiantou, depois de apanhar dos meninos, apanhei também do meu pai. O que aconteceu com Tonhão eu não sei, mas o maldito do meu pai teve o fim que um cachorro como ele merecia: foi pego na cama da mulher dum soldado e levou um tiro de fuzil pelas costas. Minha mãe nos contou que papai havia morrido na guerra, para não diminuir o respeito que deveríamos ter por ele. Mas que tipo de respeito um sujeito como ele merecia?

Mas os chineses estavam dispostos a me fazer esquecer de todas as grandes surras anteriores.

Eles amarram meus pulsos sobre minha cabeça, quase me suspendendo no ar. Minha única sustentação, além da corda atada nas mãos erguendo-me, era as pontas dos pés. Nesta posição delicada, praticamente um saco de pancada humano, os chineses me humilharam de todos os modos que conheciam.

Despiram-me, deram-me choque nas genitálias, chutavam-me e me esmurravam, recebi pauladas nos intestinos (as conseqüências disto você deve bem saber, minha sorte era que estava nu, assim, não cagaria nas calças) e jogavam água gelada na minha cara.

Toda vez que eu desmaiava, e foram muitas, eles me desamarravam e aguardavam até que eu me recompusesse.

Então, tudo recomeçava.

Sem o menor aviso, a tortura acabou. Meus verdugos partiram, deixando sozinho, amarrado, dependurado, naquele galpão gélido. Eu tremia, meus testículos doíam, minhas pernas fraquejavam. Talvez tenham sido horas naquela posição, agonizando.

Mas os desgraçados retornaram. Em maior número e armados. Reconheci Liang entre eles.

Eles se aproximaram de mim. Um dos chineses, mais velho, óculos escuros e terno, perguntou algo a Liang:

— É ele? — supus que fosse a pergunta.

— Sim. É o este o homem que veio falar comigo. — é o que Liang deve ter respondido.

Então, este chinês mais velho ordenou a outro, então, que me interrogasse.

— Quem te contlatou?

Eu já estava tão aquebrantado, que sequer considerei as implicações da minha resposta. Quase chorando, eu confessei:

— Foi Giuseppe Carregno! Foi ele quem me contratou para descobrir quando chegaria o carregamento de ópio.

A expressão do velho chinês se modificou e, se ele não estivesse usando óculos, imagino que deveria haver ódio no olhar. Ele se virou e desapareceu do galpão com seus seguranças.

Pensei que agora eles me matariam, afinal de contas, já haviam sido tantas as atrocidades que me dar um tiro na cabeça seria um alívio. Mas não, o chinês que me serviu de intérprete deu uma ordem e seus homens me desamarraram. Em seguida, jogaram sobre mim minhas roupas e estes também sumiram.

Chorei como uma criança, talvez como quando eu tinha onze anos e levei aquela sova de Tonhão. Depois, entendi o porquê de eles terem me liberado.

Eles deixariam o privilégio de me matar para os italianos e, pelo que tudo indicava, a vingança deles seria bem pior do que qualquer tortura chinesa.

Capítulo 18

Eu estava a quilômetros da cidade, nos galpões abandonados duma antiga fábrica.

Retornei à pé para o escritório e só cheguei quando já havia amanhecido. Porém, não tive uma boa surpresa. Ao contornar a esquina, vi que a entrada do edifício estava impedida por faixas amarelas — NÃO ULTRAPASSE — , viaturas policiais estacionadas nos arredores, e meganhas entrando e saindo do prédio.

Era muita imbecilidade minha, ou os chineses haviam me batido demais na cabeça, pensar que eu chegaria no escritório e tudo estaria bem, mesmo após ele ter sido destruído por metralhadas, incendiado, chineses gritando e um detetive rolando escada-de-incêndio abaixo.

Com a mesma rapidez com que vinha, eu me virei e voltei pelo mesmo caminho que havia feito. Mas alguém gritou meu nome, atrás de mim:

— Vico?

Continuei andando, fingindo não haver escutado.

— Detetive Vico? — a voz insistiu.

Olhei por sobre o ombro. Camacho estava quase correndo para me alcançar.

— Olá, policial. O que está acontecendo por aqui?

— Eu esperava que você pudesse me responder isto… Por que está fugindo?

Até pensei em dar uma resposta, mas qualquer uma soaria absurda, afinal de contas, Camacho não era nenhum idiota.

— Alguém morreu? — mudei o rumo da conversa.

— Por quê? Alguém deveria ter morrido? — Camacho mantinha uma expressão sombria, como se conseguisse ler meus pensamentos.

— Não sei… Mas é que você é investigador da Homicídios. Se está aqui, é porque deve ter algum cadáver. — expliquei-me.

— Ah, aqui, neste prédio em particular, não morreu ninguém. Mas ocorreram muitas coincidências nestas últimas horas. Primeiro, há uma chacina no porto, dezessete chineses mortos; em seguida, chineses são vistos entrando neste prédio e fuzilando o escritório dum detetive particular enxerido; por fim, este mesmo detetive aparece todo arrebentado e fugindo da cena do crime. Estou investigando as mortes no porto, mas creio possuir indícios suficientes que me permitam deduzir que a chacina e o ataque ao seu escritório estão relacionados.

— De fato, possui. Mas, mesmo assim, acho que você está bem longe da verdade.

— E qual é a verdade, Vico?

Senti uma dor no peito, talvez fosse por causa da surra, mas talvez fosse uma angústia, uma necessidade de desabafar.

— Pode confiar em mim, Vico, eu não sou seu inimigo.

Como eu gostaria de acreditar nisto, pelo menos, não estaria mais sozinho nesta luta contra forças muito maiores do que as minhas. E se Camacho fosse um dos policiais da máfia?

— Eu não sei do que você está falando, policial. Passei a noite fora do escritório, não sei quem o invadiu e o que aconteceu. Não me surpreenderia se fosse algum cliente que não gostou das conclusões de alguma investigação que fiz. Você bem sabe que há louco para tudo neste mundo.

— Sei, até para acreditar numa besteira como esta que você me contou. — Camacho pôs a mão na cintura e retirou um par de algemas. — Serei obrigado a detê-lo, Vico.

— E qual é a acusação? Ter matado uma vintena de chinas? Ter fuzilado meu próprio escritório? Ou é simplesmente abuso de autoridade? Os jornais vão adorar estampar sua cara na primeira página!

Camacho hesitou.

— Vou descobrir no que você está envolvido, detetive.

Ensaiei um sorriso.

— É claro que vai.

Eu estava sem um único tostão, por isso, deixei meu relógio como caução na recepção da espelunca na qual me hospedei, a duas quadras do meu escritório.

Na minha mente, duas metas: entrar na cena do crime e resgatar minhas coisas; falar com Vinny e descobrir quem havia me ferrado.

Capítulo 19

— Vocês me delataram, seus filhos-da-puta! — eu havia ligado a cobrar, e aproveitava para xingar tudo que tinha para xingar antes que desligassem na minha cara.

— Do que você está falando, Vico? — Vinny indagou atônito, estava sendo complacente comigo.

— Os chineses tentaram me matar ontem à noite! Você ou algum desgraçado do seu bando abriu o bico… Apanhei a noite inteira por causa do que vocês fizeram no porto.

Ouvi Vinny rindo do outro lado da linha.

— Isto não tem graça, seu mafiozinho de merda!

— É claro que não, Vico. Mas você foi muito bem pago e sabia dos riscos. Não serei eu quem ficará bancando o papai para uma criança chorona. Apanhou? Apanhou. Está vivo? Que bom! Agora, cale a boca e me ouça.

Obedeci.

— O que os chineses lhe disseram?

— E eu lá sei! Não falo esta porra de língua!

— Calma, Vico, mantenha a calma. O que você pensa que eles irão fazer? Você contou a eles sobre nosso envolvimento?

Era neste ponto em que o bicho pegava. Se eu falasse a verdade, a máfia teria uma confissão minha de que eu havia contado tudo aos chineses; se eu mentisse, eles arrancariam a verdade de mim, e mais uma sessão de tortura estaria me aguardando.

— É óbvio que contei. Eles me torturaram a noite inteira.

— Fez bem, Vico. De que você nos adiantaria morto?

— Lhes adiantaria? Vocês é que não contem mais comigo pra nada. Eu estou caindo fora desta cidade. Vocês que se matem!

— Tudo bem. Você tem razão. É melhor descansar e ficar fora da bagunça. Você não tem culpa alguma. Os chineses descobririam o roubo de ópio cedo ou tarde. Somos nós que devemos resolver este problema. Fique tranqüilo, não guardamos nenhuma mágoa de você.

— …

— Onde você está hospedado? Ainda está no escritório?

— Não. Os chineses destruíram tudo por lá. Estou num hotelzinho barato, perto de lá.

— Então, arrume suas coisas e deixe a cidade. Não quero vê-lo por aqui até que a poeira se assente, entendido? Alguns dos meus rapazes passarão para buscá-lo, mais tarde.

— Não tem necessidade…

— É só uma garantia. Não quero que os chineses o peguem novamente. Meus homens o escoltarão para fora da cidade, você não precisa se preocupar com nada.

A conversa pelo telefone com Vinny foi insólita. Eu os havia traído e recebia uma espécie de perdão incondicional e proteção. Isto não fazia sentido algum.

Os capangas da máfia viriam me buscar à noite, por isso, aproveitei para dar um pulo no escritório, já que a polícia havia deixado o local.

Ultrapassei o cordão de isolamento e rompi o lacre na porta do escritório. Como eu havia previsto, meu coquetel molotov causou danos pequenos, apenas na região próxima à porta. Minha valise ainda estava no chão, aberta, pois a polícia deveria tê-la revistado. O dinheiro não estava lá, mas a pistola e meus pertences sim. Certifiquei-me de que as maletas estavam seguras sob as tábuas soltas embaixo da escrivaninha, aproveitei para apanhar mais umas trezentas pratas, para gastos eventuais neste tempo que ficarei fora. Repus tudo no lugar.

Retornei ao hotel e aguardei minha escolta. O recepcionista me avisou da chegada deles e desci para encontrá-los.

Havia quatro deles; dois me seguraram pelos braços e me arremessaram para o interior dum carro.

— Eu achei que iria digirindo… — ri, mas já havia percebido que as coisas ficariam pretas para mim.

— Não estamos para brincadeira. — um deles respondeu.

— Nem eu. Para onde estão me levando?

— Se eu fosse você, não gostaria de saber. — outro disse.

E lá fui eu, para mais um festival de pancadas? Ou algo pior?

Capítulo 20

Levaram-me até as docas, silenciosas nesta quinta-feira à noite, principalmente ao sul, onde galpões e depósitos abandonados reinavam.

Nem resisti quando os grandalhões me amarraram. Eu estava tão exausto, moído pelas surras anteriores, que qualquer disposição para reagir e lutar havia me deixado. Tudo que pedi, suplicando quase, foi:

— Por favor, não me batam!

Incrivelmente, os grandalhões obedeceram, mas não evitaram de me chacotear. Com meus documentos em mãos, eles riam.

— Detetive Vico? Sempre achei curioso este nome. Mas nunca pensei que poderia ser pior do que já é.

O outro capanga se aproximou e leu o meu nome na identidade:

— Ludovico?

Os quatro riram.

Ludovico: o nome do meu avô materno. Antes este do o que meu pai queria, Seamus. Esta mescla entre um ramo paterno irlandês e outro materno italiano sempre foi motivo de brigas familiares. Meu avô, o xará Ludovico, dizia que meu pai não passava dum digno representante da “praga irlandesa”, enquanto que este xingava meu avô para minha mãe, dizendo ser ele um carcamano ignorante. Talvez ambos estivessem certos. Mas isto não justificava que aqueles mafiosos estúpidos tirassem sarro do nome do meu avô.

— Acham meu nome engraçado, seus paspalhos? E os seus? Deixe-me adivinhar: Ravióli, Espaguete, Talharim e Polenta. Estou certo?

É claro que, com a minha resposta, os carcamanos quebraram a promessa feita. Bateram-me até eu pedir chega, e as devidas desculpas.

Eu não sabia o que esperávamos, pois, induzido pelas evidências, eu já tinha concluído que esta ali no porto para ser executado. Ninguém é amarrado, depois atado a um motor de barco, posicionado na borda dum píer, sem algum motivo evidente. Mas, mesmo assim, esperávamos.

Um automóvel se aproximou e dele surgiu Vinny. No íntimo, alegrei-me, aquela esperança tola que todo ser humano nutre em si de que, no último instante, através dos atos da pessoa mais inusitada, tudo vai dar certo. Mas esta esperança não seria tola se fosse real; só era tola por ser aquele anseio desesperado dum bastardo às portas da morte.

— Poxa vida, Vinny! Você deveria contratar novos capangas… Estes aqui não conseguem entender uma ordem simples. Você os mandou para me levar para fora da cidade, e eles estão querendo me mandar para o fundo do mar.

Mas a piada caiu sobre um semblante de gelo. Vinny veio até mim e me olhou no fundo dos olhos.

— Como você é burro, Vico! Eu quase tinha certeza de que você, após receber o dinheiro do serviço, desaparecia. Mas não! O detetive é muito durão para sumir do mapa. Ele quer continuar xeretando, continuar rodando por aí, abrindo o bico depois dumas palmadas na bunda. Você é um… — mas Vinny não concluiu o raciocínio.

— E por isto, você vai me matar? — esta era, pelas atuais circunstâncias, uma mera pergunta retórica.

— Vou. Se você contou tudo para os chineses, não há nada que me garanta que você não vá depor para a polícia, ou para sei lá quem. Você não é confiável; você é um fracassado.

— Tudo bem, Vinny. Você tem razão, eu pisei na bola. Porém, se você me matar agora, amanhã toda a polícia da cidade estará atrás de você.

— Ah é?

— Sim, eu tenho tudo documentado, fotografias, relatórios, sobre suas atividades. E estas provas estão num lugar seguro, nas mãos duma pessoa confiável.

Vinny gargalhou.

— Mentira…

— Estou falando a verdade, Vinny.

— Não, você está mentindo. E sabe como eu sei isto?

É claro que eu queria! Este era um blefe eficiente, ele não descartaria a possibilidade de eu estar falando a verdade a não ser que tivesse certeza absoluta do contrário.

Acenei com a cabeça.

— Porque você é arrogante. O detetive Vico se acha mais esperto que as outras pessoas. Você não contava que os chineses viessem ao seu encalço, não contava que eu viria ao seu encalço. Você sempre pensa que suas merdas não terão conseqüências… E, por isto, você não toma precauções quando a merda volta na sua cara. Você tem provas, tenho certeza disto; sei que você tirou fotos de mim durante o sepultamento da Silvana; sei que você estava no porto quando nos apoderamos do ópio chinês; mas também sei que você não entregou tais provas a ninguém. Sua prepotência é minha certeza.

Bingo! Não é que este mafiozinho de quinta tinha razão.

— E, neste instante, você está se remoendo, porque um pirralho como eu, com quase metade da sua idade, consegue se antecipar a você. O que acontece com caras como você é que, quando se trata de aspectos particulares, tudo funciona bem, mas quando se trata de ver a situação geral, o raciocínio falha. É preciso pensar nos detalhes, mas nunca, nunca se pode perder a visão do todo. Por isto, estou sempre à sua frente, e sempre vou estar. Nosso negócio está definitivamente concluído, Vico.

Dois capangas erguerem o motor do barco, amarrado à minha perna, e o lançaram na baía, alguns poucos segundos depois, fui tragado para debaixo d’água.

Capítulo 21

Já fiz de tudo nesta vida.

Acho que disse isto antes, mas quando se trata duma verdade, nunca é demais repetir: já fiz de tudo nesta vida.

Aos quartoze anos, fugi de casa. Tinha ido ao circo com minha mãe e meu irmão, e fiquei fascinado com o domador de leões. Um homem, nem forte nem fraco, com um chicote e um banquinho, dominando uma fera, sanguinária, “o rei das selvas”, presas assassinas, bote mortal.

A caravana do circo partiu. Na manhã seguinte, quando os caminhões da companhia circense estacionaram para serem abastecidos, o mágico me encontrou, escondido dentro dum armário, em seu trailer.

— Que isso? — ele se assustou. Não era truque de mágica algum, era apenas um adolescente revoltado, que queria domar leões e conhecer o mundo.

Eu me expliquei, contei-lhe minha vida, chorei, resmunguei, mas nada, o coração do mágico era inclemente.

— Pra fora, seu pirralho!

Parti, então, para estratégias mais sedutoras: prometi que lavaria a roupa dele, que limparia o trailer, e todos aqueles afazeres domésticos que eu jamais havia realizado anteriormente.

O mágico, cujo nome era Zorba, o Prodigioso, balançou:

— A roupa? O trailer?

E percebi que havia acertado o alvo, fiz novas promessas, todas que me rebaixavam a um estado servil, ao mesmo tempo que livre, já que não teria de ver a cara do meu pai novamente.

Zorba aceitou.

Então, virei a maricota do mágico. Lavava, passava, esfregava, limpava, mas me tornei amigo de Zorba. À noite, após as apresentações da companhia, Zorba me ensinava algum truque, nada muito sofisticado, alguma magiquinha com baralho, escondendo cartas na manga.

E, aos poucos, também me tornei amigo dos demais membros do circo, do acrobata, do anão, dos palhaços, do domador, do apresentador, e todos me queriam bem e me ajudavam. Deixei de limpar o trailer e passei a alimentar os animais, a girafa, os cavalos, o elefante. Só não cuidava do leão porque ele me odiava. Sem brincadeira! O leão me tinha ódio. Era eu me aproximar da jaula que ele saltava e rosnava, com sua boca banguela. Não tinha dentes, mas tinha fúria e, se quisesse, poderia me matar com uma única patada. Algo que eu nunca me tornaria, se dependesse daquele leão, era domador.

Certo dia, Zorba adoeceu e não havia ninguém que pudesse substituí-lo.

— Vico, você tem de ir. Já te ensinei tantas coisas, você pode ocupar meu lugar.

Mas eu não tinha tanta certeza quanto Zorba. Fui, acanhado, encolhido, entrei na arena, a platéia em total silêncio, vendo um meninote com capa e cartola de mágico. O apresentador me anunciou: “Vico, o Magnífico”.

Mas eu era magnífico, uma magnífica merda!

De todas as mágicas que perfiz, nenhuma deu certo. O coelho fugiu da cartola, os passarinhos escaparam das mangas, a assistente foi posta na caixa e, ao invés de aparecer um tigre, quem apareceu de novo foi a mesma assistente. Um completo fiasco. Mas todos riram, gargalharam. Eu, com os olhos rasos d’água, só queria fugir dali.

Porém, como Zorba me disse, depois, já recuperado:

— No circo, o que importa é que o público se divirta. Se você conseguiu isto, então obteve o pretendido.

Não fiquei muito tempo com a trupe. Outras coisas me atraíram, outros ofícios, outros amigos. Mas algo que nunca me esqueci foi como escapar de cordas e camisas-de-força. Este truque é bem mais fácil do que parece, mas um bizarro código de ética, que não me pertence, mais ao qual fiz juramento instigado por Zorba quando este me ensinou, foi o de nunca revelar os segredos da mágica. Tolice minha manter silêncio, ainda mais quando estava afundando na baía, submerso na água turva do porto, debatendo-me, desvencilhando-me das amarras, lutando contra a falta de fôlego e com o motor de barco que me mantinha a poucos metros do fundo; apesar de tolice, ainda restava um tiquinho de lealdade a meus anos de meninice.

Libertei-me das cordas, como se uma platéia apreensiva me assistisse e torcesse para que me salvasse, e nadei para a superfície, acompanhando os pilares, para que, quando eu emergisse, saísse sob o píer, e não à vista daqueles que me queriam morto.

Abraçado à coluna, permaneci uma meia hora, certificando-me de que os mafiosos houvessem partido. Somente assim, nadei pela borda do cais, até alcançar um atracadouro para lanchas.

Eu estava encharcado, com frio, e emputecido.

Capítulo 22

— Vico? Nossa, que surpresa! — Rose estava animada com meu telefonema, mesmo que fosse a cobrar.

Mas eu não estava tão empolgado, a noite estava fria, e as roupas molhadas estavam me congelando, caminhei horas até um posto de gasolina, e tudo que queria era uma cama para me deitar e dormir.

— Rose… Não estou nada bem. Preciso de você.

— Venha até minha casa, Vico. Você sabe que sempre foi bem-vindo. A escolha foi sua de partir.

Lá vinha ela querendo discutir a relação.

— Não tenho como ir para sua casa, Rose. Estou no meio do nada, acabaram de tentar me matar; estou morrendo de frio.

— Onde você está? Eu vou buscá-lo.

A preocupação dela era genuína, sempre a achei uma idiota por causa disto, mesmo eu a espezinhando, ela continuava me amando.

Dei as orientações a ela, agora, restava-me esperar.

Sentei-me perto da loja de conveniência do posto, ergui a gola do casaco, tentando me aquecer. Um caminhoneiro chegou e desembarcou. Olhou-me e percebi que estava compadecido; aproximou-se de mim e jogou algumas moedas.

— Tome uma birita, tio, isto vai te esquentar. Se quiser, pode ir comigo pra cidade; há um abrigo para mendigos lá.

— Mendigo é o desgraçado do seu pai! — apanhei as moedas e joguei na cara do caminheiro. — Aproveite e enfie seu dinheiro no rabo!

Brincadeira! Eu já estava todo fodido, e ainda vinha um ignorante para me tratar como um indigente. O caminhoneiro fechou a cara, e me jogou as moedas novamente, mas agora com violência.

— Se está na merda é porque merece, seu pé-rapado porco!

E entrou na loja de conveniência, deixando-me em paz, congelando, batendo os dentes.

Rose não demorou a chegar, trazia uma muda de roupas secas nas mãos. Veio e me abraçou:

— No que você se meteu desta vez, rapaz?

Devolvi o abraço, lágrimas engasgadas nestes meus olhos brutos.

— No mesmo de sempre, menina.

— Tudo vai ficar bem. — e esta frase, vindo de Rose, só podia ser verdade.

Capítulo 23

Rose retornou trazendo o que eu lhe havia pedido.

Enquanto eu me recuperava do congelante banho de mar num banho quentinho de banheira, Rose se esgueirou até meu escritório, retirou as valises do esconderijo sob tábuas soltas, apanhou minha roupa, e voltou correndo para o apartamento dela.

— Era isto que você queria? — ela me perguntou, eu me enxugando, após o banho reconfortante.

— Você é o máximo, Rose — eu disse, abrindo as valises e retirando o que havia nelas. Os olhinhos de Rose brilharam, aposto que ela nunca havia visto tanto dinheiro antes.

Eu entreguei a ela o envelope contendo a caderneta de Silvana e as fotos que tirei nestes últimos dias.

— Rose, o que vou pedir a você é algo muito sério. Você já viu que tem gente querendo me matar. Se algo acontecer comigo nestes próximos dias, prometa-me que você vai entregar este envelope ao comandante Martins, da Divisão de Crime Organizado da polícia.

— Nada vai acontecer contigo, Vico — havia desespero no rostinho dela.

— Eu sei que não. Mas, se acontecer… — eu detestava ter de recorrer a estes clichês, mas eu tinha medo sim de morrer, e gente me querendo morto também não faltava. — Prometa-me.

Rose resmungou algo, devia ser a promessa, lutava para engolir o choro.

— Outra coisa, — retirei um maço de dinheiro da valise, devia ter umas quinhentas pratas, quase três meses de salário da Rose — fique com este dinheiro, para quaisquer eventualidades. Vou deixar as valises aqui, pois sei que posso confiar em você.

— Não quero nada. Não estou fazendo isto por dinheiro — ela relutou.

— Eu insisto. Não se trata de pagamento, é só porque me importo com você — ela aceitou.

— Você me explicará o que aconteceu? — Rose acariciou o meu rosto, barba por fazer.

— Talvez um dia. Nem eu sei direito no que estou envolvido; tantas peças não se encaixam, mas tenho impressão que de tenho sido manipulado, durante todos estes últimos dias.

Rose me beijou.

— Vou fazê-lo se esquecer do que passou.

Brochei…

Se você é homem, sabe que isto um dia ocorre; se não ocorreu, pode ter certeza que ainda vai acontecer. Com que cabeça eu transaria com Rose? Estava todo arrebentado, não havia um músculo no meu corpo que não estivesse doendo, os chineses queriam me matar, os italianos queriam me matar, não há homem no mundo que consiga dar no couro nestas condições.

— Não fique assim, Vico, estas coisas acontecem.

Ensaiei um sorriso: por que as pessoas não conseguem ficar quietas diante dum pinto mole? Não basta um silêncio reverente? Não basta deitar e dormir, apesar do constrangimento.

— Você está cansado, machucado; eu não devia ter tentado nada — Rose insistia.

— Menina, posso lhe pedir algo?

— É claro, Vico, tudo que quiser.

— Sem querer ser grosso, mas cale a boca!

Rose ficou chateada comigo, ela é muito sensível. Também implorou para que eu não saísse de casa, quando eu disse a ela que resolveria duma vez por todas minhas pendências.

Eu não era dado a intuições, sensações misteriosas, previsões mágicas, mas algo me dizia que eu estava certo, naquela noite, tudo se resolveria.

Capítulo 24

Emprestei o automóvel da Rose; se eu chegasse na frente da mansão de Giuseppe Carregno com meu próprio carro, na hora eles me reconheceriam.

Vinny havia me instruído a nunca me dirigir a Giuseppe, mas, se eu quisesse saber a razão por que eles me queriam morto, eu teria de contrariar esta orientação; afinal de contas, para eles, eu já estava morto mesmo!

Bastaria esperar que Vinny e seus capangas deixassem a mansão (eu podia ver os veículos deles estacionados diante do casarão), pular o muro e pegar o chefão de pijamas. Sem seus seguranças por perto, desarmado, todo homem vira uma mocinha, até mesmo Don Carregno. Então, tiraria tudo a limpo.

Aguardei…

Por volta da meia-noite, Vinny e seus soldados deixaram o casarão e entraram nos carros. Um dos mafiosos desceu até o alto portão de entrada, abriu-o e aguardou até que os automóveis passassem, depois o fechou e, saltando para dentro do carro em movimento, embarcou.

Arrancando os pneus, eles desapareceram. Pareciam estar com pressa. Talvez estivessem indo jogar no mar algum outro enxerido linguarudo.

Após me certificar de que ninguém estava vigiando, saí do carro e corri até o muro do casarão; com bastante dificuldade, escalei a parede e alcancei o outro lado.

Na mansão de Carregno, as luzes se apagaram; estavam indo dormir. Parei diante da primeira janela, da biblioteca, luzes apagadas, o mesmo ambiente no qual me encontrei com Carregno pela primeira vez, bem perto da janela, o tabuleiro de xadrez.

Foi quando ouvi um barulho, como um acidente de carro. Vinha do portão da mansão. Avistei um caminhão, daqueles com escavadeira na frente para remover neve das ruas no inverno, vindo em direção à casa; havia derrubado o portão, e era secundado por outros cinco automóveis.

Eram chineses!

Eu nunca tive ilusões quanto a isto; a guerra entre chineses e italianos era iminente e tiraria muitas vidas, de ambos os lados, mas jamais pensei que a máfia chinesa seria capaz dum ato tão direto e brutal. Eles deviam estar realmente furiosos com o roubo do ópio e, com a informação que obtiveram de mim, sabiam exatamente onde encontrar o responsável.

Curiosamente, vieram no preciso momento em que Carregno parecia estar desprotegido; não fazia vinte minutos que o grupo de Vinny havia deixado o local e, se Carregno estivesse sendo escoltado agora por cinco homens de confiança, eles não bastariam para protegê-lo.

Os chineses estavam armados e furiosos. Metralharam a porta dianteira da casa e a invadiram. Acompanhei a movimentação no interior dela através da janela e vi quando eles fuzilaram o primeiro dos guarda-costas de Carregno, que estava armado apenas com um revólver.

Enquanto ouvia as rajadas de tiro, circundei a mansão e fui até os fundos, onde havia uma porta de vidro, que dava acesso da casa até o quintal, com piscina, churrasqueira e um jardim. Esta porta translúcida proporcionava uma visão melhor do massacre, já que permitia visualizar a sala de jantar e, através dum largo umbral, o átrio e a porta dianteira.

Com surpreendente estratégia militar, os chineses dominaram o cenário, postaram-se em posições favoráveis e aguardaram a reação dos italianos.

Outro dos guarda-costas desceu pela escada e, logo que foi avistado pelos chineses, foi metralhado, rolando escada abaixo, coberto de sangue.

Ouvi os gritos dos chineses:

— Calegno, desce!

Mas Carregno não descia.

Capítulo 25

“Se Maomé não vai à Montanha, a Montanha vem até Maomé”, não é o que diz o ditado?

Giuseppe Carregno e seus homens estavam em menor número e não sairiam de seu esconderijo para serem pegos pelos chineses; paradoxalmente, o chefão deveria estar contando com aqueles que justamente mais queriam vê-lo cair; se o impasse durasse por muito tempo, a polícia chegaria e os chineses seriam obrigados a recuar; a emboscada fracassaria; os italianos preparariam a desforra.

Mas na missão dos chineses não havia margem para fracasso. Só partiriam após obterem o objetivo, por isso, os soldados orientais começaram a subir a escada.

Ouvi o som de metralhadas, mais um dos capangas de Carregno devia ter perecido.

Sobre mim, havia uma varanda. Se eu chegasse até ela, a uns três metros acima, poderia ver as cenas finais (ou iniciais, já que depois disto, tudo prometia piorar muito). Pela parede, uma trepadeira, agarrada a uma grade de madeira, ascendia. Este seria o meio mais fácil para subir até a varanda.

Escalei, acompanhado por sons de tiros, vindos do interior da mansão.

Assim que cheguei lá em cima, a porta com veneziana da varanda foi aberta. Encolhi-me entre a porta e a parede; pela fresta da veneziana, distingui dois homens. Pelas vozes, eram Giuseppe e seu irmão, Salvatore.

Não falo italiano, se estivesse em Roma e fosse obrigado a pedir uma pizza, acho que até assim me enrolaria, mas havia uma herança consangüínea, desde meus primeiros anos de infância, ouvindo o nonno e a nonna conversando, internalizei algumas frases, algumas palavras; eu não saberia dizê-las, mas as identificava assim que as ouvia.

Desesperado, Giuseppe perguntou, em italiano, ao irmão:

— O que fazemos?

— Vou pular. Se estiver seguro, você vem.

— Como tudo isto foi acontecer, Salvatore?

— Vamos descobrir… assim que sairmos desta.

Salvatore passou as pernas por sobre o parapeito da varanda e se soltou. Os sapatos deles desabaram no chão, Salvatore gemeu.

— Venha, Giuseppe! Eles estão subindo!

Giuseppe repetiu os primeiros movimentos do irmão, foi então que percebi o ridículo do chefão da máfia, peito nu, vestindo apenas ceroulas. Quando ele estava se equilibrando sobre o parapeito, de dentro do quarto, alguém gritou:

— Palado aí!

Giuseppe Carregno voltou a cabeça para ver quem o chamava, porém, ao invés de olhar para o chinês, que provavelmente lhe apontava uma metralhadora, os olhos de Giuseppe encontraram os meus, semi-ocultos na penumbra. Uma expressão de incompreensão brotou na face do mafioso, eu quase podia ler seus pensamentos, algo como: “O que diabos você está fazendo aqui?”. A boca de Giuseppe se entreabriu, no limiar da pronúncia duma exclamação, duma interrogação, mas a posição delicada na qual ele se encontrava, dividido entre o olhar dum detetive, a mira duma metralhadora e os três metros entre a varanda e o chão, não lhe permitia profundas reflexões filosóficas. Giuseppe prosseguiu em seu movimento de salto, mas o grito reiterou:

— Palado, aí!

Giuseppe Carregno não obedeceu.

Saltou.

Porém, foi alvejado por vários disparos antes que desaparecesse da mira do chinês.

Um corpo tombou no quintal.

Lá embaixo, Salvatore berrou toda sua dor, diante do irmão baleado.

Capítulo 26

O grito de Salvatore foi abafado por tiros; o irmão de Giuseppe morria sobre ele.

Com o objetivo cumprido, os chineses, com a mesma celeridade com que chegaram, também desapareceram.

De sobre a varanda, fitei demoradamente os dois corpos — de Giuseppe e de Salvatore; dois dos mais importantes homens da cidade, mais temidos, agora mortos, num ataque tão absurdo, tão impraticável que sequer foi considerado pela guarda de Carregno.

Quem imaginaria que os chineses agiriam no interior do próprio refúgio do inimigo?

Não se poderia dizer que aos chinas faltava audácia. Eles tinham coragem, isto estava provado, capofamiglia e sotto capo abatidos diante de mim.

Eu havia perdido a viagem, jamais descobriria porque minha morte importava tanto a Giuseppe Carregno, antes que eu pudesse pegá-lo desprevenido, outros se adiantaram e o fizeram. Restava-me voltar para a casa da Rose e, desta vez era pra valer, sumir por um tempo.

Atravessei o quarto de Giuseppe, todo destruído pelos tiros das metralhadoras, e cheguei a um corredor; avistei a escada descendente, de lá, atingiria o átrio e a porta de saída. Em poucos minutos, estaria dirigindo, para os braços de Rose.

No entanto, pela porta entreaberta dum dos cômodos, avistei um porta-retratos. Nele, uma foto de Silvana, loura, batom vermelhíssimo, lábios entreabertos, como uma vagabunda pronta para sexo. Deslizei minha mão pela porta e ela se abriu. O quarto estava decorado para uma senhora, penteadeira, vestidos sobre a cama, armário aberto, pantufas escapando de sob a cama.

A mulher de Carregno havia morrido há uns dois anos, não lhe deixou filhos. Silvana já deveria ser concubina de Giuseppe neste tempo; após o luto, ele preparou um quarto para ela e a trouxe para casa. Provavelmente, isto deve ter irritado muita gente na família. “Que desrespeito!”, deviam sussurrar os mais velhos. Mas a posição de Carregno lhe bastava para dizer: “Que se foda!” e botar a concubina diante da vista de todos. Havia melhor coisa do que, à noite, com aquela ereçãozinha noturna, levantar-se e, a distância de dez passos, ter uma mulher pronta para lhe satisfazer?

Além de que Carregno deveria ter também outras mulheres pela cidade. Um homem como ele nunca se satisfaz com apenas uma; assim que Silvana se tornou uma espécie de “segunda esposa”, Carregno teria de partir à procura duma “segunda amante”, duma terceira, duma quarta.

Revirei as gavetas do criado-mudo. Será que uma mulher como Silvana mantinha um diário? Isto não é hábito de adolescentes de aparelhos, choramingando por causa dum primeiro amor? Encontrei frascos de remédio. Pelo que tudo indicava, Silvana devia estar dependente deles. Apanhei um dos frascos e guardei no bolso. Abri os armários, havia mais roupa ali do que eu e Rose tivemos juntos durante toda a vida — vestidos, sapatos, bolsas, chapéus — , tudo do bom e do melhor.

Por mera curiosidade, olhei embaixo da cama, apenas as pantufas.

Ergui um dos lados do colchão e, para minha surpresa, havia algo envolto num pano roxo. Desenrolei o objeto retangular. Descobri, então, que diários não eram só coisas de adolescentes apaixonadas. Ali estava o diário de Silvana.

Ouvi som de sirenes.

Quando se conta com a incompetência da polícia, com a demora deles em responder aos chamados, ela nos decepciona. Eu adoraria, aliás, eu precisava de mais tempo para vasculhar o quarto.

As viaturas se aproximavam. Enrolei novamente o diário e corri para fora do quarto, escada abaixo, em direção ao quintal. Saltei por sobre os corpos de Giuseppe e Salvatore e atravessei o jardim. Pulei o muro.

Tive de ir andando até a casa da Rose. O carro dela estava em frente à casa de Giuseppe, a polícia já deveria ter chegado, os habituais cordões de isolamento. Amanhã, eu voltaria e retiraria o automóvel, mas, agora, a curiosidade em saber o que havia no diário era muito maior.

Capítulo 27

Num banco de praça, sob a minguada luz dum poste, desenrodilhei o diário do pano. Ao abrí-lo, algo caiu dele, ouvi um som metálico entre meus pés. Abaixei-me e tateei no escuro. Uma chave, pequenina, atada a uma fita carmesim. Guardei no mesmo bolso onde já estavam os comprimidos de Silvana.

O diário da falecida eram anotações esporádicas, às vezes, com semanas de intervalo entre uma entrada e outra. Começava há uns três anos, terminando numa noite antes do dia da morte dela.

Havia uma tentação me forçando a lê-lo de trás para frente, mas, o mais óbvio, o mais sensato, seria começar pelo começo. Primeiro, as causas; depois, as conseqüências. Isto se o que eu estava procurando estivesse escrito ali.

Silvana contava suas misérias; ela não tinha talento para poetisa, mas, vez ou outra, surgia um soneto mal escrito. Sempre lamúrias, reclamando duma vida desgraçada, mescladas com o anseio de deixar a vida de mulher fácil (existe coisa mais difícil do que ser mulher de vida fácil?, pensei). Então, o nome de Carregno começa a aparecer no diário; primeiro como Don Carregno, o dono da boate na qual ela dançava, depois, como Gigi. Não é difícil deduzir que, dentre estes dois momentos, muito aconteceu.

A melancolia de Silvana desaparece, aos poucos, e há um vislumbre de que, talvez, a vida não fosse tão miserável quanto se pensava. A morte da mulher de Giuseppe é uma nova prova, para Silvana, de que sua vida está mudando; é convidada para morar na mansão, Giuseppe arruma-lhe um quarto, uma gorda mesada. Mas o preço que ela tem de pagar é grande, como marido, Giuseppe não é tão carinhoso como quando eram amantes. Silvana apanha e, se tentasse fugir, seria morta. Talvez a vida não fosse tão bela como ela chegou a pensar que poderia ser. Então, surge Vinny, o sobrinho do chefão.

É aí que a história começa a ficar realmente interessante.

E é aí que as peças começam a se encaixar.

Foi quando comecei a descobrir meu papel nesta armação, o modo como fui manipulado, e o perigo que eu representava.

Capítulo 28

O assassinato de Giuseppe e Salvatore foi manchete de primeira página dos jornais. Um escândalo!

Os de linha mais conservadora apresentavam uma retrospectiva da carreira criminosa dos Carregno e prognosticavam os rumos do crime organizado na cidade; já os tablóides preferiram enfatizar como tudo aconteceu, inclusive com fotos dos irmãos, um sobre o outro, embebidos em sangue.

Os corpos deles seriam velados na própria mansão na qual foram executados. Cheguei de manhã, horário no qual todos os figurões deveriam estar presentes, prestigiando a partida dos ilustres criminosos.

O carro de Rose ainda estava estacionado na frente do casarão, ao lado de carros luxuosos e limusines. O portão ainda não havia sido consertado, por isto, estava aberto todo o tempo. Subi pelo curto trajeto entre o portão e o alpendre da mansão. Soldados da máfia me observavam, desconfiados, mas não me barraram.

No vestíbulo, dois dos capangas me reconheceram, arregalaram os olhos e, instintivamente, enfiaram as mãos dentro dos casacos.

— Talharim e Polenta? — ri — Acho que eu era a última pessoa que vocês imaginavam estar aqui hoje, não é?

— Pelo jeito você não tem amor mesmo à vida, não é Ludovico? — Polenta me disse — É melhor dar meia-volta e sumir daqui, se não quiser que o matemos novamente.

Por entre os dois grandalhões, pude ver os esquifes, rodeado de pessoas. Apontei para primeira pessoa que reconheci:

— Ali não é o prefeito, Polenta? Ele adoraria ver dois mafiosos executando um eleitor… Se este motivo não for o bastante, quem sabe se eu gritar aqui, diante de todos, os motivos por que Giuseppe Carregno foi morto, eu lhes faça mudar de idéia.

Os dois se afastaram.

— Bons rapazes. Dêem-me licença, pois preciso bater um papinho com Vinny.

Uma mulher chorava, em desespero, sobre o caixão de Salvatore, a viúva, possivelmente. Vinny estava ao lado do de Giuseppe, usava óculos escuros. Aproximei-me e vislumbrei o semblante sereno do cadáver, algodões nas narinas. “Até que ele não era uma má pessoa”, pensei. Com tanto canalha por aí, Giuseppe Carregno era o menos pior.

Pus a mão sobre o ombro de Vinny, que se virou para receber as condolências. Quando me reconheceu, afastou-se, e voltou o olhar para capangas ao seu redor, pedindo ajuda.

— Calma, Vinny, tenho algo muito importante para lhe contar.

Um dos grandalhões, que ainda não me conhecia, segurou-me o braço.

— Acompanhe-me, por favor, senhor — ele tentou me puxar.

— Descobri quem matou Silvana, Vinny. Tenho certeza de que você achará minhas conclusões bastante interessantes.

Com um gesto, Vinny indicou ao guarda-costas que me soltasse.

— Vamos até meu escritório — Vinny foi na frente.

Capítulo 29

Quer dizer, o escritório que era de Giuseppe Carregno, agora era de Viccenzo Imbruglia. Que escalada em menos de quarenta e oito horas!

Entramos na biblioteca. Vinny acendeu um cigarro, contornou a escrivaninha e, com displicência, apontou uma cadeira para eu me sentar. Contrariando-o, andei até perto da janela, fitei o tabuleiro de xadrez, onde, dias antes, conversei com Don Carregno; as peças estavam mexidas, era um jogo começado.

— Quando conversei com seu tio pela primeira vez, Vinny, você se lembra o que ele me disse?

— Não, não lembro — Vinny respondeu, entediado.

— Ele disse que você era um grande jogador de xadrez. Não entendi na hora, mas agora acho que entendo. Seu tio tinha razão.

Vinny se ajeitou na cadeira, fumava.

— Eu não sei jogar xadrez, rapaz. Disse-o a seu tio. Mas sou um ótimo jogador de pôquer. Não preciso que me avisem quando estou com boas cartas nas mãos; e sei blefar! Ah, como sei! O problema do pôquer, meu amigo, é que o outro jogador nunca tem certeza se você está blefando ou com um puta jogo. Tem de pagar pra ver!

— Entendo… — Vinny retirou um talão de cheques do bolso — Quanto você quer?

— Lá vem você com dinheiro — fui em direção a ele — Não quero dinheiro, seu verme! Quero paz! Quero que vocês me esqueçam! Você e sua família de mafiosos de merda!

— Não estou, nem nunca estive, em posição para ajudá-lo, Vico. Foi você quem se enforcou. Agora arque com as conseqüências.

— Mentira! Mentira! — exaltei-me, mas logo me recompus — Quando tudo isto começou, vim aqui para investigar a morte duma amiga. Quando percebi, já estava enredado em algo muito maior do que imaginava. Fui cego, não vi que me manipulavam.

Vinny riu.

— Eu tinha certeza de que o responsável pela morte de Silvana havia sido seu tio. Não havia suspeito mais óbvio. Mas não tinha um motivo; não sabia a causa da morte. As provas que buscava me escapavam pelos dedos.

O mafiosinho fechou os olhos, tentava imaginar aonde eu queria chegar.

— Na noite em que seu tio foi assassinado, eu estava aqui, vi tudo.

Vinny deu um pulo na cadeira, finalmente, eu estava lhe falando algo interessante.

— Não seria novidade dizer-lhe que foram os chineses. A guerra já estava declarada antes disto; possivelmente, causada por mim, que falei o que não devia.

— É por isto que não posso deixá-lo em paz — Vinny resmungou — Tente entender minha parte.

Fingi que não o ouvi.

— Quando os assassinos foram embora, eu já estava quase indo também, mas passei diante do quarto da Silvana e resolvi dar uma olhada. E não é que dei sorte de encontrar um diário que ela escrevia?

Vinny arregalou os olhos.

— Um diário? — ele soluçou.

— Sim, no qual ela contava tudo. Inclusive, ela até menciona que vocês eram amantes.

O jovem engasgou, tossia, estava vermelho.

— Vê que eu tenho uma boa mão. Não lhe disse que sei jogar pôquer. Quer pagar pra ver o que mais eu tenho?

Capítulo 30

— Silvana o amava… — prossegui.

— Sim, ela amava tanta gente. Mas amava acima de tudo o poder, amava dinheiro — Vinny retrucou, olhar baixo.

— Mentira! É o que você pensava dela, mas não é o que ela sentia. Assim que conheceu você, Silvana se apaixonou. Foi por causa do amor que ela agiu como agiu; roubando documentos de Giuseppe Carregno e entregando-os a você; articulando tudo para que você fosse o sucessor do capofamiglia. Mas ela percebeu que não passava duma marionete em suas mãos, uma arma contra o homem que a protegia. Ela podia amar você, mas, antes de tudo, ela devia lealdade a Carregno, foi ele quem a tirou da lama.

— Silvana nunca saiu da lama. Deixou a vida de puta e entrou na vida de amante. Não vejo nenhuma evolução nesta trajetória — a complacência de Vinny estava desaparecendo — Ela era uma vagabunda, vestindo couro, ou vestindo Dior.

— Ela ameaçou contar todas suas tramóias a Carregno, não foi? — perguntei, mordaz. Já tinha a resposta, queria apenas que Vinny confirmasse.

— Sim…

— E por isto, você a matou — concluí.

Vinny se levantou, esmurrou a mesa e enfiou o dedo na minha cara.

— Prove, seu desgraçado! Onde estão as provas?

— Esta era a parte mais difícil, Vinny, eu sei. Eu já tinha um novo suspeito: você; tinha um motivo: a amante decidida a contar para o chefão da máfia que um borra-botas o estava sabotando; mas faltava a arma do crime, não é?

Vinny suava.

— Eu vi o cadáver de Silvana, estirado na cama, comprimidos sobre o criado-mudo. Pensei, a princípio, que ela poderia ter tomado uma sobredose; a necropsia confirmou esta hipótese. Cogitaram suicídio, ou abuso; um acidente, uma fatalidade, foi o que disseram. Mas quando Silvana me procurou, ela estava desesperada. Alguém que teme a morte não comete suicídio. Ela tinha medo que alguém fizesse algo contra ela. Pensei que fosse Carregno, mas era de você que ela tinha medo. Só que você, rapazinho, é mais ardiloso do que parece. Não precisou apertar o gatilho, nem ninguém que fosse lá, fizesse isto para você, e depois, cagando nas calças, corresse para contar a Carregno que o sobrinho o havia incitado a matar a concubina. Quantas pontas soltas, não?

— E? — Vinny me desafiava.

— E que maneira mais discreta do matar alguém com remédios? No dia em que seu tio morreu, eu apanhei uns frascos do antidepressivo que ela tomava. Ao chegar em casa, reparei que havia alguns comprimidos com formato ligeiramente diferente dos demais; um diferente para cada dez normais. Algo que não seria percebido, se não se prestasse atenção. Esmaguei um deles, misturei com miolo de pão e joguei na varanda. Dezenas de pombas se juntaram para o banquete. E não é, uma a uma, elas morreram minutos depois de comerem o veneno?

— Qualquer um poderia ter misturado o veneno com o remédio. Isto não quer dizer nada — Vinny se defendeu.

— Talvez, mas você tinha o motivo, você tinha o meio para realizar o intento, e tinha a autoridade, ao falar em nome do seu tio, para aterrorizar o legista, suborná-lo, e obrigá-lo a relatar no laudo haver sido uma sobredosagem. E mais do que isto: quando você me viu aqui no escritório do seu tio, uma idéia lhe ocorreu: “Por que não usar este trouxa para realizar meu objetivo?”

Cruzando os braços, Vinny aguardava o restante da minha explanação.

— Você já sabia que eu estava atrás do assassino da Silvana. Seus homens tiraram minha foto no cemitério. Você sabia que um carregamento de ópio estava para chegar, para ser revendido pela máfia chinesa, e que seu tio, primeiro cogitou a possibilidade de roubar o carregamento, mas, depois, achou a operação muito arriscada. Então, sem a autorização ou conhecimento de Giuseppe Carregno, você me contatou, instruiu-me a investigar a máfia chinesa, sendo que você já conhecia, de antemão, a data do carregamento; foi tudo uma armação, para que eu, se fosse pego pelos chineses, contasse quem havia me enviado — a máfia italiana — e, mesmo se eu não fosse pego, não haveria dúvidas de que uma guerra entre as máfias havia sido declarada. Fui um peão no seu jogo. Por isto, você me queria morto. Pois, se eu continuasse investigando e descobrisse toda esta história, acabaria chegando em Giuseppe, questionando-: “Por que me usou para seus planos? Os chineses tentaram me matar!”; então, Giuseppe não entenderia nada, nunca havia me contratado, facilmente acabaria em você, e seria seu pescoço que iria para a forca.

— Eu não o queria morto, Vico. Eu lhe disse que era para você ir embora depois de cumprida a investigação. Mas é um enxerido, por isto, terá o fim dos enxeridos.

Vinny pôs a mão na gaveta e retirou uma pistola. Depois, encaixou o silenciador.

Apontando a arma para mim, disse:

— Que tal pormos um fim de verdade nesta história?

Capítulo 31

— Concordo com você — eu disse — Está na hora de pormos um ponto final. Lembra-se quando você me chamou de arrogante?

— Lembro.

— Então, você tinha razão, mas eu aprendo com meus erros. Você está disposto a me matar. Tudo bem, vai em frente! Puxe o gatilho e tente enterrar seus problemas. Porém, amanhã, quatro cartas serão enviadas. A primeira, endereçada ao Departamento de Crimes Organizados, com fotos demonstrando seu envolvimento com o roubo de carga e com o massacre no porto; a segunda, para a Divisão de Homicídios, com cópias do diário de Silvana e com os comprimidos usados para assassiná-la; a terceira, para “A Gazeta”, com toda a história do que ocorreu nestes últimos dias…

Calei-me; a mão de Vinny começou a tremer.

— E a quarta carta? — perguntou.

— A quarta? Talvez esta seja a que mais lhe interesse. Porque as três primeiras não mudarão sua vida, sabemos muito bem quão corrupta é a polícia, e que uma bolada na mão dum inspetor influente é capaz de fazer muita coisa; bem, os jornais falam muito e, no dia seguinte, as pessoas nem se importam mais com as notícias do dia anterior. Mas a quarta carta é endereçada a Francesco Zambini.

VInny engoliu a seco.

— Acho que li na “Tribuna”, não tenho certeza, mas li que, na semana que vem, haverá uma votação entre os chefões da região Leste para a escolha do sucessor de Giuseppe Carregno. Estou errado?

Vinny permaneceu em silêncio, havia baixado a arma.

— Parece que você é o grande favorito de Zambini, cuja opinião é a mais importante nesta reunião. Agora, imagine só se ele recebe uma carta, na qual ele descobre que o favorito dele é o próprio responsável pela morte do primo Carregno! Seria uma comoção. Você, Vinny, não só não seria nomeado o novo capofamiglia desta cidade, como Zambini faria questão de arrancar seu coração com as próprias mãos. Um traidor como você seria tratado como um verme, aliás, como o verme que você é! Então, Vinny, se você quiser puxar o gatilho, faça-o agora!

O jovem deixou a cabeça cair, respirou fundo, pensava.

— Você já entendeu o recado… Como eu disse, você pode jogar bem xadrez, mas eu tenho um royal straight flush nas mãos. Eu ganho, você perde.

Virei-me e me preparei para deixar a sala. Quando abri a porta da biblioteca e vi os esquifes de Giuseppe e Salvatore, não pude deixar de comentar com Vinny:

— Seu tio era mais homem, e mais digno, do que você jamais será. Nunca se esqueça disto.

Até imagino o que você está pensando: teria sido muito melhor se eu houvesse entrado naquele escritório, tirado meu revólver e ter disparado na cara do filho-da-mãe. Se você não pensou isto, eu pensei. Descobrir ter sido manipulado, jogado de um lado ao outro, e quase ter morrido duas vezes faz isto com as pessoas, cria um certo desejo de vingança.

Eu adoraria varrer Vinny do mapa. Mas de que me adiantaria? Outro mafioso assumiria o lugar dele no comando e, em retaliação, poria minha cabeça a prêmio. Onde quer que houvesse uma pizzaria, um maldito carcamano, haveria alguém disposto a me dar um tiro pelas costas. Em lugar algum do mundo eu estaria seguro. Era melhor assim, eu continuava vivo, e Vinny estava em débito comigo. O assassino de Silvana não seria punido, eu não cumpriria minha promessa a ela, mas assim é a vida; nem tudo que queremos conseguimos. Desconfie de qualquer um que lhe disser o contrário.

Mas faltava cumprir um último desejo de Silvana.

Capítulo 32

No dia anterior, eu tive de juntar todas as peças.

Primeiro, terminei de ler o diário de Silvana, que me dava todas as pistas mais importantes, o envolvimento dela com Vinny, como ela o ajudou a sabotar as operações de Giuseppe Carregno e como, depois, arrependida, ela decidiu que contaria tudo a Don Carregno. Não foi difícil deduzir que quem a matara havia sido Vinny, principalmente porque, quando conversei com Carregno, ele parecia claramente abalado com a morte da amante. Realizei, então, a experiência com os comprimidos, matando uma dúzia de pombas inocentes.

Mas, além disto tudo, havia aquela pequena chave, dentro do diário de Silvana, e também aquela caderneta cheia de números que Silvana deixou comigo, na mesma noite em que ela morreu. Relendo agora esta caderneta, na qual havia duas colunas de números, sobre a primeira um C, sobre a segunda um I, algumas coisas começaram a fazer sentido.

Naquela caderneta, Silvana estava anotando o dinheiro que recebia destas duas fontes, o C era de Giuseppe Carregno, o I, de Viccenzo Imbruglia. Para disfarçar, Silvana não indicava nenhum cifrão, nem centavos, eram apenas números, de dois, três, às vezes quatro dígitos. Fiz uma conta superficial, se ela houvesse guardado tudo o que estava contabilizado ali, Silvana deveria ter umas treze ou quatorze mil pratas. Aquela chave podia ser para abrir o cofre ou armário no qual o dinheiro estava. Imaginei que se Silvana havia deixado comigo a caderneta, mas não a chave, isto ocorreu por mero descuido. Ela deveria ter deixado às pressas a mansão de Carregno, e acabou se esquecendo do mais importante. Talvez, até houvesse pensado que a caderneta fosse o diário, já que ambos tinham o mesmo tamanho e eram da mesma cor.

Na última página do diário, grudado com uma fita adesiva, havia um cartão do “Banco Nacional”. Atrás do cartão, um número, 124.

Fui encaminhado ao subsolo pelo atendente. Ele me indicou a localização do cofre cento e vinte e quatro, e depois me mostrou uma cabine onde eu poderia consultar o conteúdo do cofre.

Encaixei a chave de Silvana e a girei no tambor. Dentro do cofre, uma valise. Levei-a até a cabine e abri o zíper, revelando maços de dinheiro e um envelope. Retirei a carta que havia nele.

Papai,

Desculpe-me por todos estes anos que eu o envergonhei. Não direi que você estava certo, porque cada um tem de seguir seu caminho na vida, e este foi o meu.

Juntei algum dinheiro neste tempo, que agora é seu, como paga pelo que fiz.

Tudo que posso fazer é pedir desculpas, mil vezes.

Te amo,

Sil

Fechei o cofre e levei a valise para a casa de Rose.

Foi quando comecei a lutar contra minha própria consciência, ficar ou não ficar com o dinheiro? Havia dezesseis mil e quinhentas pratas naquela mala, somando com o dinheiro que eu havia recebido pelo serviço à máfia, dava para viver bem, sem trabalhar, uns cinco anos. Eu e Rose nos mudaríamos para a praia, bebendo martinis e fazendo sexo o dia inteiro.

Porém, se eu não havia conseguido prender o assassino de Silvana, ao menos alguma coisa eu tinha de fazer pela memória dela.

Após sair do velório de Carregno, fui direto para a rodoviária, Rose me aguardava com a valise, e pegamos um ônibus para o interior, cinco horas de viagem.

No endereço indicado no envelope, encontramos um senhor, na casa dos sessenta anos, simplório, dentes podres, movendo-se com um andador.

— Silvana nos pediu para falar com o senhor — Rose disse, ela era melhor em relacionamentos interpessoais do que eu.

— Se é para falar daquela vadia, perderam seu tempo — o velho, voz de quem fumou quatro quintos de sua existência, resmungou.

— Não viemos para falar dela — eu o interrompi — Trouxemos um presente dela pra você.

A atitude do velho mudou.

— Presente? Até que enfim aquela ingrata se lembrou de mim.

Rose estendeu-lhe a valise, com dez mil paus dentro.

— O que é isto? — o velho perguntou.

— Não sei — eu disse — Veja por si próprio. Está na hora de ir — mas meu lado sádico me forçou a fazer mais uma pergunta — Tem alguma mensagem para Silvana? — Rose me repreendia com o olhar.

O velho pigarreou.

— Fale pra ela que Deus vai julgar os pegados dela no Dia do Julgamento.

— Direi isto a ela.

Que velho estúpido! Esta sua última frase fez com que eu me arrependesse de ter ido até lá. Rose havia me atormentado pelo fato de eu ter subtraído seis mil e quinhentos.

— São negócios, minha querida. Se Silvana estivesse viva, ela também teria de pagar.

Mas agora, conhecendo o canalha hipócrita do pai da morta, refleti que deveria ter ficado com tudo. Bem, a merda já estava feita.

Eu e Rose estávamos saindo de viagem. Nas manchetes do jornal não se falava de outra coisa, Vinny era o novo cabeça da máfia italiana na cidade e, como era de se esperar, havia feito um acordo com a máfia chinesa: os chinas ficariam com o tráfico de drogas e contrabandos, os carcamanos com extorsão, lavagem de dinheiro, roubo de cargas, e assim por diante, ou seja, a tão esperada guerra foi uma armação, nada ocorreu.

Mas, antes de irmos, resolvi dar uma última passada no escritório, ver se eu não havia me esquecido de nada.

Na porta do escritório, perto da maçaneta, estava um bilhete, escrito com batom.

Vico,

Preciso de sua ajuda urgente.

Ligue para mim o mais rápido possível.

Heather

Seguido do número de telefone dela.

Heather era uma dos meus muitos amores do passado, linda, ruiva e dona de pernas estonteantes.

Mas eu estava saindo de férias! Por causa dum pedido de ajuda como este que eu havia me metido em toda esta confusão, Rose estava me esperando lá embaixo, dentro do carro. Esqueça, Vico, esqueça!, eu me repetia.

Porém, desobedecendo a mim mesmo, desci e fiz sinal para que Rose esperasse dentro do carro. Caminhei até uma cabine telefônica, coloquei uma moeda e disquei o número. O telefone estava tocando.

— Por favor, não atenda! Não atenda! — eu sussurrava. Estava ligando apenas para me livrar deste peso; da última vez que ignorei um pedido de ajuda, alguém morreu.

Mas Heather atendeu.

— Que bom que você ligou, Vico! Venha até minha casa, por favor.

Rose acenava para mim do carro, indicando que era para eu me apressar. Estrangulado pela decisão, pensando em que desculpa eu inventaria para convencer Rose a adiarmos nossas férias, respondi.

— Já estou indo.

A cagada estava completa.

Definitivamente, alguns imbecis nunca aprendem.

Story by henrybugalho (Henry Bugalho) · April 2009–April 2009 · Originally published on novlet.com

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