Raphael da Silva Coelho
Economia da Informação
4 min readJun 7, 2021

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O Pantanal e o pântano

O ex-técnico do Cuiabá, Alberto Valentim

Era uma vez um clube de futebol que estava no auge de sua história, estreando no principal campeonato de seu país, no primeiro jogo do certame. O resultado, embora não o ideal ou o esperado por muitos, conseguiu ser satisfatório: um empate. Contudo, após o décimo jogo no comando da equipe, sem ter perdido nenhum deles, o treinador foi demitido, por se envolver com a esposa de um dirigente da equipe. Essa anedota é quase toda verídica: o clube é o Cuiabá, a partida em questão aconteceu no último sábado, o adversário era o Juventude, e o técnico era Alberto Valentim; o motivo da demissão, entretanto, é falso. Ainda assim, espalhou-se pela internet, sendo assumido como verdade.

Esta situação bem pode ilustrar como funcionam as fake news, tópico central de um artigo produzido em 2017 por Hunt Allcott e Matthew Gentzkow, de nome “Social Media and Fake News in the 2016 Election” (“Mídia social e Notícias Falsas na eleição de 2016”, em tradução livre), que analisa como esse expediente esteve presente nas eleições estadunidenses de cinco anos atrás. Para isso, vemos desenhado um modelo econômico para explicar as fake news: mercado e forças que operam como estimulantes ou adversas para sua criação e divulgação. Em segundo, a partir desse modelo é feito uma análise empírica das notícias falsas no penúltimo processo eleitoral ianque.

Inicialmente, deixemos claro: aqui será utilizada a seguinte definição dada no artigo, na página 213: “Fake news são notícias verificáveis falsas, feitas intencionalmente e com capacidade para confundir leitores” [tradução livre]. Portanto, excluímos, tal qual é feito no artigo, tanto notícias que se mostram inverídicas por erros acidentais quanto teorias da conspiração (estas por seu caráter não falseável), assim como posts e notas sarcásticas e/ou cômicas tiradas de contexto, visto que, nessas condições, também se pode produzir — e de fato é produzida — desinformação.

Diversas conclusões podem ser tomadas como resultado do artigo. Uma delas é a de que não foi possível provar a efetividade e a magnitude do impacto de fake news nas eleições de 2016; outra dá conta de que medir a real exposição a elas por parte dos eleitores era difícil, uma vez que esse teste dependia de memória, a qual se mostrava falha a partir de uma experiência envolvendo “falsas notícias falsas”. Entretanto, talvez uma terceira conclusão seja, neste momento, mais importante: a estrutura da internet, em particular as redes sociais, favorece a proliferação de fake news, por sua descentralização e seu dinamismo.

Como já comentado, grande atenção foi dada às eleições estadunidenses, como o estudo empírico e a fonte de dados que permitiu construir o modelo e derivar suas forças e causas. No entanto, as inferências sobre o funcionamento desse mercado e suas implicações na esfera política não são válidas para um só país, tendo em vista que, no mundo digital, distâncias físicas e fronteiras nacionais têm seu efeito reduzido. A descentralização da internet e redes sociais implica que o custo de ser o autor de uma notícia e obter grande alcance é muito menor do que por outras mídias, como televisão, rádio ou impressos (ainda que estes também sejam, há muito, fonte de notícias falsas, como podemos atestar com o histórico do jornal Notícias Populares e telejornalísticos policialescos atuais — são exemplos o Alerta Nacional, de Sikêra Jr. na RedeTV! e a fase do Cidade Alerta, da RecordTV, sob comando de Luiz Bacci). Dinamismo, termo não utilizado no artigo, por sua vez, se refere à velocidade de propagação das informações nas redes.

Esses dois fatores estão na base da estrutura que diferencia o mercado digital de notícias do tradicional, podendo servir como um terreno fertio para a proliferação de fake news. Incentivos prévios para a verificação rigorosa de dados, como a construção de uma reputação são erodidas, com sites novos podendo ganhar, em pouco tempo, muita atenção e, consequentemente, lucro, independente da qualidade de suas informações. Esse efeito gera, pela seleção adversa, prejuízos aos veículos de mídia que gastam recursos com a verificação e análise do mundo” real” — o que, ao extremo, pode torná-los cada vez mais inviável.

Com isso, os efeitos em todos os setores que dependem de um alto grau informacional serão de perdas coletivas, com os atores realizando planos de ação que não correspondem à situação real e presente. Uma dessas esferas, amplamente abordada no artigo, é a de eleições. Entretanto, olhando para fora do caso estadunidense, há tendências para todos que são conectados pelas redes. Tanto os “ofertantes” (candidatos) quanto os “consumidores” (eleitores) demandam informação sobre seu mercado, precisando dela para fazerem suas ações desejadas, desde abordar um tópico em voga, no caso daqueles, até descobrir qual candidato o representa melhor, sob a ótica destes. Em um cenário altamente descentralizado e dinâmico que se forma em torno das redes sociais, talvez tenhamos que fake news são a norma e não a exceção (ou, pelo menos, sejam percebidas assim). Desta forma, na tentativa de evitar esse processo e reverter os atuais incentivos de mercado, uma preocupação do artigo que deveria ser mais universal é: “quem será o árbitro da verdade?”

Pode-se, seguindo essa ampliação, retornar ao exemplo inicial deste texto: não é exclusividade dos eleitores estadunidenses em um ano específico o lidar com notícias falsas. É-o geral, abarcando campos muito, em tese, distantes deste, como o do futebol. Resta, em alguma medida, a nós, viver num espírito de Erasmo Carlos em uma de suas músicas: a expectativa por “pegarmos a mentira” e superarmos-na.

José Antunes, Raphael da Silva Coelho

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