Jovens socioeconomicamente desfavorecidos e ingresso no ensino superior: relação entre mobilidade intergeracional e aspirações

Luana Fraga
Economistas no Debate
6 min readJul 20, 2021

No Brasil, a cada 100 indivíduos com idade entre 25 e 65 anos, filhos de pais que não estudaram, apenas 4 concluíram o ensino superior ou mais anos de estudo. Se considerados os filhos, cujos pais têm ensino fundamental incompleto, esse número sobe para 12 e se o pai tem fundamental completo, para 20. Estes dados, obtidos através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2014, evidenciam a dificuldade de filhos de pais, sem ou com pouca escolaridade, concluírem o ensino superior ou mais anos de estudo.

Neste campo de pesquisa, denominado de mobilidade intergeracional de educação[1], argumenta-se que entre as dificuldades para que os filhos de pais com baixa escolaridade alcancem níveis mais altos de ensino que seus pais, estão a carência de capitais cultural, social e financeiro. No entanto, uma questão que muitas vezes não é colocada em evidência (por fazer parte, de certa forma, do capital social), mas que tem relação com a mobilidade, consiste no processo de construção das aspirações ou “janela de aspirações” de um indivíduo. As aspirações são desejos ou objetivos futuros definidos pelo indivíduo e são moldadas por diferentes grupos de referência (membros da família, colegas, vizinhos e outros com quem se interage regularmente, como professores), cuja composição é influenciada pela condição socioeconômica do indivíduo, bem como pelas hierarquias e normas sociais. Assim, a janela de aspirações de crianças que vivem em situação de pobreza tende a ser mais estreita em função, principalmente, do ambiente social em que estão inseridas.

Dois fatores principais que estão inter-relacionados tendem a estreitar a janela de aspirações, são eles: as condições econômicas do agregado familiar em que a criança cresce e, em relação a estas, o ambiente social fora de casa. As aspirações dos pais, que podem ser influenciadas pelo ambiente social, influenciam as aspirações dos filhos. As aspirações dos pais também tendem a ser menores entre as famílias mais pobres porque os indivíduos podem ter percepções menos favoráveis ​​de mobilidade ou acesso a menos exemplos positivos.

Outro ponto em relação as aspirações é que para muitos jovens de contextos desfavorecidos, é saliente a perda de aspirações durante seus anos de formação, em vez da inexistência de aspirações. De acordo com essa teoria, dois indivíduos podem compartilhar as mesmas crenças inicialmente e colocar a mesma quantidade de esforço, mas, com o tempo, aqueles que se sentem “azarados” podem ficar desanimados e fornecerem menos esforço para alcançar um determinado objetivo, neste caso educacional. Além disso, se definida a lacuna de aspirações como a diferença entre o padrão de vida atual e o padrão de vida que é o foco das aspirações, tem-se que enquanto uma pequena lacuna de aspirações fornece pouco incentivo para buscar alcançar uma situação melhor, uma lacuna de aspirações muito grande, pode também fornecer poucos incentivos, dado que os investimentos potenciais podem ser insuficientes para preencher a lacuna, levando a frustração.

Mas diante dessas informações, cabe também evidenciar algumas formas de ampliar a “janela de aspirações” das crianças e adolescentes. Uma delas é expor as crianças e os pais a informações, experiências e modelos de comportamento que influenciam a formação de aspirações. Por conveniência, tais intervenções políticas podem ser agrupadas em duas categorias: (1) intervenções destinadas a fornecer informações e (2) intervenções destinadas a alterar o conjunto de indivíduos que as crianças e os pais encontram.

No entanto, essas duas alternativas exigem maior apoio aos jovens de origens socialmente desfavorecidas, para criação e manutenção de suas aspirações, incluindo melhores oportunidades em educação e empregos, conselhos de carreira, mentoria e treinamento. Além disso, fornecer apoio informado em vários estágios de suas vidas e oportunidades para realizar suas ambições, incluindo escolas e professores que prestam mais atenção à experiência de vida de cada um e melhores conselhos de carreira, pode manter as aspirações no caminho certo.

Nessa perspectiva, estudos no campo de mobilidade intergeracional de educação (ou desempenho educacional) e aspirações foram realizados em alguns países, como mostrado nos exemplos a seguir:

México: descobriu-se que jovens pobres de 12 a 22 anos com maiores aspirações de mobilidade ficam mais tempo na escola, exibem um melhor comportamento de saúde e se envolvem menos em comportamentos autodestrutivos[2].

Andhra Pradesh (Índia): altas aspirações de jovens de 12 anos estão positivamente associados à quantidade de tempo dedicado à educação aos resultados educacionais aos 19 anos. Além disso, as mães em famílias mais ricas e com maior nível de escolaridade, têm maiores aspirações educacionais para seus filhos e investem mais na educação deles[3].

Etiópia: indivíduos mais ricos têm maiores aspirações de renda para si próprios e maiores aspirações educacionais para seus filhos. No estudo, o experimento de campo evidenciou que apresentar informações por meio de documentários com histórias de sucesso de como escapar da pobreza tem um impacto positivo nas aspirações, mesmo entre aquelas pessoas que não estavam no grupo de tratamento, mas cujos colegas viram os documentários[4].

República Dominicana: identificou-se que informações sobre o retorno da educação a alunos no final da escolaridade obrigatória, melhora significativamente suas percepções sobre o retorno da escolaridade em relação a alunos semelhantes em um grupo de controle[5].

Índia, Peru e Vietnã: foi analisado, dentre outros aspectos, a relação entre as aspirações educacionais de crianças de 11 e 12 anos e o seu ingresso no ensino superior aos 19 anos. Para mensurar as aspirações educacionais foi feito o seguinte questionamento às crianças: “Imagine que você não tenha restrições e pudesse estudar o quanto quisesse, ou voltar para a escola se já saiu. Que nível de educação formal você gostaria de concluir? Uma pergunta análoga foi feita ao cuidador (geralmente, a mãe): ‘‘Idealmente, qual nível de ensino você gostaria que seu filho(a) concluísse? Os resultados evidenciaram que as aspirações foram invariavelmente positivas e, nos três países analisados, as aspirações de altos níveis de escolaridade relatadas pelas crianças e seus pais, foram um preditor significativo da frequência do ensino superior aos 19 anos.[6]

Para finalizar, cabe salientar que embora existam evidências sobre o potencial de tais intervenções para melhorar os resultados educacionais e a mobilidade, elas não são suficientemente robustas para fornecer respostas definitivas sobre os impactos de tais intervenções. Portanto, é necessário construir um corpo sistemático de evidências por meio de experimentação e avaliação.

*Esse texto foi produzido a partir do conteúdo da publicação do Banco Mundial, denominada “Fair Progress? Economic Mobility across Generations around the World” desenvolvida por Narayan et al. (2018).

Referências

Galab, Shaik, Uma Vennam, Anuradha Komanduri, Liza Benny, and Andreas Georgiadis. 2013. “The Impact of Parental Aspirations on Private School Enrolment: Evidence from Andhra Pradesh, India.” Young Lives Working Paper 97, Oxford Department of International Development (ODID), University of Oxford, Oxford, UK.

Jensen, Robert. 2010. “The (Perceived) Returns to Education and the Demand for Schooling.” Quarterly Journal of Economics 125 (2): 515–48.

Narayan, Ambar, Roy Van der Weide, Alexandru Cojocaru,Christoph Lakner, Silvia Redaelli, Daniel Gerszon Mahler, Rakesh Gupta N. Ramasubbaiah, and Stefan Thewissen. 2018. Fair Progress? Economic Mobility across Generations around the World. Washington, DC: World Bank. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO.

Ritterman Weintraub, Miranda Lucia, Lia C. H. Fernald, Nancy Adler, Stefano Bertozzi, and S. Leonard Syme. 2015. “Perceptions of Social Mobility: Development of a New Psychosocial Indicator Associated with Adolescent Risk Behaviors.” Frontiers in Public Health 3: 62.

SÁNCHEZ, Alan; SINGH, Abhijeet. Accessing higher education in developing countries: Panel data analysis from India, Peru, and Vietnam. World Development, v. 109, p. 261–278, 2018.

Tanguy, Bernard, Stefan Dercon, Kate Orkin, and Alemayehu Taffesse. 2014. “The Future in Mind: Aspirations and Forward-Looking Behaviour in Rural Ethiopia.” CEPR Discussion Paper DP10224. Centre for Economic Policy Research, London, UK.

[1] Situação em que o filho alcança um nível de escolaridade diferente do pai, da mãe, ou de ambos. Pode ser ascendente, quando o filho estudou mais anos que seus pais, ou descendente, quando o filho estudou menos anos do que seus pais. Há ainda a situação de imobilidade intergeracional de educação, quando o filho e pais tem o mesmo nível de ensino (ou anos de estudo).

[2] Ritterman Weintraub et al. (2015)

[3] Galab et al. (2013)

[4] Tanguy et al. (2014)

[5] Jensen (2010)

[6] Sánchez & Singh (2018)

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Luana Fraga
Economistas no Debate

Doutora em Economia do Desenvolvimento. Pesquisadora do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social.