Saneamento não é básico, é indispensável

Motivos para um maior engajamento, de fato, não faltam. Seja sob o ponto de saúde ou econômico.

Tatiane Pelegrini
Economistas no Debate
4 min readOct 28, 2020

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O brasileiro precisa ser estudado, de acordo com o presidente Jair Bolsonaro: “Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.” Na realidade, pular, mergulhar ou, conviver com um saneamento básico deficitário tem gerado efeitos diretos na saúde e na economia brasileira. Demais autoridades, que não o presidente, tem buscado modificar a situação.

Em sua definição, o saneamento básico é um conjunto de serviços que compreendem distribuição de água potável, coleta e tratamento de esgoto, drenagem urbana e coleta de resíduos sólidos. No ano de 2020 o Senado aprovou um novo marco legal do saneamento básico no Brasil (alterando a Lei nº 11.445 de 2007) com a meta de atender 99% da população com água potável e 90% da população com coleta e tratamento de esgoto até dezembro de 2033. A fim de cumprir esses propósitos foi anunciado um investimento superior a R$ 700 bilhões ao longo dos próximos 14 anos.

Embora os recursos e o tempo apontem, em um primeiro momento, que seja possível alcançar os objetivos supracitados, os esforços deverão ser redobrados, uma vez que os números atuais demonstram o atraso do Brasil em relação ao saneamento básico. Antes de retratarmos a realidade, é importante estabelecer a relação entre o acesso à água e ao saneamento e melhores condições de vida. Desde a antiguidade — tente lembrar dos famosos aquedutos e banhos públicos romanos — essa tem sido uma preocupação, tanto que o Tratado de Hipócrates “Ares, Águas e Lugares” apresenta a conexão entre o ambiente e a saúde.

Atualmente, o acesso à água potável e serviços de saneamento básico foi incluído como um dos Objetivos do Milênio das Nações Unidas. Nesse sentido, essa pauta, além de histórica, é importante para garantir a saúde da população. O consumo de água imprópria causa doenças graves como leptospirose e diarreias infecciosas, bem como a morte. Quem são os mais afetados? Crianças entre um mês e cinco anos. Sim, prezado leitor, a falta de saneamento está entre as principais causas de morte infantil no mundo, e no Brasil não seria diferente. Dados de 2015 apontam que no país, a taxa de mortalidade de crianças com até 5 anos de idade foi de 16,4 mortes por 1.000 nascidos vivos.

Durante a pandemia de Covid-19, muito se tem questionado sobre saúde e economia. Nesse contexto, o saneamento básico, ou falta dele, escancara essa relação a céu aberto, literalmente. De acordo com o relatório “Benefícios econômicos e sociais da expansão do saneamento no Brasil”, o aumento de infecções força as pessoas a se afastarem de suas funções para cuidados médicos, financiados em grande parte pela sociedade. A produtividade do trabalho é afetada pela falta de saneamento, bem como o desempenho dos estudantes. Estima-se que crianças e jovens residentes em áreas sem acesso aos serviços de coleta de esgoto tenham, em média, um atraso escolar 1,4% superior ao daqueles que provenientes de locais com coleta de esgoto.

No total, ocorrem 15 mil mortes e 350 mil internações por ano em decorrência da falta de saneamento básico no Brasil, tragédias anunciadas e, de certa forma, negligenciadas. Apenas em gastos com internações por doenças de veiculação hídrica no SUS, foram gastos em 2018 R$ 90 milhões com internações. De acordo com dados do Ranking do Saneamento Básico 2019, que contempla as 100 maiores cidades brasileiras (corresponde a 40% da população), o país possui 35 milhões de pessoas sem acesso à água tratada, 100 milhões sem coleta de esgotos (47,6% da população) e somente 46% dos esgotos produzidos no país são tratados.

Assim sendo, é possível denotar que o novo marco legal do saneamento básico tem voltado a figurar nas listas de prioridades governamentais de modo totalmente justificado. Embora os investimentos anunciados sejam consideráveis, Smiderle et al. (2020) apontam que, na prática, eles deverão encontrar um ambiente de insegurança econômica e jurídica, além de dificuldade administrativa dos municípios em gerir esses recursos. Gomes (2019) ressalta que a evolução do saneamento básico no Brasil apenas será efetiva quando ocorrer uma maior cooperação entre sociedade-estado.

Motivos para um maior engajamento, de fato, não faltam. Seja sob o ponto de saúde ou econômico, a universalização do saneamento é indispensável para a construção de um ambiente mais desenvolvido. Temos avançado, de acordo com o Instituto Trata Brasil, mas o caminho a percorrer é longo: entre 2004 e 2016 a parcela da população brasileira com acesso aos serviços de distribuição de água tratada passou de 80,6% em para 83,3%. No mesmo período, a parcela da população com acesso aos serviços de coleta de esgoto passou de 38,4% para 51,92% — sendo este o maior gargalo no saneamento básico.

O novo marco legal do saneamento básico no Brasil seria, nesse sentido, um grande projeto, talvez um dos mais importantes da história, de desenvolvimento socioeconômico. Suas metas ambiciosas, no entanto, levantam dúvidas se estas serão exequíveis em 14 anos, uma vez que atravessarão mandatos e demais demandas e contratempos. Vamos aguardar o “desaguar” dos próximos capítulos…

Referências

INSTITUTO TRATA BRASIL. Benefícios econômicos e sociais da expansão do saneamento no Brasil. São Paulo, 2017.

GOMES, Francine Delfino. Aspectos do saneamento básico: Brasil e Uruguai. Revista Ciências Jurídicas e Sociais-UNG-Ser, v. 9, n. 1, p. 53–58, 2019.

SMIDERLE, J. et al. The governance of water and wastewater provision in Brazil: are there clear goals. Network Industries Quarterly, v. 22, n. 1, p. 7–11, 2020.

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