O teu propósito X o propósito do dono

Gabriel Kolisch
ECOO

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Não se engane, nunca vamos vestir a camisa da sua empresa.

Em uma empresa convencional, com uma minoria dona, a competição é o que vai reinar principal e majoritariamente. A organização é um grande cabo de guerra, em que cada pessoa envolvida, funcionária ou dona, puxa uma corda diferente em diferentes direções. E o Recursos Humanos não vai mudar isso.

Quando se entra em uma estrutura convencional, em que o controle está centralizado em uma ou mais pessoas, um funcionário pode passar por um momento de “lua de mel”, em que algumas ilusões, sejam criadas por si, pela estrutura ou até pelo RH, ainda se sustentem. A pessoa pode até tentar realizar o propósito da estrutura, mas não demora muito para que as ilusões acabem, e com o tempo a contratada já integra organizações sem qualquer alteração do foco próprio.

Existe uma miopia grande quando acredita-se que o propósito do funcionário vai ser o mesmo de quem é o dono. E no final, o propósito das estruturas convencionais é o propósito que seu dono tem para ela. Em uma empresa convencional — hierárquica como forma de organização e capitalista como forma de produção — o propósito prioritário da organização é reproduzir o capital, ou seja, gerar lucro. Aqui, é importante não confundir Lucro com Remuneração.

Para simplificar, vamos alinhar os conceitos para esse texto com os seguintes significados:
- Lucro: A diferença entre a receita total da empresa e todos os custos (remunerações estão incluídos). Grosseiramente, pague as conta e os salários, sobrou é lucro.
- Remuneração:
Diz respeito apenas ao pagamento em dinheiro e utilidades, como alimentação, moradia, vestuário, e outras em troca dos serviços prestados pelo empregado. Grosseiramente, o que o empregado ganha para trabalhar.

Por mais que a organização coloque em sua missão que tem mais outros objetivos, a prioridade será de gerar o lucro para os proprietários. E se houver um momento de aperto os cortes irão para o impacto social, remunerações, etc buscando garantir o lucro.

Enquanto o dono da estrutura tem o foco próprio de gerar lucro, o funcionário tem o foco próprio de gerar uma condição positiva para si. Isso pode se dar de várias formas. Uma delas é contribuindo para o propósito da organização, mas somente se o funcionário ver que esse é o esforço que trará o melhor resultado para si (outras formas podem ser: criando iniciativas para se projetar externamente e conseguir uma oportunidade melhor em outro lugar; fazendo o mínimo para manter o cargo; sabotando projetos alheios para conseguir se projetar internamente; desviando recursos da organização para si próprio).

“A black-and-white shot of people sitting on stools at a long table” by Samuel Zeller on Unsplash

Em seu artigo, “O Princípio de Peter: Uma Teoria do Declínio”, Lazear afirma que alguns funcionários manipulam o sistema de recompensas para obter uma promoção. Um empregado de olho em um salário maior, status mais alto e um escritório melhor vai trabalhar para conseguir uma promoção. Após a quantidade de tempo necessária trabalhando incansavelmente, o funcionário provavelmente receberá a promoção que procura. Uma vez atingido o objetivo, o colaborador se dá um tempo, aproveitando para relaxar após um período de intensa produtividade¹

Ter atitude de dono sem ter os benefícios de dono

Uma cobrança real, por mais paradoxal que seja, é de que o funcionário tenha “atitude de dono”. Inclusive pode-se encontrar a exigência em anúncios de vaga de emprego.

Para conceituarmos: “A atitude de dono é a mentalidade diferenciada de quem acredita no negócio, veste a camisa e deseja ver a empresa prosperar como um todo.”²

Mas parece se esquecer o que leva um dono a ter essa atitude. Ele é quem tem maior autonomia para tomada de decisões na estrutura. Também é quem mais colhe benefícios quanto maior o sucesso da estrutura. Benefícios esses em sua maioria financeiros ou de valorização de seu capital, mas também reconhecimento de seus pares e sociedade.

Já ao funcionário não é permitida a autonomia. O modelo de comando e controle existe para tentar garantir que o funcionário siga operando para que o propósito do dono seja alcançado. Além disso, ele não tem voz sobre sua remuneração, acaba geralmente sendo explorado³ e ganhando menos do que gera de impacto na organização.

Dar recompensas ou punições funciona, por exemplo em forma de remuneração ou demissão, mas tem um efeito muito limitado. Inclusive, aumentar algum dos dois não leva a uma melhora proporcional — chega-se a um dado ponto, por exemplo, em que aumentar um salário não é apenas inefetivo como pode ter um impacto negativo.

Recompensas podem suprir somente as necessidades básicas, e as punições podem somente ameaçá-las. O resto das necessidades humanas, como Maslow traçou, não pode ser alcançadas com um montante maior de dinheiro.

Hierarquia de necessidades de Maslow

“Propósito, significado, identidade, realização, criatividade, autonomia — todas essas coisas que a psicologia positiva nos mostrou como necessárias para o bem-estar estão ausentes no trabalho médio.” — Benjamin Kline Hunnicutt, professor de Estudos de Lazer da Universidade de Iowa.

O que o desalinhamento gera?

O motivo de trazer esses pontos à tona não é apenas por reconhecer o impacto no bem-estar dos funcionários, mas também para refletir sobre seu efeito na produtividade, assim como na capacidade de inovação.

Times com propósito desalinhado não só tem performance menos que times alinhados, mas tendem a desenvolver atritos e conflitos. Uma empresa desalinhada, com times desalinhados, tem uma defasagem muito maior de resultado do que poderia ter.

Uma metáfora simples é a de um grande peso sendo movido por várias pessoas. Em um primeiro cenário, cada uma delas quer levá-lo para um lugar diferente. O objeto não vai chegar a nenhum objetivo, apenas à média dos objetivos do grupo. E o desperdício de esforços resulta apenas numa progressão vagarosa ou até nula. Já no outro cenário, todo o grupo move o peso para uma mesma direção clara, sem desperdícios de energia e sem atritos de esforços.

De acordo com uma pesquisa global da Gallup, somente 15% dos funcionários estão engajados com seu trabalho. 67% são indiferentes quanto a sua organização, se comportando de forma “desligada”, como sonâmbulos durante o trabalho, em geral fazendo o mínimo necessário e somente se lhes é pedido. Existem ainda 18% que estão ativamente desengajados, infelizes no trabalho e agindo a partir dessa infelicidade, sabotando seus pares e a organização.

A empresa também reconhece que o custo da produtividade perdida por falta de engajamento é de U$7 trilhões. Sem contar a miséria humana atrelada a vida profissional insatisfatória. Outra pesquisamostrou que de 1,5 milhão de funcionários entrevistados, 75% experimentou níveis moderados a altos de estresse. Esses níveis atuais e crescentes deveriam ser motivo de preocupação por haver uma relação direta e adversa entre estresse negativo, bem-estar e produtividade.

Dar a sensação de propósito

As organizações tentam de várias maneiras criar uma sensação de propósito. A cartilha traz vários métodos, dinâmicas e esforços de comunicação para que o funcionário acredite em um propósito maior da empresa. Empresas criam missões institucionais para simular um interesse outro do lucro, como sustentabilidade ambiental ou impacto social. O funcionário pode receber, como forma de remuneração, ações ou porcentagem da organização — geralmente um volume bem pequeno e sem efeitos na tomada de decisão — na tentativa de atrelar um resultado positivo da estrutura a um resultado positivo para o funcionário. Existem até mesmo tentativas de diminuir a hierarquia e tentar “dar mais autonomia”.

Esses esforços podem aproximar os propósitos dos envolvidos, fazendo com que se diminua os desperdícios e atritos. Mas o propósito tende a se desalinhar por completo quanto mais próximo de uma relação sem autonomia, sem ganhos com a organização e sem focos para além do lucro. E quanto mais próximo de autonomia, ganho do total do resultado e focos além do lucro, mais próximo de se alinhar o propósito.

Como fazer o seu propósito ser o mesmo que o do dono

Bom, a solução é tão simples quanto óbvia. Seja o dono.

Em um pensamento simplista: se os tamanhos do seu engajamento e entrega são maiores de acordo com quanto mais você ganha em cima do resultado, ele vai ser o maior possível com você ganhando o máximo possível.

Mas entendendo que a organização é feita de várias pessoas, e o melhor resultado é com todos engajados, seria necessário que todos tivessem o maior pedaço possível. O que significa dividir igualmente a organização e seus resultados, assim como a tomada de decisões. Esse é um modelo horizontal e cooperativo.

Para além do pensamento simplista existe uma série de motivos psicológicos e de motivação, mas mais para frente vou explorar o tema em outro texto.

Um modelo de estrutura horizontal e cooperativa tem o potencial de construir um alinhamento de propósito de fato. Obviamente não é algo que se constrói organicamente, e existem processos e metodologias para esse desenvolvimento. Mas se aplicados em uma lógica convencional, esse desenvolvimento seria limitado de acordo com sua posição quanto à gestão e propriedade.

Algumas reflexões interessantes para seguir o texto:

  • Você preferiria estar junto e cooperando ou sozinho e competindo?
  • Você preferiria ser dono junto com outros ou funcionário?
  • Você sabe qual o seu propósito?

A exploração de alguns conceitos é necessária para complementar o raciocínio. Para simplificar estou quebrando em textos menores. Ainda vou explorar mais sobre motivação e busca pessoal e o valor igual de todos os cargos em uma estrutura.

Convido você para seguir com questionamentos, conversas, argumentos, críticas ou qualquer manifestação nos comentários abaixo, vou responder o mais breve possível. Vou ficar feliz com qualquer contribuição! Inclusive podem gerar novos textos.

Palmas também são bem vindas. Elas ajudam o texto a chegar a mais pessoas :)

Todo documento merece e deve ser problematizado. Analisado a quem se destinou, assim como a conjuntura social em que o autor vivia. Nenhum escrito é neutro, independentemente da ideologia que o permeia. Indico que a leitora atenta não desconsidere esta observação, pois garantirá que não se cometa anacronismos ou qualquer outra confusão possível.

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Gabriel Kolisch
ECOO
Editor for

Educador vivencial, facilitador de grupos, e designer de organizações. Militando por cooperação e anti-hierarquia.