Em plena capital cearense, ainda há resquícios de um tempo em que era "chic" fazer biquinho pra falar e usar echarpe mesmo sob um calor de 32 graus.
Fortaleza, acredite, já foi um pedacinho de Paris nos Trópicos. Há cerca de um século, a França estava em alta. Cancans, cabarés, Art Nouveau, alta costura e as invenções do século XX floresciam numa época de paz, que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. Até as artes ganharam formas modernas, com a fotografia e o cinema ganhando adeptos. Ao período, entre 1880 e 1925, deu-se o nome de Belle Époque. De olho nos avanços e no vanguardismo, os cearenses se apropriaram dos costumes, da arquitetura e até da língua francesa.
Na antiga Capital, pontos de comércio recebiam nomes pronunciados com biquinho ou aquele leve pigarro, charmoso. Frisson, au revoir, garçon: o vocabulário francês era "chic", atraía uma clientela diferenciada - a elite. Dois fotógrafos locais da época escolheram alcunhas artísticas com grafia afrancesada: Moura Quineau e Eurico Bandiére. Até o vendedor de garapa de cana, recém chegado da França, tornou-se o Bembém Garapiére. Aos poucos, a cidade foi ganhando recortes e remodelação europeus.
Voilà! Nascia uma pequena Paris abaixo da linha do Equador: tropical, de planta xadrez, com palmeiras e à beira-mar. Afinal, quem precisava do rio Sena quando tinha o Atlântico aos seus pés?
A proximidade com a rota marítima trouxe riqueza e desenvolvimento. Pelo porto, escoava a produção algodoeira do Ceará. Chamado de “ouro branco”, o algodão sobrevivia às intempéries do clima local. O produto sustentou a economia do Estado após o declínio das charqueadas. Nesta época, surgiram os primeiros pólos têxteis no Brasil. Ainda hoje, o parque têxtil cearense está entre os maiores do País.
Enquanto São Paulo se industrializava e o Rio dançava ao som do chorinho, Fortaleza abria cafés parisienses, instalava postes e telefones. Moradores vibravam com o telégrafo e a fotografia, novidades do Hemisfério Norte. Os bondes chegaram, trazendo consigo um novo código de vestimenta: só entrava quem estivesse de paletó. Estrangeiros e sulistas ajudaram a disseminar a modernidade, e a cidade passou a ser uma das oito maiores do País.
Autor do livro “Fortaleza Belle Époque”, o historiador Sebastião Ponte explica que a Capital era recatada, menos desenvolvida que as vilas de Aracati e Icó, no interior do Ceará. “Nesse período, a cidade deixa sua monotonia de casas térreas, ruas sem calçamento e costumes provincianos para ganhar um rosto mais cosmopolita, europeu, expressado em casarões, sobrados e palacetes de fachadas em sintonia com os estilos arquitetônicos em voga”, afirma o historiador. Os caminhos tornaram-se mais arborizados e repletos de bulevares.
O arquiteto Plínio Silveira explica que a reformulação urbanística da cidade se inspirou no modelo parisiense. “Em 1875, o engenheiro Adolfo Herbster elaborou a Planta Topográfica de Fortaleza, consolidando o traçado xadrez. Herbster foi nosso Barão de Haussmann, homem que idealizou a reforma urbana da Capital francesa.” Segundo Silveira, o engenheiro desenhou três grandes bulevares, no Centro, à exemplo do que foi feito em Paris. Atualmente, as vias abertas à época correspondem às avenidas Imperador, Duque de Caxias e Dom Manuel.
No térreo do Hotel Excelsior, símbolo da época, funcionava o Café Riche (rico, em francês). As lojas de roupas passaram a se chamar boutiques e foram batizadas de Torre Eiffel e Maison Art-Nouveau. A França era soberana na moda. Pouco importava que o calor chegasse aos 32 graus: as moças cobriam o pescoço com echarpes como as francesas. Em passarelas ladeadas de árvores frondosas e flores bem cuidadas, as damas desfilavam ao ar livre nos jardins da cidade.
O Passeio Público era um dos recantos das elites cearenses. As plantas majestosas continuam intocadas até hoje: a sombra do arvoredo ainda mantém um clima agradável no parque com vista para o mar. Os frequentadores, por outro lado, são bem diferentes. Depois da última revitalização, há menos de uma década, o lugar se tornou ponto de encontro para samba e feijoada.
Grande e moderna para a época, a Fortaleza parisiense era também elitista e controladora. Passou a esconder o que não considerava belo, excluindo os mais pobres. “As camadas populares, sobretudo mendigos, desempregados, loucos e prostitutas passaram a ser vigiados e confinados em asilos de alienados e de mendicidade, instituições para moças desvalidas e casas de correção”, conta o historiador Ponte.
O abolicionista José de Alencar, autor de “Iracema” e cearense de Messejana, morto em 1877, inspirou a construção de um teatro com seu nome. Os vitrais do prédio lembram aqueles da famosa Catedral Notre-Dame de Paris. Formaram-se grupos de literatos e boêmios, como a Padaria Espiritual, da qual fazia parte o célebre escritor Antônio Sales, autor de “Aves de Arribação". O produto da agremiação era o jornal “O Pão”, com estilo tão irreverente e caricato que nem o semanário francês Charlie Hebdo ousaria criticar.
Até mesmo os ideais de “Liberté, Égalité, Fraternité”, tão caros aos franceses, tocaram o Estado: a cidade cearense de Redenção, a apenas 55km de Fortaleza, foi a primeira do Brasil a libertar seus escravos, em 25 de março de 1884 — cinco anos antes da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.
Hoje com 90 anos, a professora aposentada Maria Celeste Gadelha Rocha viveu o fim da Belle Époque cearense. “Na rua Guilherme Rocha (Centro), havia uma sorveteria finíssima chamada Nice, muito grã-fina. Havia também muitos cinemas bons, Cine Majestic, Cine Moderno, com filmes excelentes. E tinha que ir de chapéu. Tinha inclusive uma mulher que já era famosa, ninguém queria ficar atrás dela porque usava uns chapéus de abas enormes”, conta a saudosa professora.
Foi na gestão do prefeito Godofredo Maciel (1924–1928) que ícones da Belle Époque da capital cearense começaram a sair de cena. “Foram demolidos o refinado Jardim 7 de Setembro, que tomava quase toda Praça do Ferreira, os cafés de fachadas parisienses e o Cajueiro da Mentira, local em que os populares caçoavam dos ricos no dia da mentira”, explica o historiador Sebastião Ponte.
Aluna da extinta Escola Normal, a professora Maria Celeste lembra que estudou francês, latim e inglês. “E eu falava francês, viu? Ainda lembro: Faites attention, mademoiselle! Tinha até que fazer dissertações na língua”, conta. Dos sete filhos da aposentada, seis estudaram francês, como era de praxe. Somente o mais novo teve inglês como segunda língua.
Mestre em língua francesa, a tradutora e professora universitária Maria Ester Monteiro observa como o idioma e a cultura perderam espaço na Capital. “Havia duas sedes da Aliança Francesa, mas a do Centro foi fechada. Até as escolas públicas ensinavam a língua, mas desde os anos 1980 ela saiu do currículo. Hoje em dia, o francês não é tão infiltrado na nossa vida como a língua inglesa. É um ponto de vista utilitarista, não de fusão de cultura”, lamenta.
A professora diz que, apesar de tudo, ainda há alunos vanguardistas. “São cursos muito procurados e com poucas vagas. Na Casa de Cultura Francesa da Universidade Federal do Ceará, por exemplo, é difícil entrar. Nós, professores, fazemos um trabalho duro para manter a chama acesa”, afirma.
Na arquitetura, as manias da Belle Époque persistiram por algum tempo pela cidade. A construção do Estoril, na Praia de Iracema, já na década de 1940, incluiu materiais e design europeus. O prédio serviu de base militar para os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Renovado em 2012, o antigo casarão virou ponto de encontro para os amantes da cultura e da boa música da capital cearense.
É possível fazer um roteiro para conferir o que ainda está de pé. A maioria dos lugares guarda uma distância máxima de 6km entre si, localizados entre o Centro e a Praia de Iracema. O antigo Mercado do Ferro (hoje Mercado dos Pinhões) é palco de parte da programação cultural da Prefeitura de Fortaleza. O Theatro José de Alencar segue recebendo diferentes peças todos os meses. A Ponte dos Ingleses deveria ser um porto, mas se tornou um mirante pela visão privilegiada da orla de Fortaleza.
Em dezembro, a Praça do Ferreira celebra o Natal com corais do alto do Excelsior, que foi construído em 1931, ainda nos moldes da Belle Époque. Aos fins de semana, é possível avistar piqueniques e concertos instrumentais animando o Passeio Público. Aberta ao público, a Praça General Tibúrcio (conhecida como Praça dos Leões) hospeda a estátua de Rachel de Queiroz, cearense e primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras.
Ao olhar do historiador Sebastião Ponte, atualmente o patrimônio físico da cidade é vítima da herança subjetiva. A Belle Époque se foi, mas deixou a apreciação pelo belo, pelos avanços tecnológicos e o vislumbre pelo que vem de fora. Os mesmos princípios que trouxeram a modernidade, a organização urbanística e o humor irreverente ameaçam as lembranças que ainda restam em tijolos. Ao preferir o novo, Fortaleza transformou sobrados e casarões em avenidas largas. C'est la vie!
Essa história foi escrita pela jornalista Isabel Filgueiras, colaboradora do Eder Content em Fortaleza (CE), com edição de texto de Andréia Lago, edição de imagem de Cacalos Garrastazu e design gráfico de Juliana Karpinski.
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