Educação digital em tempos de TikTok — parte 1

Gilson Cavalcanti
edifyeducation
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7 min readMar 30, 2023

Você foi guiada(o) por corredores frios com cara de laboratório e acaba de chegar numa sala com paredes brancas e luzes fortes que lhe forçam a fechar um pouco os olhos. Quando a sua vista começa a se acostumar com a claridade, uma cientista conduz você pelo braço eapresenta duas crianças: a Amanda e o Rafael. Os cabelos cacheados da Amanda e o sorriso esperto típico de uma menina de 10 anos lhechamam a atenção. Mas não menos do que o olhar desafiador do Rafael que, no auge dos seus 8 anos, lhe mostra a tela do celular dele dizendo:

— Olha só esse truque novo que eu aprendi!

Antes que você consiga olhar o que ele está mostrando, a cientista lhe puxa ao lado e diz:
— Uma dessas duas crianças tem alta probabilidade de desenvolver o hábito de consumo excessivo de álcool e fará uso de tabaco a tarde e cannabis a noite quando forem adultos!

ilustração por Gilson Cavalcanti

Oi! Eu sou Gilson Cavalcanti, head do time tech aqui, no Edify Education, e eu vou te pedir licença para pausar um pouco essa história pra gente conhecer mais sobre essas duas crianças, antes que a gente sigamos com nosso bate-papo.

Amanda tem 10 anos, acaba de ganhar um celular dos pais. Consume conteúdo no TikTok, YouTube e jogando PKXD. Ela passa cerca de 2h por dia no celular.

Já o Rafael tem 8 anos e também acaba de ganhar um celular dos pais e está consumindo conteúdo no TikTok, YouTube, jogando Roblox e, somando tudo isso, ele tem passado 8h por dia no celular.

O que você acha que esses hábitos irão causar no futuro da Amanda e do Rafael? Pessoalmente, como pai de duas crianças de 5 e 7 anos, as minhas evidências anedóticas práticas me levam a muitas conclusões. Porém, o meu convite de hoje é para que você e eu deixemos de lado as nossas anedotas e achismos e olhemos para o que a ciência tem a nos dizer sobre o assunto.

Provavelmente, você já ouviu falar sobre o "excesso de tela" e seu efeito negativo, principalmente para as crianças. Você já se fez as seguintes perguntas: Tela faz mal de fato? Quando eu posso liberar telas para meus filhos? TikTok, eu devo proibir? Controlar? O que devo fazer?! E o aprendizado de inglês? Se eles ficarem grudados no computador ou celular, eles vão aprender mais rápido?

Pra começar essa conversa, vamos fazer o que fez o Harry Potter no final do primeiro filme: descobrir quem é o nosso inimigo! O tempo excessivo de tela (o nosso Voldemort aqui), na maioria dos artigos científicos, é citado como Superestimulação Sensorial Crônica (Chronic Sensory Overstimulation). O que nos leva para um caminho muito mais interessante do que o simples "tempo excessivo de tela". Em geral, os artigos caracterizam Superestimulação Sensorial, quando o tempo de exposição passa de 2 a 3h diárias (guarde essa informação pra mais tarde).

Você talvez esteja pensando:

— Estamos falando de qualquer tempo de tela? Independente do que está na tela?

Como o Yuval Harari ilustra habilmente no seu livro Sapiens, o ser humano, enquanto hardware biológico, evolui a passos muito lentos. Basicamente, nascemos com um hardware adaptado para situações naturais diversas do ambiente urbano ao qual, a maioria de nós, está condicionado atualmente. O que nos leva a conclusão de que o nosso aparato sensorial, nossos olhos e ouvidos, está adaptado para situações físicas reais, interações humanas em ambientes onde a troca de contexto e imagens está demarcada aos limites físicos do ambiente.

Nosso aparato sensorial se vira muito bem em situações físicas que variam desde um bate-papo de bar com os amigos, onde você direciona sua cabeça, olhos e ouvidos de uma pessoa para outra, até partidas de futebol assistidas ao vivo.

Porém, quando esse aparato sensorial, nossos olhos e ouvidos, é exposto a uma tela, onde a troca de contexto pode ser frenética, com edições, cortes rápidos, animações e ações acontecendo tudo-ao-mesmo-tempo-agora, a ciência inicia o timer da Superestimulação Sensorial Crônica, que eu citei acima.

Essa definição é essencial para não classificarmos como "Tempo excessivo de tela", por exemplo, a leitura de um bom artigo online como um estímulo equivalente ao ato de assistir a um vídeo de humor típico da geração Z (anota aí a dica de vídeo para assistir depois sobre o tema: (424) A Bizarrice da Geração Z Explicada | Gaveta — YouTube)

Com essa definição em mente, vou pedir para você educador(a) e familiares mais próximos às crianças, que se segurem firme, respirem fundo e venham passear comigo por alguns findings dos mais de 40 artigos que pesquisei para criar essa série de artigos para vocês. Qual o tamanho do problema que estamos lidando?

Se segura aí, que vai ser um show de horrores(mas eu prometo que depois melhora).

Gerações 90 e 80 apresentam acréscimo severo de Ansiedade extrema e pensamentos suicidas
[Twende at al. 2019]

7 ou mais horas de super estimulação sensorial por dia mostraram diferenças significativas no afinamento do córtex cerebral, o que afeta diretamente as funções cognitivas e a memória
[Lee 2018]

Social media pode baixar a auto-estima, aumentar o risco de vício de internet e problemas de saúde mental
[Selfhout 2009, Holanda — 307 adolescentes]

Tempo engajado com tempo de tela sedentário é significativamente associado com depressão rigorosa e sintomas de ansiedade. Uso de vídeo-game e computador significativamente associado com depressão, mas somente videogame associado com ansiedade
[Maras 2015, Canada — 2.482 jovens]

Tempo excessivo de tela significativamente associado com baixo bem-estar psicológico, auto-controle pobre e maior chance de ser diagnosticado com depressão e ansiedade.
[Twenge e Campbell 2018, USA — 337 adolescentes]

Cancelamento de conta do Facebook associado com menor conhecimento de notícias, aumento de atividades offline e aumento de bem-estar subjetivo
[Allcott 2019, USA — 2.753 crianças, adolescentes e adultos]

Uso excessivo de rede social associado com baixa performance em avaliação de riscos e tomada de decisão
[Meshi 2019, Alemanha — 71 adolescentes e adultos entre 18 e 35 anos]

Uso problemático de redes sociais significativamente associado com ansiedade e TDAH
[Day 2019, Suiça — 5.096 adultos]

Exposição a horas de televisão com 1 ano de idade associado com risco aumentado de problemas de atenção em 28%
[Christakis 2004, USA — 1.278 bebês (1 ano e 1.345 crianças até 3 anos)]

Ratos superestimulados com mais chances de déficits na cognição e comportamento
[Christakis 2012, USA — 68 ratos vs 48 ratos do grupo de controle]

Níveis altos de comunicação via mídia digital associado significativamente com uso de substâncias (prioritariamente álcool). Associado ainda com interações humanas fazendo o uso de tabaco a tarde e cannabis a noite.
[Gommans 2015, Holanda — 5.642 pessoas]

Se você ainda estiver aí, não corra para as montanhas! (ainda). Faça como Ned Stark na primeira temporada de Game of Thrones que pensou: "No fim, tudo vai dar certo!" 😄

As descobertas falam por si só, porém me sinto na obrigação de alertar para o fato de que, alguns efeitos da Superestimulação sensorial crônica são irreversíveis e trazem consequências que serão carregadas para toda vida adulta. Estamos falando de afinamento do córtex, a região mais externa do nosso cérebro onde "tudo acontece". Toda vez que nos deparamos com algo que nunca fizemos antes, é no córtex onde acontece a maior parte do processamento até que os novos "caminhos elétricos" criados sejam "empurrados" para partes mais internas do cérebro.

É por isso que quando você dirige um carro pela primeira vez é praticamente impossível prestar atenção em qualquer outra coisa além de tentar dirigir. Porém, quase magicamente, algumas repetições e dias depois, o nosso cérebro já internalizou a modelagem de execução daquela tarefa para regiões mais internas. E é exatamente por isso que, camadas mais finas do córtex são uma espécie de bola de ferro psíquica definitivamente presa no pé dos cronicamente superestimulados.

Agora que conhecemos melhor o nosso inimigo e fomos massacrados cientificamente com as maldades que ele nos reserva, vou te convidar para pensar comigo sobre um dos principais vetores de superestimulação sensorial crônica atual: as Redes Sociais. Mais especificamente, vamos pinçar o exemplo da rede cujo app foi o mais baixado já em 2019 nos EUA: o TikTok.

O TikTok é, atualmente, a rede social mais utilizada por crianças e adolescentes no Brasil. Como o quadro mundial não difere muito de nossa realidade nacional, surgem mais algumas perguntas: Adianta lutar contra o que parece ser uma tendência? Faz sentido enfrentar de forma radical ou negar o acesso dos meus filhos e fugir?
[ TikTok é a rede social mais usada por crianças e adolescentes de 9 a 17 anos (cnnbrasil.com.br) ]

A partir dessa realidade eu e você temos um passo a passo a seguir:

  1. Eu preciso esclarecer o que é o motor real que está por trás dos tais algoritmos das redes sociais (spoiler alert: não são exatamente algoritmos)
  2. Eu e você precisamos entender o que a ciência nos diz sobre Mediação Parental (a resposta para a sua pergunta sobre o que nós devemos fazer está aí)
  3. Vamos voltar a dar sequência à nossa estória inicial para saber o que, segundo a ciência, tem alta chance de acontecer com a Amanda e o Rafael.

Segura a curiosidade, digere o que vimos até aqui, e me dê mais um pouco de tempo para escrever a parte 2 dessa série de artigos sobre educação, redes sociais, tecnologia e ciência. Até lá! 🖖

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Gilson Cavalcanti
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I'm dedicated to building Software User Experiences. I spend my time Designing, Coding, and Teaching (as long as my two little bosses Sophia & Lorenzo allow it)