Conquistando o espaço

Aleph
Editora Aleph
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7 min readJun 7, 2019

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*Por Nathan Fernandes

Em 27 de janeiro de 1967, com fones parecidos com aqueles usados por operadores de telemarketing, os engenheiros da sala de controle da NASA ouviam os gritos de três astronautas ardendo no fogo que consumia o foguete Saturn IB. Antes de dizer que ele estava pronto para ser lançado, o comandante da missão, Gus Grissom, já havia alertado sobre falhas na comunicação. “Como chegaremos à Lua se não conseguimos nos comunicar entre dois ou três prédios?”, questionava ele, com a voz abafada, de dentro da cápsula. Não havia nada que os engenheiros pudessem ter feito quando a explosão aconteceu. Os técnicos da plataforma de lançamento ainda tentaram romper a porta da nave, mas como ela só abria por dentro, quando finalmente conseguiram arrombá-la, Grissom e os companheiros Edward White e Roger Chaffee já haviam sido carbonizados. O desastre no teste da missão Apollo 1, que colocaria os astronautas na órbita da Terra, abalou a autoestima dos Estados Unidos naquele dia.

Mas foram exatamente falhas desastrosas como essa que tornaram possíveis os primeiros passos dados por Neil Armstrong e Buzz Aldrin em solo lunar. Chris Kraft, o diretor de operações de voo da NASA, deixa isso bem claro no documentário Mission Control: The Unsung Heroes of Apollo: “É a minha opinião, e a de muitos, que se aquilo não tivesse acontecido, nunca teríamos chegado à Lua. Aquele período todo depois do incêndio foi o que nos salvou, porque conseguimos parar e pensar: ‘O que há de errado? O que precisamos consertar?’ Isso uniu toda a organização, a NASA como um todo. Sem esse acontecimento, não teríamos chegado lá”.

A chegada dos seres humanos à Lua, há cinquenta anos, com a missão Apollo 11, certamente é um dos pontos altos da história da humanidade, comparável com a mudança de paradigma causada pela descoberta do “Novo Mundo” no século 16. Mas a ideia de construir uma máquina voadora capaz de levar e trazer pessoas do espaço soava tão absurda na década de 1920 que F. Scott Fitzgerald jamais poderia supor que aconteceria algo mais impressionante no mundo do que a chegada dos colonizadores ao continente americano, como descreveu no final de O Grande Gatsby: “[…] Durante um momento, breve mas cheio de encantamento, os homens devem ter prendido a respiração diante deste continente, compelidos a uma contemplação estética que nem compreendiam nem desejavam, face a face, pela última vez na história, com alguma coisa que correspondia plenamente à capacidade que os seres humanos têm de maravilhar-se.”

A foto oficial da tripulação da missão Apollo 11: Neil Armstrong, Michael Collins e Buzz Aldrin. Após muitos reveses, foram os primeiros homens a pousar na Lua e pisar em seu solo (divulgação/NASA

Fitzgerald errou, não apenas por cravar o descobrimento como nossa última grande chance de deslumbramento, mas por não compreender que a história da humanidade, assim como a história pessoal de cada um que faz parte dela, é cíclica. E que, portanto, a capacidade de maravilhar-se é constante. Joseph Campbell expõe essa ideia em O Herói de Mil Faces ao analisar os mitos de diversas culturas e constatar que todos trazem uma base comum. Segundo o conceito conhecido como “jornada do herói”, as histórias com maior apelo da humanidade, no geral, começam e terminam no mesmo ponto, depois que o herói retorna, com mais sabedoria e poder, de uma viagem que o colocou à prova — Jesus Cristo e Luke Skywalker, estamos falando de vocês.

Nesse sentido, se o pouso na Lua for considerado o clímax tecnológico do século 20, acidentes como o da Apollo 1 podem ser entendidos como crises que testam nossas forças. “Os heróis podem enfrentar contratempos desanimadores nesse estágio de aproximação do objetivo supremo. Esses revezes do acaso são chamados de ‘complicações dramáticas’”, explica Christopher Vogler no livro A Jornada do Escritor, que usa o conceito de Campbell como um guia de referência para a escrita. “Embora possam parecer nos destruir, são apenas mais uma prova à nossa disposição de prosseguir. Eles também permitem que nos reconstruamos de forma mais eficaz para percorrer um terreno estranho.”

Outros acidentes de percurso, como os da missão Apollo 13, de 1970, talvez cumpram o mesmo papel. A diferença é que — ao tentar pousar na Lua e, após uma explosão em pleno espaço, serem obrigados a orbitar o satélite natural para retornar à Terra a salvo — a história do astronauta Jim Lovell e de seus companheiros ganhou um verniz cinematográfico que se enquadraria perfeitamente em uma tela de cinema. Tanto que virou o filme Apollo 13 — Do Desastre ao Triunfo, com Tom Hanks, em 1995. Essa disposição norte-americana em prosseguir fica evidente em uma cena na qual a esposa de Lovell responde firmemente aos pedidos de entrevista com: “Pergunte ao meu marido, ele estará em casa na sexta”, enquanto o astronauta vaga em algum lugar mais perto das estrelas.

Bill Paxton, Kevin Bacon e Tom Hanks em cena do filme Apollo 13 (1995) (Reprodução)

Mas nenhuma complicação parece ter sido mais dramática do que a história da participação feminina nas missões tripuladas. Se hoje assistimos Sandra Bullock flutuando no espaço e contemplando o silêncio do Universo sem estranharmos o fato de que ela é uma mulher, como nas cenas impactantes do filme Gravidade, é porque suas antecessoras se ocuparam desse feito. O documentário Mercury 13 — O Espaço Delas trata disso ao mostrar a história de aviadoras que foram treinadas para missões espaciais e obtiveram resultados superiores aos dos astronautas homens, mas foram impedidas de conquistar o espaço por conta de seu gênero. Não à toa, até hoje, apenas doze homens deixaram suas pegadas em solo lunar — e, nesse caso, a palavra “homens” não é um sinônimo para “pessoas”.

Para Ann Hart, filha da pilota Janey Hart, que participou do programa de treinamento, muitas vidas teriam sido completamente mudadas se uma mulher tivesse tido a oportunidade de ser a primeira a pousar na Lua. “Não só inspirando meninas a se formarem em engenharia, não, mas levando mulheres a posições de poder real, implementando práticas e políticas que poderiam ter representado esse componente humanitário da mulher, em oposição ao bélico dos homens”, diz ela, no documentário.

O nome escolhido para as missões tripuladas à Lua também merece atenção. Pouco antes do Titanic ser construído, um templo helênico chamado Altar de Pérgamo foi descoberto. O monumento trazia em alto relevo a história de uma batalha entre deuses e gigantes, conhecidos como Titãs. Essa informação não deve ter passado despercebida pelos construtores do navio que, além de escolherem os inimigos dos deuses para identificar a si e a seus clientes, alegavam que sua construção era “inafundável”, cercando a embarcação com uma aura supersticiosa de maldição. Já ao batizar a missão espacial com o nome de um deus greco-romano, Apolo, ligado ao Sol e à “luz da verdade”, é como se os cientistas da NASA tivessem escolhido o outro lado. Eles não lutavam contra os deuses, mas como filhos legítimos da divindade, reivindicavam seu lugar no céu por direito.

Sandra Bullock em cena do filme Gravidade (2013) (Reprodução)

Assim, mesmo redirecionando os recursos financeiros do espaço profundo para a órbita baixa da Terra, afundando a missão Apollo em 1972 — e com ela os planos de enviar uma missão tripulada a Marte em 1981, implementando uma base em solo marciano em 1988 — , o programa resiste, de certa forma, até hoje. Através da NewSpace, como é conhecida a nova onda de exploração espacial (na qual empresas privadas como a SpaceX e a Boeing reduzem os custos dos lançamentos e investem no turismo interplanetário), os limites do espaço tornam-se relativamente menos largos. A ideia da empresa Orion Span de criar um hotel espacial de luxo, com a diária de US$ 790 mil, em 2021, é só um exemplo disso.

Quando a Apollo 11 partiu da Terra, ela carregava consigo dentro do foguete toda a humanidade. Neil Armstrong certamente tinha isso em mente quando dedicou seus passos a ela. Ao aceitar o perigo e as incertezas de missões como essas, os astronautas se lançam ao desconhecido e abrem caminho para que muitos outros depois deles possam explorar horizontes literalmente novos, assim como os navegadores do passado fizeram em suas épocas — com todos os significados que a palavra “explorar” pode ter, mas com a esperança de que os erros tenham sido absorvidos.

Porque é lá no céu, onde o silêncio é uma lei da física, e não dos homens, que esses marinheiros do espaço podem se conectar com o que há de mais humano na raça humana: o desejo de expandir, pois eles sabem que nada parado evolui no tempo. E é por isso que, ao conhecer a trajetória que levou essas pessoas à Lua, também temos a oportunidade de fechar os olhos e explorar o que tem dentro. Ou como escreveu Christopher Vogler, “acabei descobrindo que a jornada do herói não é nada menos que uma compilação de instruções para a vida, um manual completo da arte de ser humano”. Isso faz da história da missão Apollo uma típica jornada do herói, um guia eficiente para entender as vontades que nos movem para além do limite do vale profundo que sempre começa na beira da Terra (ou de nós mesmos).

“Porque é lá no céu, onde o silêncio é uma lei da física, e não dos homens, que esses marinheiros do espaço podem se conectar com o que há de mais humano na raça humana: o desejo de expandir.” (Reprodução)

*Nathan Fernandes é escritor e jornalista, já colaborou com publicações como Galileu, Superinteressante, Veja e Playboy. Fala sobre ficção científica e os mistérios do Universo através do projeto PunkYoga no Instagram @nathanef

** O texto acima faz parte do terceiro fascículo da mostra Fronteiras Finais, ciclo de cinema organizado pela Aleph, Projeto Replicante e CineSesc, que celebra a chegada do homem à Lua e faz uma contagem regressiva para o aniversário de 50 anos do feito. Para informações sobre a terceira fase da mostra (que já segue em exibição) CLIQUE AQUI

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