Entre o céu e a Terra

Aleph
Editora Aleph
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8 min readJun 26, 2019

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*Por Ana Maria Bahiana

O impulso que leva ao espaço começa com a desilusão com a Terra.

No coração do impulso habitam os foguetes propulsores da curiosidade e da aventura, mas tudo começa com algo mais próximo, algo menos heroico. Na Odisseia, Ulisses só queria voltar para casa. Qualquer lugar, menos Troia.

Em Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune), o entusiasmado Professor Barbenfouillis (interpretado pelo próprio diretor Georges Méliès) vende aos seus colegas do Clube de Astronomia a necessidade urgente de explorar a Lua diante do estado calamitoso da Terra, poluída pela fumaceira e os dejetos das fábricas que se multiplicavam desde a alvorada da Revolução Industrial, que, há um século e meio, vinha mudando o mundo, e nem sempre para melhor. Qualquer lugar, Barbenfouillis diz com sua mímica hiper-teatral (que seria o modelo essencial do cinema mudo), qualquer lugar menos a Europa do imperialismo, da miséria, da poluição.

Os colegas astrônomos finalmente concordam. Uma cápsula é construída, os astro-cientistas embarcam — com direito a banda de música e moças de perna de fora, algo super risqué para 1902 — e são prontamente despachados para a Lua com um tiro de canhão. Como seus colegas de ciência e de cinema, os astrônomos astronautas verão a Terra da Lua, terão momentos líricos com constelações, cometas e Saturno, todos recriados e reimaginados com efeitos mecânicos, usados em teatro.

“Os colegas astrônomos finalmente concordam. Uma cápsula é construída, os astro-cientistas embarcam — com direito a banda de música e moças de perna de fora, algo super risqué para 1902.” (Reprodução)

Febe, a deusa grega da Lua, os diabólicos Selenitas que habitam o satélite e o próprio Homem da Lua, que leva um tiro de cápsula no olho, são a parte ficcional deste que foi o primeiro exemplar de ficção científica. Na época, dizia-se parte da corrente patafísica: nem além, nem especulativa, mas assumidamente onírica e poética.

Um sucesso tremendo na época, Viagem à Lua foi devidamente pirateado e copiado pelos nascentes estúdios que pipocavam pelo mundo, especialmente nos Estados Unidos. Quinze anos depois, com Méliès à beira da falência, o filme original saiu de circulação, e o próprio criador comentou que não era um de seus melhores trabalhos.

Ele estava enganado. Nos anos 1930 Viagem à Lua foi redescoberto, e Méliès teve a alegria de apresentá-lo pessoalmente, em exibições de gala em Paris e Londres.

O cinema passava do registro para a imaginação, e da imaginação para a possibilidade de novos modos de ver, de criar experiências e sensações livres da força da gravidade.

Porque, no fim, tudo começa por causa da Terra.

“O cinema passava do registro para a imaginação, e da imaginação para a possibilidade de novos modos de ver, de criar experiências e sensações livres da força da gravidade.” (Reprodução)

Os Eleitos começa como um western. No alto deserto da Califórnia, cenário de tantas aventuras de John Ford, jovens audaciosos sacrificam suas vidas em duelos mortais entre cactos e poentes dourados. Esposas e namoradas choram. Cavalos disparam. Um sacerdote soturno canta hinos à beira dos túmulos recém-abertos. Há uma cantina de paredes de tábua com um amarradouro para cavalos em frente e, atrás do bar, fotos dos heróis caídos.

O duelo, narra a voz definitivamente western de faroeste de Levon Helm (baterista e vocalista da The Band), era entre os jovens pistoleiros e o “demônio que vivia no ar”. O demônio vivia escondido atrás do Mach 1, a velocidade superior ao som, e, em 1947, ali, no então Campo de Testes Muroc, nos arredores do deserto de Mojave, os jovens pilotos duelavam contra o demônio com a aeronave Bell X-1, movida a foguetes propulsores e, em tese, capaz de voar supersonicamente.

“Mais uma vez, a mola para o espaço era profundamente terrestre. Era, mais uma vez, um embate com a gravidade.” (Reprodução)

A Segunda Guerra Mundial tinha terminado, e os Estados Unidos tinham herdado a elite de físicos e engenheiros de Hitler que, com as bombas de Nagasaki e Hiroshima, haviam transformado a possibilidade de uma nova guerra mundial em destruição total do planeta.

Dois medos impulsionavam os sacrifícios ao Demônio do Ar: que a União Soviética tivesse desenvolvido a mesma capacidade de aniquilação global; e que já tivesse dominado a velocidade supersônica, a partir da qual o apocalipse era um mero gesto.

Mais uma vez, a mola para o espaço era profundamente terrestre. Era, mais uma vez, um embate com a gravidade.

Os Eleitos começou como um vasto, meticuloso e apaixonante livro de Tom Wolfe, um dos pilares do Novo Jornalismo dos anos 1960 e 1970. Tudo começara em 1972, com a cobertura do lançamento da Apolo 17 — a derradeira missão lunar — para a revista Rolling Stone. Wolfe, que não era exatamente um entusiasta de ciência, ficou imediatamente fascinado pelo nível de risco inerente à função de astronauta — “os astronautas são os combatentes homem-a-homem do programa espacial”, ele definiu.

Em vez de uma matéria cobrindo o lançamento da Apolo 17, Wolfe entregou à Rolling Stone uma série de quatro reportagens intitulada Post Orbital Remorse sobre o impacto psicológico e emocional do treinamento e da missão sobre os astronautas e suas famílias.

“Os Eleitos começou como um vasto, meticuloso e apaixonante livro de Tom Wolfe, um dos pilares do Novo Jornalismo dos anos 1960 e 1970.” (Reprodução)

Seria o começo de seis anos dedicados a entrevistas e pesquisas sobre como estes novos seres — astronautas e cosmonautas — entraram em nossa visão de mundo, e qual a combinação de loucura, macheza e obsessão os alimentava.

O plano de Wolfe era documentar todo o programa espacial, do momento de sua criação, em 1958, até a chegada na Lua, em 1969. No meio do caminho, contudo, ele conheceu Chuck Yeager, um dos mais ousados e respeitados pilotos de prova dos Estados Unidos, verdadeira lenda entre aeronautas e astronautas. Wolfe entrevistou Yeager — na época General da Força Aérea estadunidense –, inicialmente buscando confirmar elementos técnicos da narrativa. A conversa mudou todo o rumo do que viria a ser Os Eleitos: Wolfe reduziu o foco para a criação do primeiro programa de exploração espacial tripulada, o programa Mercury — e seu contraponto, a série de voos históricos de Yeager no alto deserto da Califórnia, que abriram caminho para o Mercury — e tudo o que veio depois.

Lançado em 1979, o livro teve os direitos imediatamente adquiridos pelo ilustre produtor e diretor independente Irwin Winkler (Rocky: um Lutador; Touro Indomável; Os Bons Companheiros). Três anos do habitual inferno de desenvolvimento viram uma lista de diretores entrar e sair do projeto, financiamento aparecer, desaparecer e reaparecer e, finalmente, Philip Kaufman (A Insustentável Leveza do Ser, Os Invasores de Corpos) dizer sim com a condição de refazer a adaptação escrita por William Goldman.

Goldman eliminara toda a narrativa de Yeager, focando apenas — entusiasticamente — nos astronautas do programa Mercury com um tom assumidamente patriótico.

Era o oposto, exatamente, de como Kaufman via a saga de Os Eleitos.

“Goldman eliminara toda a narrativa de Yeager, focando apenas — entusiasticamente — nos astronautas do programa Mercury com um tom assumidamente patriótico.” (Reprodução)

Na visão épica, mas ácida, de Kaufman, Os Eleitos é um filme profundamente norte-americano. Não norte-americano como Goldman tinha planejado, ou como a série Rambo — produzida por Winkler — tinha se tornado (na perspectiva do tempo, uma leitura heroica de todos os contratempos em que os Estados Unidos se meteram na era da Guerra Fria). É americano como os filmes de Capra ou Ford, a celebração de algo que está na raiz da personalidade da nação: um individualismo feroz, uma embriaguez pela audácia, pela possibilidade de ultrapassar limites — por nenhum motivo além de ser capaz de ultrapassá-los.

Kaufman faz mais do que restaurar a narrativa de Chuck Yeager — ele cria praticamente dois filmes em um: a história de Yeager e a história dos astronautas da Mercury, cada uma servindo de contraponto da outra.

A narrativa de Yeager é um western fordiano com jatos velocíssimos: o herói quieto e solitário, com seus rituais privados — o bar, o chiclete, as cavalgadas com a esposa Glennis, grande amor de sua vida. Yeager monta seu cavalo e seu Bell X-1 (e outros mais) do mesmo modo, e se refere a ambos com as mesmas palavras, com carinho e com esporas.

Kaufman enquadra a narrativa de Yeager nos tons dourados do deserto, a câmera baixa tornando Sam Shepard (perfeito como Yeager) e Barbara Hershey (Glennis) maiores que a própria paisagem imensa.

Cool como todo herói de western, Yeager/Shepard vence o Demônio do Ar como o mocinho de chapéu branco no duelo da rua principal — com o bônus do próprio firmamento se abrindo em pétalas e estrelas para o vencedor, criando a matriz na qual beberiam muitos filmes futuros — inclusive O Primeiro Homem, de Damien Chazelle.

”Kaufman reverte seu ponto de vista, tornando os homens do Programa Mercury infinitamente menores que o seu mundo de foguetes, plataformas de lançamento e, finalmente, o espaço.” (Reprodução)

A narrativa dos astronautas do Programa Mercury — Scott Glenn, Ed Harris, Dennis Quaid, Fred Ward, Lance Henriksen — é febril. Kaufman poderia ter criado uma visão semidocumental (como faz Paul Greengrass, por exemplo), mas opta por algo hiper-real, muitas vezes na fronteira do cômico e do grotesco. Cada aparição da imprensa vem acompanhada pelo som de cachorros farejadores. Políticos são retratados como caronas vulgares e oportunistas colhendo as benesses do louco heroísmo dos astronautas. O time de cientistas alemães parece sempre um centímetro atrás de “heil, Hitler”.

Os astronautas não ficam muito atrás — “Gordo” Cooper (Dennis Quaid) é um mulherengo mais preocupado com sua agenda de sedução do que com o treinamento; Alan Shepard (Scott Glenn) — o primeiro norte-americano no espaço — é um racista que ganha o devido troco; Gris Grissom (Fred Ward) está mais preocupado em fazer uma grana extra com souvenirs espaciais; John Glenn (Ed Harris) é o todo certinho, careta, possível puxa-saco.

O espaço, contudo, é maior que todos eles — e Kaufman reverte seu ponto de vista, tornando os homens do Programa Mercury infinitamente menores que o seu mundo de foguetes, plataformas de lançamento e, finalmente, o espaço.

Políticos e mídia tem seus motivos para embarcar na corrida do espaço, diz Kaufman. Mas estes homens seguem apenas este sentimento comum, que atravessou oceanos, campinas e desertos, o desejo de ver o que havia depois, e como seria possível alcançá-lo. Talvez morrendo no caminho. Mas tudo vale a pena.

Das três horas e 21 minutos de Os Eleitos, duas horas e tanto não estão no céu, mas na terra. A história do filme não é a história do espaço — “não necessariamente hostil, mas indiferente”, como disse Stanley Kubrick –, mas a saga terrestre de um bando de caubóis procurando a derradeira fronteira.

Das três horas e 21 minutos de Os Eleitos, duas horas e tanto não estão no céu, mas na terra. A história do filme não é a história do espaço, mas a saga terrestre de um bando de caubóis procurando a derradeira fronteira. (Reprodução)

*Ana Maria Bahiana é jornalista, autora, pesquisadora e produtora, com uma longa e prestigiosa carreira no Brasil e no exterior, em imprensa, rádio, televisão e internet.

* O texto acima faz parte do terceiro fascículo da mostra Fronteiras Finais, ciclo de cinema organizado pela Aleph, Projeto Replicante e CineSesc, que celebra a chegada do homem à Lua e faz uma contagem regressiva para o aniversário de 50 anos do feito em julho de 2019. Para informações sobre a terceira fase da mostra (que já segue em exibição) CLIQUE AQUI

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