Uma constelação sobre o medo
*Por Ana Rüsche
Dez anos após o primeiro passo na Lua, Alien: O Oitavo Passageiro (1979) consolida o retrato da exploração espacial ao lado de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e Star Wars (1977). Sua estréia aconteceu no mesmo ano do primeiro longa da franquia Star Trek (Jornada nas Estrelas: O Filme), em uma época marcada pelo início da distensão da Guerra Fria.
Alien, antes de tudo, é um filme sobre pessoas comuns, com contas para pagar e cansadas depois do trabalho — Ridley Scott, vindo do mundo da publicidade, capta anseios de seu público. É uma obra que teria tudo para ser um filme B. Entretanto, traz em sua linguagem o sublime e o grotesco, o que o torna um filme único e comentado até hoje, 40 anos depois da estreia.
A nave Nostromo transpira realidade com estofados gastos, quinquilharias e sinos dos ventos. No confinamento, tripulantes comem juntos, alguns fumam. Uniformes são acobertados por camisas estampadas e bonés. Com quarentões, o elenco masculino da tripulação traz um ator negro, Yaphet Kotto (Parker), e quatro brancos, entre eles Tom Skerritt D (Dallas) e Ian Holm (Ash). Duas atrizes brancas de 30 anos completam o time: Veronica Cartwright
(Lambert) e a novata Sigourney Weaver (Ripley), recém-chegada da Broadway.
A tipografia do título do filme impõe o ritmo: somente aos poucos se entrega o sentido, “Alien”. Na sequência do trecho, um imenso complexo espacial, refinaria e nave, toma de assalto a tela. Atravessamos corredores retilíneos sem seres vivos. Então, assistimos ao despertar de seres humanos sob pétalas translúcidas.
O sublime é instituído pelo contraste entre a magnitude das naves e a figura humana. Após mostrar o complexo gigantesco da Nostromo, a nave alienígena é a própria imensidão. Nela penetramos por corredores semelhantes a ossos ou intestinos até chegarmos a galerias amplas. O que veremos acordar também apresenta pétalas. Mas, dessa vez, aterrorizantes.
O artista H. R. Giger cria os cenários com abóbadas góticas interplanetárias, retorcidas e grotescas, antecipando sua criatura. Jerry Goldsmith dá música às cenas de imensidão, mas o que define a trilha são silêncios e respiração humana ofegante.
No filme, o medo é construído por várias camadas. Desde a mais elementar: medo do desconhecido. Nem mesmo Mother, computador da nave humana, consegue compreender o ser. O ícone do alienígena invoca a figura do estrangeiro em uma imagem alterada da humanidade. Sublinha-se a capacidade de reprodução do ser, inclusive pelo número de ovos — alusão ao temor pela subjugação por outros povos? Na expedição, Kane até pragueja contra o calor da nave alienígena: “Aqui parece os malditos trópicos”.
A ameaça doura-se em camada mais profunda. É constante a sugestão sensual: roupões no café da manhã, revistas de mulher pelada, formas de vulva e fálicas da nave alienígena e mesmo no semblante das vítimas em êxtase diante do invasor, dono de grande estatura (Bolaji Badejo, ator com mais de dois metros de altura, faz o papel). Entretanto, o golpe que causa repulsa ocorre no momento em que o corpo penetrado pelo alien pertence a um homem.
É desse corpo masculino e branco que será parido o bebê alienígena, fruto da violação. A narrativa inverte, então, posições tradicionais de poder. Para essa reprodução alienígena, os corpos das duas mulheres e do homem negro são preservados momentaneamente. Assim, diante do alien, hierarquias tradicionais são corroídas na Nostromo.
Ao tema do medo é acrescentado um androide. Na narrativa, esse androide é tão misterioso quanto o alienígena. Possui uma agenda própria, seguindo ordens da corporação contratante da Nostromo. Seus algoritmos atendem a critérios pouco transparentes. Se os interesses lucrativos de uma empresa estão acima dos destinos humanos, quem seria a figura descartável ao final?
O androide admira o alien: “O organismo perfeito. Sua perfeição estrutural é comparável somente à sua hostilidade”. A biologia do Xenomorfo corresponde ao nosso não biológico: sangue mais corrosivo que ácido e células passíveis de substituição por silício. Alien e androide são ambos inumanos e corporificam a ameaça às hierarquias na Nostromo.
A personagem de Ripley é fundamental nessas tensões. No início, atua como a profetisa que ninguém escuta: decifra o alerta original na mensagem, insiste na regra da quarentena. Suas ordens são ridicularizadas. Entretanto, diante do alien, tudo é ínfimo. Ripley ganha uma curva dramática própria ao longo do filme, fugindo dos clichês dedicados a mulheres (a exemplo de sobreviver a estupro ou enfrentar a maternidade). Quarenta anos depois, Ripley é um modelo para mulheres em cenas de ação. Sem deixar de se preocupar com o gato da nave, irá segurar a franquia Alien por anos e pavimentar a estrada para heroínas de ação como Charlize Theron e Uma Thurman.
Alien é um clássico que constela o medo nos principais ícones da ficção científica: o espaço, o androide e o alienígena. O androide seguirá na filmografia de Ridley Scott, a exemplo do clássico Blade Runner.
O Xenomorfo se tornará um velho conhecido das então futuras gerações. Surge a franquia com Aliens: O Resgate, Alien 3, Alien: A Ressurreição, sem mencionar Alien vs. Predador e Aliens vs. Predador: Requiem, além das prequels Prometheus e Alien: Covenant. Se no espaço ninguém te ouve gritar, no cinema, as pessoas clamam por isso.
*Ana Rüsche é escritora, doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, especialista em ficção científica. Seu último livro é Do Amor (Quelônio, 2018). Mantém o Incêndio na Escrivaninha, podcast sobre a incrível vida de quem escreve. www.anarusche.com
**O texto acima faz parte do segundo fascículo da mostra Fronteiras Finais, ciclo de cinema organizado pela Aleph, Projeto Replicante e CineSesc, que celebra a chegada do homem à Lua e faz uma contagem regressiva para o aniversário de 50 anos do feito. O terceiro estágio da Mostra começa no dia 27.05, com a exibição de Gravidade.