A desridicularização do ridículo

Da vergonha moral à virtude social

Pedro Botton
Editora Canhoto
Published in
18 min readFeb 15, 2022

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Apesar da esperança de que o Big Brother seria apenas algo passageiro, restrito ao tempo do início do novo milênio e que, assim como a infinidade de realities que surgiram e sumiram do ano 2000 pra cá, também se desmancharia no ar, infelizmente teremos que nos conformar que o programa passou a fazer parte dos eventos anuais recorrentes, tal qual o vestibular, o carnaval e o campeonato brasileiro de futebol. Ao que tudo indica, todo início de ano daqui pra frente vai ser assim: entre o ano novo e o carnaval começa o Big Brother e, durante esses três meses de programa, o pouco que acontece na casa mais dissecada do Brasil se torna um assunto obrigatório para qualquer conversa com mais de 5 minutos de duração entre amigos. Até aí tudo bem, o futebol ainda não começou, eleição, quando tem, é só no fim do ano e amizades impreterivelmente necessitam mais do que apenas os traumas e as frustrações dos envolvidos para servir de assunto enquanto se bebe, se fuma ou, na pior das hipóteses, se balbuciam frases desconexas enquanto se olha o celular. O ser humano depois que aprende a falar sente a necessidade de fazê-lo quando se vê rodeado de outros seres humanos. É normal.

No entanto, desde que a Globo lançou o seu serviço de TV sob demanda com infame nome de Globoplay¹, a presença do BBB no debate público se agigantou e, mais importante, a forma com que o programa passou a ser tratado nos diversos meios e espaços de comunicação se alterou drasticamente e é justamente sobre isso este ensaio: essa clivagem do lugar de irrelevância cultural, de entretenimento de baixa qualidade e de preenchimento de horas na TV aberta para um produto cultural televisivo relevante e que é levado a sério pela opinião pública.
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1 Uma clara decadência na capacidade de nomear os produtos da casa com palavras na língua nativa com autenticidade e força de marca, começando pelo próprio nome Globo, indefectível quase, e se desdobrando nos também bons Multishow, meio cafona, meio datado, mas com uma baita sonoridade; GNT, sigla do singelo e onipresente vocábulo gente; Futura, um neologismo absolutamente lusófono e; até o recente Gloob, nomeação muito acertada a partir da inversão de apenas duas letras do termo original Globo mas que é capaz de criar uma palavra nova, claramente infantil e sem nacionalidade, ainda que com pronúncia inglesa, típica dos tempos atuais. O nome Globonews talvez já anunciasse essa infâmia, mas, também, muito adequado ao baixo nível do canal que “nunca desliga” (como se os outros desligassem).

Ao meu ver, esse processo se deu em 5 fases:

  • A 1ª, que vai da estreia do programa em 2002 até a sua 5ª edição, em 2005², foi marcada pela sensação de novidade e entusiasmo que qualquer produto audiovisual da Globo almeja e que, embora nem sempre se concretize, só o investimento que a própria rede faz sobre o programa de TV em questão já é capaz de gerar uma aura de interesse quase que automática, tanto que os cinco ganhadores dessas edições ainda seguem vivos na memória da maior parte dos brasileiros que assistiam TV na época³;
  • Já a 2ª configura o declínio natural do interesse público (após o auge da edição #5, com Jean Wyllys e Grazi Massafera como finalistas), fase então que se inicia na edição #6, e tem na vitória de Marcelo Dourado na edição #10 — um ex-BBB que havia participado da edição #4, representando a história que se repete como farsa — a conclusão do processo de decadência;
  • A 3ª fase, com início na edição #11, é marcada pela total irrelevância e um sentimento generalizado de que era questão de tempo para o programa finalmente sair do ar — o que parecia até planejado na edição #13, em que 6 dos 17 participantes eram reincidentes e que ficou conhecida como a “edição histórica”, e, portanto, aparentemente derradeira (o que infelizmente não ocorreu, como todos sabemos) —, mas acabou se arrastando até a edição #17;
  • Uma 4ª fase sendo uma sutil transição, durante as edições #18 e #19, entre uma irrelevância absoluta e uma revitalização do programa no imaginário social;
  • E a atual 5ª fase, representando a culminação de estouro de audiência, anunciantes e presença no debate público que se inicia na edição #20 e que se mantém numa crescente até hoje.
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    2 Sobre a concomitância entre número da edição e a dezena do ano em questão, é importante ressaltar que ela foi fruto de um arranjo audacioso e muito acertado por parte da emissora, dado que, na contramão do que muita gente acha, a primeira edição do BBB não foi transmitida em 2001, mas sim em 2002. Para solucionar esse descompasso que, futuramente, traria uma grande confusão cronológica para todos, a Globo decidiu numa sábia manobra fazer a segunda edição do programa ainda em 2002, realizando-a de maio a julho daquele ano, acertando assim eternamente a relação entre ano e número da edição.
    3 A saber, Kléber “Bambam” de Paula, Rodrigo “Caubói” Leonel (este talvez o que dê mais trabalho para ser lembrado justamente por ser o vencedor da edição temporã), Dhomini Ferreira (que depois retornou ao programa na edição #13), Cida dos Santos e Jean Wyllys.

É claro que essa revitalização que hoje vemos consolidada também se deve a uma alteração fundamental do programa, mudança essa ocorrida em 2017: a substituição na apresentação do insuportável e desgastado Pedro Bial pelo jovem e também insuportável Tiago Leifert. Entre as diferenças que existem entre os dois apresentadores homens brancos héteros ricos, destaco duas que me parecem mais definidoras para essa nova fase do Big Brother Brasil: a ideia exaustiva promovida por Leifert de que o BBB se trata de uma forma de jogo semelhante aos jogos recreativos; e a interação com o público, seja com os inúteis tuítes que aparecem no rodapé da tela durante a transmissão do programa na televisão, seja com o ótimo quadro humorístico C.A.T. BBB (Central de Atendimento ao Telespectador, conduzido durante as edições #20 e #21 pelo ótimo humorista Rafael Portugal e atualmente na edição #22 pela também boa, mas fraca na função, Dani Calabresa); seja em atuações virtuais pelo próprio Leifert e por outras pessoas envolvidas diretamente com o programa — como o diretor Boninho (elevado ao atual status de semideus justamente pela ascensão da relevância do programa) e ex-participantes que conduzem programas satélites, como Ana Clara e Rafa Kalimann —; seja com o público via redes sociais que, ainda que sejam claramente artificiais e planejadas, essas interações inevitavelmente geram uma grande repercussão por conta da grande quantidade de seguidores que todo global tem por ser famoso. E agora em 2022, ano em que escrevo, estreia mais um apresentador insuportável: Tadeu Schmidt. Sem surpresa mais um homem hétero branco rico que representaria a fusão do Bial com Leifert, a “maturidade” com o “divertimento”, mas que vem claramente vem se demonstrando um tiozão despreparado, sem carisma e desprovido de qualquer espontaneidade no trato com os participantes e que, provavelmente, marque o início de mais uma fase de decadência, e, quem sabe, a derradeira. Assim espero.
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Como xadrez, videogame, RPG, esconde-esconde, sendo que o programa obviamente não é nada disso em absoluto; ponto a ser desenvolvido em outra ocasião.

Mas o fenômeno preocupante central deste ensaio e que ocorre em 2020 por conta da já citada consolidação do Globoplay que, segundo a Wikipedia, naquele ano “consagrou-se com a marca de 20 milhões de usuários e tornou-se líder nacional de streaming”, é a transformação do programa na concepção do debate público: o BBB deixa de ser aquele programa irrelevante dos anos 10 — o qual as pessoas que o acompanhavam, eu inclusive, tinham vergonha de assumir aos amigos e que, quando confessavam, logo ouviam “mas ninguém mais assiste isso” ou “ainda existe BBB” — para algo que quem acompanha hoje em dia não só se sente totalmente à vontade para falar disso constantemente, inclusive com seriedade, como se tornou um tipo de entretenimento válido culturalmente, tal qual os já citados futebol e carnaval, isto é, algo que, em sendo brasileiro, é natural que se acompanhe, se torça, se discuta. Assim, acompanhar o BBB deixa de ser quase uma vergonha moral para se apresentar como uma falsa virtude social.

Guinada engajadora

Na edição #20 foi implementada pela primeira vez a estratégia de colocar na casa não apenas pessoas desconhecidas sedentas por fama e dinheiro, mas também pessoas já conhecidas do público para competirem supostamente de igual para igual pelo prêmio monetariamente bastante defasado de 1 milhão e meio de reais.

Essa estratégia resolveu um problema latente do reality, que era o absoluto desinteresse do público pelo início do programa. Quando entravam na casa apenas desconhecidos, a curiosidade pelo comportamento daquelas pessoas dentro do reality, elemento central para todos que acompanham o BBB, era praticamente nula. Eventualmente, com o passar das semanas, a aposta era que esses desconhecidos fossem se tornando conhecidos do grande público e, assim, o interesse por como essas pessoas se comportariam dentro da casa se materializasse. Acontece que essa era uma aposta incerta e que se concretizou poucas vezes e, mesmo quando ocorreu, aconteceu de forma muito relativa. Por exemplo, quem hoje em dia tem fácil na memória quem são Fael Cordeiro e Fabiana Teixeira, finalistas da edição #12? Ou Munik Nunes e Maria Claudia Macedo, finalistas no ano de 2016? A inclusão de pessoas que, antes do programa, já dispunham de uma certa quantidade de interessados nas suas vidas — interessados esses que, depois das redes sociais, convencionou-se chamar de “seguidores”— foi capaz de garantir o atenção do público pelo programa desde o dia da sua estreia, ainda que na edição #20 os “conhecidos” fossem figuras desconhecidas, como o ginasta Petrix Barbosa, o surfista Lucas Chumbo e a cantora sertaneja Gabi Martins.
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5 O uso dos sobrenomes dos participantes curiosamente pode até atrapalhar a memória de quem, como eu, assistiu a ambas as edições citadas por conta do, ao meu ver, desrespeitoso costume que a produção do BBB tem em suprimir absolutamente o sobrenome dos participantes do reality até a implementação do esquema camarote/pipoca, dupla expressão razoavelmente pejorativa que faz alusão aos carnavais de Salvador, para denominar participantes conhecidos e desconhecidos, respectivamente. De 2020 pra cá, os participantes “camarote” são apresentados com sobrenome, enquanto os reles “pipoca” não, por mais espantoso que isso possa parecer. Sendo assim, talvez apenas o nome “Cézar” ou “Emily” esteja mais disponível na memória de quem vê BBB do que “Cézar Lima” ou “Emily Araújo”. Dentro disso, talvez o participante da edição #20 Felipe Prior seja um dos únicos que conseguiu, por algum motivo, romper essa barreira do sobrenome mas, mais especificamente sobre essa questão onomástica, também pretendo escrever um ensaio futuro.
6 Por “desconhecido” entende-se desconhecido do público que assiste televisão, o que não impede que essas três pessoas tivessem um bom número de seguidores nas redes sociais dado que o universo de usuários tende ao infinito. Sendo assim, um número relativamente baixo, tratando-se de redes sociais, de interessados nessas pessoas, digamos 30 mil seguidores, já configura um número extremamente alto para audiência de um programa de televisão, ainda mais levando em conta que se juntou ali 10 pessoas com quantias de seguidores dessa pra cima. O maior exemplo disso na edição #20 é a Bianca Andrade, conhecida como “Boca Rosa”, que quando entrou na casa era desconhecida do principal público espectador do BBB (pessoas que assistem muita TV e que têm na própria Globo a sua principal fonte de “pessoas famosas”) e, no entanto, acumulava milhões de seguidores nas redes sociais.

Outro ponto que tem que se levar em conta ao analisar o gigante sucesso de público e de relevância social da edição #20 é a epidemia de covid-19 (que, ao que tudo indica enquanto escrevo, também veio para ficar), que tem como data inicial simbólica o dia em que ocorreu a primeira morte pela doença no país, 26 de fevereiro de 2020, pouco mais de um mês do início do programa naquele ano, tendo estreado dia 21 de janeiro. Esse fato gerou a situação insólita do apresentador à época Tiago Leifert ter sido incumbido de informar aos participantes confinados e, portanto isolados, que o Brasil aqui de fora que os estava assistindo, votando e comentando, passava por uma pandemia devastadora.

Acontece que o impacto sobre a audiência do programa decorrente da pandemia foi gigantesco por um simples motivo: com o início da quarentena, toda programação de entretenimento ao vivo da televisão foi suspensa, deixando um vazio no grande público que tem na TV, e principalmente no futebol televisionado, uma parte determinante da sua fonte de diversão. Nesse processo, o Big Brother se apresentou como o respiro perfeito: famosos ao vivo em um lugar protegido da covid relativamente alheios à catástrofe que se apresentava aqui, do lado de fora da casa. Nunca um paredão fora tão justificadamente indesejado por quem estava lá dentro.

Conveniência de interesses

Temos então a receita perfeita para a onipresença do BBB no debate público desde então, pelo menos enquanto o programa está no ar: em parte por um acaso — a pandemia — e em parte por uma estratégia proposital — pessoas famosas confinadas. Só que no meio desse processo, uma pergunta ficou no ar: o que pessoas famosas, que têm na sua presença constante nas redes sociais uma fonte relativamente inesgotável de dinheiro — arquétipo representado na edição #20 principalmente pelas influenciadoras Rafaella Kallimann e Bianca “Boca Rosa” Andrade — foram fazer num programa que tem como prêmio objetivo, como troféu literal, a quantia de 1 milhão e meio de reais? Pois, ainda que essa quantia seja bastante grande, de acordo com alguns cálculos, os participantes “camarote” realmente famosos — como as duas já citadas, ou a rapper Karol Conká, que fez parte do programa na edição #21 — poderiam arrecadar o valor do prêmio em um mês de trabalho do lado de fora da casa, quando não em uma semana. A resposta para essa pergunta quem descobriu foi a própria Globo.

A questão de quem é realmente famoso ou não é algo que suscita muitos debates, pois o que seria ser famoso hoje em dia? Ter muitos seguidores nas redes sociais? Não poder sair na rua sem ser incomodado por uma multidão? Ter um artigo de si na Wikipedia? A Rede Globo simplificou esse debate e ofereceu uma resposta clara, direta e muito conveniente: ser famoso é ser global. Essa ideia parte justamente da pergunta central: o que uma pessoa já rica, já influente, já com milhões de seguidores, buscaria num reality show por vezes humilhante, psicologicamente tóxico, que proporciona uma privação de intimidade absoluta e que faz os participantes dormirem em um quarto sem janelas? Simples: ser global.
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7 O fato de alguns participantes já serem globais antes de entrarem no programa — Fiuk, Tiago Abravanel, Douglas Santos, Arthur Aguiar, Maria (participante que subverte o conceito de “camarote com sobrenome”) e, em menor escala, Linn da Quebrada — levanta a questão: será que esses participantes são os mais puros da história da BBB no sentido de que eles não têm nada a buscar lá dentro a não ser eles mesmos? Outra questão a ser debatida em futuro ensaio.

Não que os participantes das edições em que não havia a diferenciação entre “camarote” e “pipoca” — ou seja, quando todos eram “pipoca” — não possuíam também como objetivo ora principal, ora secundário, a intenção de se tornarem globais, mas acredito que esse fenômeno se torna cristalino quando tanto o prêmio em dinheiro quanto o desejado ganho de visibilidade pública se tornam apenas detalhes para participantes que já têm ambos antes de ingressar no programa.
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8 A não ser por excentricidades como os ex-participantes que retornaram ao programa, como o já citado Marcelo Dourado, participante derrotado na edição #4 e vitorioso na edição #10, e os seis participantes “históricos” que voltaram na edição #13 para passar vergonha — a saber, Eliéser Ambrósio, Fani Pacheco, Anamara “Maroca” Barreira, Natália Casassola e os ex-vencedores Dhomini Ferreira, da edição #3, e Kléber “Bambam” de Paula, suprassumo do retorno arrependido tendo em vista que acabou pedindo para sair do programa. Tratam-se, portanto, dos “pré-camarote”, dos filoglobalistas vazios, dos precursores da tragédia atual.

A Globo percebe isso e se vê diante de um novo problema: se o principal interesse dos concorrentes ao prêmio de vencedores do programa não é mais o prêmio em si, passível de ser conquistado dentro das regras do programa, mas sim a pretensão daqueles mesmos participantes de ingressarem no universo de famosos da própria emissora, como legitimar esse desejo e fazer com que os ex-participantes do programa não sejam vistos como apenas ex-BBBs, pessoas que se expuseram em um programa de baixa qualidade e sim como pessoas que toparam participar de um programa de entretenimento legítimo, digno, honroso? A resposta não poderia vir de outro lugar: a partir de um projeto interno da própria emissora.

Andreia Sadi ama o reality

Na manhã do dia 5 de abril de 2021, uma segunda-feira, eu estava assistindo ao programa matinal da Globo, Mais Você, apresentado pela Ana Maria Braga. Como costumo acordar tarde, acompanhar esse programa de baixíssima qualidade é felizmente algo raro na minha vida, mas, naqueles dias, era bastante comum. Naquela época a minha filha Sofia era uma recém-nascida com menos de um mês de vida e, como é comum às pessoas dessa idade, não dormia muito. Daí que minha rotina naquelas longas semanas consistia em levantar da cama por volta das 7h da manhã, descer do quarto pra sala com ela no colo, tentar fazer com que ela voltasse a dormir o quanto antes e, assim que ela dormisse, ficar absolutamente imóvel no sofá para que ela dormisse o máximo de tempo possível enquanto eu olhava o celular, assistia TV ou jogava X-Com Enemy Within no meu Playstation 3 com fones de ouvido conectados ao televisor por meio de uma extensão de três metros.

Nesse dia específico, uma entrevista da Ana Maria com a jornalista Andreia Sadi fez com que eu tomasse consciência desse processo de legitimação social que a Globo vem operando com o BBB e que é o tema central do presente ensaio. Na entrevista, a apresentadora faz uma pergunta à Sadi sobre a relação dela com o Big Brother e a resposta que foi dada me desestabilizou ao mesmo tempo que explicitou essa sanitização difusa pela qual o BBB vinha passando, essa oficialização do reality enquanto bom entretenimento por meio, principalmente, da validação de pessoas respeitadas, no caso, a de fato ótima jornalista Andreia Sadi. Segue o trecho do vídeo e, abaixo, a transcrição da parte que me parece crucial da entrevista:

Fragmento de um discurso horroroso

Ana Maria Novela eu até entendo, agora BBB… me diga lá, diz que tu gosta de… cê acompanha, torce, cê… seu negócio, agora no BBB tá pegando fogo, e aí, é verdade?

Andreia Sadi (…) Eu amooo de paixão. Acho que tem uma coisa do ser humano ali, de você entender como as pessoas, as dinâmicas das pessoas, eu acho muito legal. As pessoas se revelam, ninguém é uma coisa só, né, essa coisa de ser bom, de ser mal. E eu acho que isso é muito legal, de você ver as transformações. Eu comecei torcendo por uma turma, aí depois eu já fiquei com raiva, aí eu li no Twitter uma coisa legal que o segredo é você não torcer por ninguém ganhar, é você torcer pra quem for sair naquela semana porque cada hora vai mudando então eu sou essa pessoa: cada semana eu já sei pra quem eu tô torcendo.

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9 A pergunta anterior era sobre o traço “noveleira” da entrevistada, por isso o gancho que, curiosamente, denota uma clara decepção com a Sadi por ela se interessar por Big Brother. Uma espécie de ato falho revelador dado que boa parte do conteúdo do próprio Mais Você durante os meses em que o reality está no ar é justamente repercutir o que acontece na casa. Acontece que a própria Ana Maria é do tempo em que o BBB não passava de uma piada, de algo baixo, portanto o sentimento de desprezo é simplesmente inevitável.

A entrevista segue nesse tom, de uma racionalização intelectualizada e, ao mesmo tempo, muito pessoal, sobre o interesse de alguém respeitado no campo do jornalismo por um reality show. Porém, só esse trecho citado já demonstra claramente o projeto da Globo em relação ao Big Brother: fazer com que o programa passe a ser avaliado por um prisma sério, interessado, reflexivo, legítimo e não mais somente como uma competição quase circense lotada de anunciantes à la Idiocracy entre desesperados por fama e dinheiro e que, pra isso, abandonam, na melhor das hipóteses, por três meses a família, o emprego e as próprias vidas.

Escolher justamente a Andreia Sadi para esse papel (neste caso, existiram e existirão muitos outros) é sintomático pois ela é de outra área — não é do entretenimento como seria um André Marques ou uma Ivete Sangalo, mas trata-se de uma jornalista que, precisamente naquela época, estava muito em evidência por ter rebatido de forma veemente abusos contra a imprensa vindos do presidente Bolsonaro e seus capangas, o que rendeu até um elogio contundente do apresentador e craque Neto em outubro do ano anterior. Ou seja, representava uma figura séria, comprometida com a verdade, de boa reputação mas que — como bem disse à época o articulista da Canhoto e editor desse texto, Rafael Zanatto, quando conversamos sobre o ocorrido — ela faz parte da folha de pagamento da Globo e, assim, consta no contrato: se é pra falar que amaaa o BBB, então falemos que amaaamos o BBB.

Outra expressão semelhante dessa estratégia global clara de legitimação do Big Brother, muito mais recente, é o que constava no letreiro que fica passando na parte inferior da tela durante os programas da já supracitada desprezível Globonews. No dia 4 de fevereiro de 2022, o jornalista Mario Sergio Conti recebeu o historiador Jones Manoel para uma entrevista em seu programa semanal, o Diálogos. Durante a entrevista felizmente não se falou em BBB, não estamos tão mal assim, mas dentre as dez notícias que apareciam repetidamente no rodapé, duas eram sobre o reality.

Esse recurso que diversos canais de notícias adotam atualmente de ficarem rolando na tela fatos não relacionados ao tema tratado no programa no ar supostamente se justifica por se tratarem de informações indispensáveis aos espectadores, independentemente do interesse real das pessoas que estariam assistindo ao programa, no caso, a entrevista com o Jones Manoel. Dentre as dez frases transmitidas, algumas realmente eram relevantes como “Brasil volta a registrar mais de mil mortes por covid em 24 horas” e “Nº de licenças de armas cresce 325% em 3 anos, segundo levantamento”; uma era relativamente corporativista, “Edgard Alves, ícone do jornalismo esportivo, morre aos 73 anos”, entre outras que variavam entre real relevância e relativa curiosidade, no mínimo.

As relacionadas ao Big Brother eram: “BBB terá dois novos participantes do grupo pipoca” e “‘Meu tanque indo embora’: Mayra lamenta forma de Arthur no BBB”.

Parece mentira — e seria muito melhor que fosse — mas infelizmente não é

É como se o SBT fizesse com que todos os seus contratados passassem a levar a sério o A praça é nossa como um programa de entretenimento válido, transmitisse notícias acerca das piadas no jornal da noite e, pior, que essa estratégia funcionasse.

Expectação crítica

Embora possa parecer, essa não é uma análise cuja conclusão seja para que não se assista ao BBB, longe disso. Eu mesmo acompanho diariamente o programa desde, no mínimo, a edição #16, ou seja, há 6 anos, e por isso tenho a certeza de esse é um reality em que o principal conteúdo não são as provas enjoativamente patrocinadas, nem a falsa ideia de “jogo”, muito menos como dança esse ou aquele participante numa festa qualquer ou quem fica ou quem sai a cada terça; mas sim o total acesso às relações pessoais que acontecem durante o confinamento, os fenômenos psicanalíticos e linguísticos que são explicitados nos participantes diariamente, o vazio existencial que se apresenta e o interesse absoluto, pelo menos pra mim, de vidas que abriram mão da privacidade e, por isso, não têm direito ao segredo, ao próprio, à sombra. E essa característica do programa é capaz de nos suscitar diversas reflexões, inclusive as presentes neste ensaio e muitas outras que surgiram nesses 21 anos de programa. Mas é preciso ter em mente que esse processo é somente uma atribuição de sentido para algo que não possui tais valores intrinsecamente. É como olhar as nuvens e nelas vermos cavalos, dinossauros, carros de ré. Essas imagens não existem de fato, o Big Brother não é uma experiência sociológica ou antropológica, ele é uma vitrine.

Ainda assim, não, esse ensaio não propõe que não se assista ao BBB. Assim como o futebol, o carnaval e a novela, são coisas que passam na TV e pra quem, assim como eu, gosta de assistir TV, é realmente um prato cheio. O ponto é a forma como se enxerga o programa, sob qual prisma, com qual predisposição.

Desde a sua estreia, ficou claro como o Big Brother é um programa que explora o que tem de mais frágil no ser humano — a fome, a privação de sono, a restrição absoluta de liberdade e de privacidade — como forma de entretenimento e de prazer do espectador. Essa é uma forma muito baixa de se enxergar o outro, uma forma muito injusta e que foi identificada rapidamente por qualquer um que, lá em 2002, entrasse em contato com o programa. A própria Globo sempre soube disso, mas seguiu produzindo o formato porque sabe como é, ainda não começou o futebol e um bom canal é aquele que nunca desliga.

É fundamental que todos aqueles que acompanham o Big Brother tenham esse viés crítico negativo presente e não se deixem convencer por um plano ostensivo e, até então, muito bem sucedido da maior interessada na purificação ética do programa, a Rede Globo, e assim passar a considerar um programa rasteiro como o BBB um produto cultural audiovisual realmente válido, como um filme, uma série ou até mesmo algumas novelas.

Lamentáveis são os políticos que, no exercício do cargo público e fazendo uso das suas redes sociais, se utilizam do BBB como forma de gerar alcance e interações; lamentáveis são as figuras públicas que tomam o que acontece dentro de um programa de televisão sádico como alegoria de uma sociedade complexa e confusa como a brasileira (sendo que o que acontece no Big Brother e na sua relação com o público por meio das votações só representa essa própria fatia da população: pessoas que assistem ao BBB e que perdem seu tempo votando em um reality show); e lamentável é todo aquele que escreve um tuíte sobre o BBB achando que está contribuindo com o debate público brasileiro.

Assim como o futebol profissional televisionado, como o carnaval do grupo especial televisionado, como as novelas, o Big Brother Brasil é só mais um produto audiovisual de massa, só que piorado. O Big Brother não é capaz de gerar cultura, de criar algo novo, ele é só uma vitrine dos nossos defeitos, das nossas angústias, dos nossos complexos narcísicos, da nossa compulsão sádica. Saibamos disso e, talvez assim, nós podemos conseguir nos relacionar com o BBB da mesma forma que deveríamos nos relacionar com os produtos: apenas consumindo. Não idolatrando e, muito menos, amandooo de paixão.

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