A ressaca dos dias

Confuso por algum tempo, mas tudo bem

Rafael Zanatto
Editora Canhoto

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Sempre a mesma merda, todo dia igual. O despertador toca, mas já estou acordado faz um tempo indeterminado. O ruído da rua, os pássaros cantando, a luz entra pelas frestas da persiana. É sempre a mesma merda, exatamente a mesma merda. Eu então me levanto, mais cansado do que quando fui dormir, abro a janela e vejo as pessoas andando, avalio que roupa usar e se devo levar o guarda-chuva. Tomo banho, me visto e saio na rua desenrolando o fone de ouvido, me sentindo envergonhado, de óculos escuros porque estou com a cara inchada. E também porque de dia é claro. Ando como um autômato, minhas pernas vão sozinhas. Penso que poderia cair de repente se as pernas pararem de andar. Eu cairia no chão e não conseguiria mais me mover. As pessoas desviando ao passar, pensando “Quebrou o robozinho”. Quebrou o rapazinho. É todo dia igual, e de tão automático eu consigo ainda me surpreender. Todo dia a mesma coisa: vou ouvir o Biograph. Mas hoje, eu penso, hoje eu vou ouvir o 3, e não o 2, como todo dia. Abro o 3 e é o mesmo de ontem, de anteontem, da semana passada, de tempos imemoriáveis, desde 1985 — o ano em que nasci e o ano em que foi lançado a porra do disco. Desde 1985 é sempre a mesma merda, todo dia igual. Tá bom, dou o play e me sinto bem, toca Caribbean Wind, que eu achava que era um outtake do Blood on the Tracks, mas estou confundindo com a próxima: essa é do Shot of Love. Fico confuso por algum tempo, mas tudo bem. Atravesso a rua e olho para a vitrine: uma bunda de manequim veste uma calcinha bege, cujo preço eu nunca nem cheguei a pensar em olhar. Mas tá lá a bunda, como todo dia: a melhor bunda do bairro. Eu já sorrio para aquela bunda. Se alguém comprar essa calcinha ridícula de vó eu vou ficar triste. Nua, a bunda vai perder a verossimilhança. É uma bunda normal, uma bunda corriqueira, bunda de terça-feira, com a pior calcinha da gaveta. E a bunda não está pega de surpresa: ela é cotidiana, a bunda está vestida como todo dia, e é lindo que ela compartilhe isso comigo. Quer dizer, seria lindo caso fosse uma bunda de verdade, mas é uma bunda de plástico, de um manequim que começa na cintura e termina nas coxas. É a melhor bunda do bairro. Eu sorrio pra ela, dou bom dia. Ela responde: “Bundinha”. Estou viajandaço, preciso comer algo. A boca seca, esqueci a água em casa. Não deveria ter fumado meio maço. Nem bebido tudo aquilo. O banza eu acho que foi justo. Abro minha tabela mental enquanto atravesso o cruzamento — metodicamente igual, como todo dia — e calculo o remédio mais apropriado para minha ressaca. Se é grave, melhor um Advil pra dor de cabeça e um Epocler pro enjoo. Se é média, um Advil pra dor de cabeça basta. Hoje, como na maioria dos dias, é baixa, então comer alguma coisa já vai ajudar. E ajuda. No metrô pego o mesmo vagão, na baldeação faço o mesmo caminho, tudo é calculado para dar certo. Mas hoje parece que não vai dar. Sento e olho para o teto, respirando pela boca, reunindo forças para não palidar. Penso no que as pessoas devem pensar quando me vêem. No que aquele cara com o mesmo óculos que eu pensou ao me ver pela janela na plataforma tossindo, quando o trem veio devagarzinho e nos deixou frente a frente. Eu fico com raiva dos velhos. Eu fico com raiva dos jovens. Descendo a escada rolante todo mundo ouve música e conversa no WhatsApp. Todo mundo conversa com um contato não adicionado, sem nome, que responde por +55 11 976333700. Por que as pessoas conversam tanto? Quem tem tanto assunto? E ouvem música, o Álbum desconhecido, do Artista desconhecido, a faixa um: AUD-502511.wma. Isso é capaz de fazer qualquer virgem de ascendente em virgem perder a cabeça. Eu fico puto, a raiva se espalha lentamente pelo meu corpo, como que diluída no meu sangue, e aos poucos eu me sinto inebriado pelo ódio. Olho pra cima, para as pessoas paradas na esquerda da escada rolante e penso em Deus.

Dou a volta e saio para a calçada, desvio dos velhos e dos jovens e pego o papel que o rapaz me entrega. Ajuda espiritual, dentista, aulas de direção, novo empreendimento imobiliário. Ele não me agradece nem eu o agradeço. É tudo automático, como todo dia. A raiva se dissipa e a fome entra em cena. Atravesso a rua fora da faixa e tomo cuidado para não morrer. Tão perto agora. Entro na lanchonete, tiro os fones, os óculos e finjo estar encabulado. A menina deixa de se apoiar no balcão e dá dois passos em minha direção. Seu rosto não revela nada. Digo hesitante, como se estivesse formulando tudo naquele mesmo momento, como se eu já não tivesse acordado pensando que eu:

— Quero um pão na chapa com requeijão, por favor — hesitante mais ainda — E um café com leite.

— Café com leite — ela diz virando o rosto para o balcão, que contorna para assumir a chapa.

Deixo a mochila na mesma cadeira da mesma mesa e vou até o fundo da lanchonete, lavar as mãos na pia. Volto e o café com leite já está lá. Coloco três colheres de açúcar e misturo, o pão chega logo em seguida. Como com voracidade, enquanto a bebida esfria. Eu tenho tanta fome e tanta ressaca que meu maxilar dói, penso em desistir de mastigar. Estou próximo de me salvar, mas antes o último momento em que penso que vou desmaiar, em que finalmente hoje não vai dar certo. Mas dá, e eu sigo vivo e lúcido. Limpo as mãos, a barba e a boca e me levanto novamente fingindo estar encabulado, com os olhos no chão, os ombros curvados para frente, deixando claro que estou agradecido pela comida e que sinto muito que eles tenham que me servir e eu tenha que ser servido, que infelizmente chegamos nesse ponto em que eu sou consumidor, e eles, empregados. Sinto-me mal por estar atrasado para o trabalho enquanto eles trabalham pra mim. Minha humilhação me permite não olhar ninguém nos olhos nem agradecê-los, eles, a quem vejo sempre que paro para comer a caminho do trabalho, em três dos cinco dias úteis da semana (me dói pensar que eles provavelmente trabalham no sábado). O cara do caixa eu já posso encarar. Olho-o nos olhos e digo:

— Um pão na chapa e um café com leite — omito o requeijão deliberadamente.

— Quatro reais.

Entro em um breve pânico ao constatar que o pão na chapa com requeijão é provavelmente 50 centavos mais caro que o pão na chapa tradicional, que eu vergonhosamente anunciei ter consumido hoje, logo hoje, diferentemente de todas as outras vezes que se passaram e se seguirão.

Dei um desfalque de 50 centavos na lanchonete que vou dia-sim dia-não. Minha vida está acabada, não há redenção para esse tipo de pecado.

Está cada vez mais quente, os trabalhadores braçais já almoçam nos restaurantes apertados, e eu ainda não consegui cumprir nem 10% do meu dia. De barriga cheia, já consigo pensar mais claramente. Vejo o céu entre os galhos das árvores. Baixo os olhos pois lá vem um rapaz com quem cruzei nesse mesmo lugar ontem. Ele deve ter a minha idade, mas se veste com calça social e camisa. Está ligeiramente acima do peso — penso que recentemente ele ganhou alguns quilos, provavelmente por algum fator muito claro: emprego novo; parou de jogar bola; está namorando; teve um filho. Ele também é ligeiramente calvo. Mesmo assim ele é bonito, mais bonito que eu. Quando vamos nos cruzar não resisto, olho para o seu rosto e ele olha pro meu. Penso que ele pensa no meu cabelo. Será que quando eu fico acordado pensando nele ele pensa um pouco em mim? Por que eu penso tanto nele? Por que eu acordo antes do despertador tocar? Por que é sempre a mesma merda, todo dia igual?

Vejo o céu entre os galhos das árvores. Me pego parado olhando para minhas mãos. Eu penso no seu quadril. Ela sentada elegantemente na poltrona do bar. É um bar chique. Tem música alta e luz baixa. Eu estou encostado no balcão, assim posso vê-la à direita, na poltrona, e me ver à esquerda, no espelho. Ela bebe, eu bebo. Ela me conhece, eu a conheço. O tempo passa e ela se larga na poltrona. Vai e volta do banheiro. Agora já mais confortável que elegante, ela está na diagonal, as pernas ainda cruzadas, vejo despontar sob o vestido o osso do seu quadril — a espinha ilíaca ântero-superior. Eu pesquisei na internet.

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