Arrancar a cidade à força

Parado numa esquina qualquer

Lucca M. Rossi
Editora Canhoto
Published in
6 min readFeb 28, 2018

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Em 1961 o escritor catalão Manuel de Pedrolo redatava Acte de Violència, uma das mais representativas de suas mais de cem obras publicadas. Digo redatar porque o livro seria lançado somente anos mais tarde, quando já acabada a ditadura franquista. O motivo da censura é claro: com sua trama distópica, Acte de Violència descreve como, do dia para a noite, os moradores de uma grande cidade iniciam voluntariamente, sem qualquer tipo de comando supremo, uma greve geral inusitada contra o governo central, trancando-se em suas casas e deixando vazias ruas, fábricas, mercados, lojas e escolas. A única palavra de ordem desse movimento silencioso são mensagens que logo se espalham por todos os lados: “É muito simples: fiquem em casa”.

Cada um dos 21 capítulos da novela descreve a reação de anônimos em discussões com amigos e familiares ou enquanto vagam pelas ruas desertas da metrópole sem nome. Para o leitor atento, um retrato de Barcelona. Mais do que seu grito contra a opressão, que não me dedicarei a comentar, Acte de Violència tem o poder de transportar-me para a Barcelona real: quando caminho pela cidade em um dia chuvoso de inverno me sinto como na cidade-fantasma por onde erram os personagens pedrolianos.

Sempre preferi os dias nublados e chuvosos para andar por onde vivo. Sem o reflexo do sol que encontra o vidro dos carros e vitrines das lojas tudo fica mais claro e próximo. Parado em uma esquina qualquer podemos ver como todos correm para fugir da chuva: a rua pouco a pouco se esvazia e é cada vez mais nossa. A sensação fica mais intensa por sabermos que todos ainda estão ali, protegidos atrás das paredes dos edifícios.

Os dois dias que descreverei a seguir, um de sol e outro de chuva, carregam um pouco dos de Pedrolo e sua novela: são dias de extrema solidão em meio à multidão, mas de uma solidão forçada, dias em que, por razões distintas e de formas diferentes, tentaram arrancar à força a cidade das nossas mãos.

No dia 17 de agosto de 2017, perto das cinco da tarde, caminhava em direção ao metrô depois de mais um dia de trabalho. Naquela manhã havia acertado de, acabado o expediente, encontrar meu irmão nos arredores da Sagrada Família, perto de onde trabalho. Ele havia se instalado havia pouco na cidade e aproveitava os dias ainda livres para fazer aulas de espanhol em um café ali perto. Como não havíamos combinado um lugar concreto, tirei o celular do bolso e chamei o seu número. Não tive resposta. Era algo que passava com bastante frequência e eu não sabia se ele realmente estaria por ali ou se havia resolvido voltar mais cedo pra casa. Por isso decidi sentar em um dos bancos ao lado da estação e esperar alguns minutos antes de voltar a chamá-lo.

Entre os turistas alemães vermelhos do sol do Mediterrâneo que baixavam pelo passeig de Sant Joan e as abuelas com seus cachorros na coleira e netos no carrinho tudo indicava que aquele era outro final de tarde de mais um agosto abafado em Barcelona.

Enquanto esperava, peguei outra vez o celular e no grupo dos colegas de trabalho vi as primeiras mensagens sobre o que recém havia passado. Levantei a cabeça outra vez e, agora com mais atenção, notei rostos tensos entre os que ocupavam as mesas da calçada no bar da esquina e passos acelerados dos que desciam rua abaixo falando ao celular. Abro os jornais online. Como de costume, não se mencionava a palavra atentado. Ligo novamente para o meu irmão e acabo outra vez sem resposta. Lembro do dia em que lhe havia dito que esse costume de manter o telefone sempre em silêncio ainda deixaria alguém nervoso quando algo realmente sério acontecesse. Esse dia havia chegado.

Coloco os fones de ouvido e abro na rádio pública local para tentar saber mais detalhes. As informações são ainda desconectadas. Algumas estações de metrô próximas ao local do atropelamento haviam sido fechadas. A Sagrada Família está a cerca de três quilômetros da praça Catalunha, mas evito entrar na estação. As notícias já devem ter chegado ao Brasil e, mesmo sabendo que meu pai ainda não teria lido nada sobre o que passava, resolvo chamá-lo. Ele realmente não havia se inteirado do que ocorrera. Lhe digo que a situação onde estou é tranquila e que, naquele instante, seguia para a casa para encontrar o Marco. Peço que ele diga à minha mãe que não se preocupe. Desligo e volto a chamar ao meu irmão. Nada. Corro até uma das estações de aluguel de bicicleta.

As ruas estão atipicamente vazias. Cruzo uma das avenidas mais congestionadas da cidade e o movimento é igual ao de um domingo à tarde, lojas estão fechadas, não há quase ninguém nas paradas dos ônibus. Pedalo mais rápido do que as minhas pernas permitem.

Subo as escadas correndo, abro a porta de casa e escuto ruídos vindo da sala. Explico em poucas palavras o que passava, o abraço forte e peço que, de uma vez por todas, ele passasse a olhar mais para a merda do celular. Ele dormia todo aquele tempo. Enxugo os olhos, tiro o meu aparelho do bolso e vejo as mensagens que começam a chegar dos amigos do Brasil.

Quarenta e cinco dias depois, Barcelona voltava em tempo real aos telejornais de todo o mundo. Era o dia do referendo de autodeterminação convocado pelo governo local semanas antes, o suposto início do fim do largo procés independentista. Dias antes, a opinião pública pró-independência — grande parte do establishment local — recomendava aos votantes ir cedo aos colégios eleitorais. Muitas escolas permaneceram abertas durante todo o final de semana, com atividades promovidas por pais e professores. Tudo para evitar que a polícia fechasse os locais de votação antes da chegada da população. A tensão era enorme.

Acordamos às cinco. Meia hora depois Elma e eu já estávamos em frente ao Centre Municipal de Cultura Popular de Sant Andreu. Chovia uma chuva fina e persistente. Sem direito a voto como estrangeiro, e com um posicionamento ainda em construção sobre o tema — tendendo, já naquele momento, a uma visão crítica do chamado processo, talvez pelo meu natural distanciamento emocional como recém-imigrado ao país — , disse à Elma que, caso a polícia chegasse com violência, eu não defenderia o colégio. Por vários motivos, aquela não era a minha causa. Como de costume, ela disse entender perfeitamente, mas completou que só sairia dali depois de haver votado. Eu fiquei do seu lado.

Chegaram as urnas, depois a polícia local, e uma fila começou a formar-se à medida que mais e mais gente aparecia. Os dois ou três policiais apenas observavam. O clima, em geral tranquilo, ficava mais tenso apenas quando o som de alguma sirene se aproximava e logo se perdia no fundo de alguma das avenidas dos arredores. Um helicóptero da polícia nacional sobrevoava o bairro de meia em meia hora, seguido sempre da vaia da agora pequena multidão que se concentrava.

A manhã passava com a incerteza sobre se haveria ou não votação. Alguém com acesso às mesas gritava que o sistema havia caído outra vez. Todos se impacientavam. Os responsáveis pediam calma.

Por volta do meio-dia, me reaproximo da fila com um café, mas não a encontro. Já são mais de seis horas em pé. Forço a passagem e nossos olhares por fim se cruzam: o sistema havia voltado, ela me explica, e eles finalmente poderiam entrar. A massa de gente que se concentra perto da porta já não pode mais formar uma fila organizada. Perco-a de vista outro vez, mas vejo que cruza a porta e baixa às mesas de votação. Espero em meio às centenas de votantes ainda do lado de fora, poucos minutos passam. A vejo saindo, a carteira de identidade ainda nas mãos. Abro passagem e nos abraçamos forte, ela ainda incrédula por haver conseguido colocar o papel dentro da urna. Contenho as lágrimas. Seguimos exaustos para casa.

Naquele dia cinza marcado pela violência covarde eu agradeci por as ruas estarem ocupadas e não serem somente minhas. Num domingo chuvoso, poucos são os que tiram o nariz pra fora, como aqui costumam dizer. A não ser que estejam quebrando ossos e arrancando chumaços de cabelo de senhoras indefesas que querem apenas responder a uma pergunta com um sim ou com um não.

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